Enviado especial do Observador em Paris, França

Em Tóquio, nada podia correr mal. Aliás, bastava Pedro Pablo Pichardo fazer qualquer coisa parecida com o salto da qualificação para ganhar a medalha de ouro na final do triplo salto – sendo que até fez mais, com o novo recorde nacional a 17,98 a acabar de vez com uma questão que nunca chegou propriamente a existir. Nesse dia de calor e uma humidade de rebentar escala, o atleta português fez um corte a si próprio na zona do tornozelo que deixou a meia ensanguentada, teve de saber lidar com aquele que ficou como o “caso” dessa edição dos Jogos ao ver Nelson Évora na bancada a apoiar Hugues Fabrice Zango (com quem tinha estado a trabalhar em Espanha sob o comando de Ivan Pedroso antes da competição durante algumas semanas) mas conquistou quase de forma natural o quinto título olímpico de Portugal. Agora, todo o contexto mudara.

Mudou o contexto de Pichardo. A seguir aos Jogos Olímpicos, o saltador terminou com a prata os Mundiais de Pista Coberta onde de forma assumida já não ia no pico do momento, sagrou-se campeão mundial ao Ar Livre em Oregon a chegar cedo aos 17,95, garantiu o título nos Campeonatos da Europa com um salto apenas a 17,50, revalidou o título nos Europeus de Pista Coberta a 17,60, nova melhor marca nacional na disciplina. Depois, parou. E essa paragem virou aquilo que era um ciclo olímpico mais curto de apenas três anos. Vieram algumas lesões e problemas físicos que o foram afastando de grandes provas (abrindo espaço para Zango ser campeão mundial ao Ar Livre e em Pista Coberta), chegou nova concorrência. Pichardo sabia que já não bastava estar para ser campeão e a questão de passar dos 18 metros era mais necessidade do que vontade.

Mudou o contexto do triplo salto. Com o processo de naturalização de Jordan Díaz como espanhol completo, Andy Díaz Hernández a competir também naturalizado pela Itália e o advento de um miúdo jamaicano cheio de potencial como Jaydon Hibbert, a que se juntava o habitual Zango e no limite o norte-americano Salif Mane com um momento de forma que lhe permitia sonhar com a passagem da fasquia pessoal dos 17,52, Pichardo entrava numa nova era da disciplina. Quando passou a representar Portugal, o saltador até teve de viver com a competição dos norte-americanos Christian Taylor (que acabou cedo para a modalidade por uma lesão gravíssima da qual nunca recuperou) e Will Claye, além de Zango, mas cedo conseguiu criar um ciclo de total hegemonia que agora podia continuar mas estava ameaçado. Essa era a questão desta final.

Em condições normais, a saltar a 18,04 como aconteceu nos Europeus de Roma, a ida ao lugar mais alto do pódio tornava-se uma mera questão de tempo. Não foi. Tal como prometido antes, Jordan Díaz conseguiu ir fazendo melhor do que o português e chegou mesmo a estonteantes 18,18, algo que ninguém estava à espera tão cedo do jovem espanhol. Mais do que a prata, Pichardo saía de Itália com um peso ao pescoço de saber que as semanas até aos Jogos de Paris-2024 teriam de trazer algo de novo a nível físico, técnico e mental para potenciar o momento e voar para a marca que lhe assegurasse a revalidação do título olímpico.

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Era isso que estava em jogo no Stade de France esta noite, com Pichardo a poder tornar-se o primeiro atleta português a ganhar duas medalhas de ouro em Jogos passando referências como Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro e Nelson Évora (até o outro registo de haver o primeiro campeão olímpico português de sempre em território europeu passava um pouco ao lado perante a dimensão do feito supracitado). E foi a ideia de “jogo” que marcou a antecâmara da decisão depois de uma qualificação com saltos apenas para fazer apuramento com marcas modestas mas onde o atleta nacional foi o melhor (17,44). Pichardo, também um pouco “escaldado” do picanço com jornalistas espanhóis em Roma, só queria falar depois da final. Díaz ia baixando a fasquia, dizendo que era preciso ir com calma e que uma prata ou um bronze já ia ser excelente quase como se tivesse havido uma lavagem cerebral à personalidade confiançuda dos Europeus. Zango dizia estar só a pensar em si. Hibbert dava graças por garantir o apuramento. Ninguém se “assumia”.

Era assim que chegava a decisão mais esperada entre tantas finais no atletismo. A estafeta dos 4×100 metros masculinos é sempre um ponto alto, a final feminina dos 10.000 metros é uma prova sempre emblemática, mas era no triplo salto masculino que entroncava a disputa mais aguardada com um leque de potenciais medalhados e campeões maior do que é normal em muitas competições no atletismo. Até pela “rivalidade” crescente que se foi criando entre atletas que nasceram em Cuba mas assumiram outras nacionalidades ia ser mais um daqueles testes que ficam para a história, um pouco à semelhança dos últimos Campeonatos da Europa de Roma. Aí, a melhor versão de Pichardo ficou com a prata. Agora, em Paris, qualquer versão seria suficiente desde que ganhasse o ouro e esse era o principal objetivo desta final de 2024.

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Após ser apresentado como 12.º e última finalista, ainda de chapéu virado ao contrário na cabeça e um sinal de paz quando foi chamado nos altifalantes, Pichardo foi logo o terceiro a saltar por terceiro e colocou logo a fasquia a abrir nos 17,79, deixando Zango para trás (17,43). Durante várias tentativas o português foi tendo a melhor marca, tendo duas razões de preocupação até ao final da ronda inicial: a marca de Jordan Díaz, que passou para a frente com 17,86, e o salto de Andy Díaz Hernández, que ficou com 17,63. Na segunda ronda, tudo na mesma com mais sinais de alerta: Pichardo melhorou para 17,84 a dois centímetros do campeão europeu, que fez um salto nulo, mas Jaydon Hibbert apareceu com um 17,61 apesar de continuar a dar a sensação de que não estava a 100%, algo que já tinha levantado na zona mista depois da qualificação.

Começávamos a entrar na fase de assumir algum risco, tendo em conta que os três últimos saltos estavam garantidos. Pichardo, que entre saltos ficava sempre longe de todos os adversários a falar com o pai e técnico Jorge, que lhe ia dando algumas indicações, foi um bom exemplo disso mesmo, chegando a uma marca que podia superar os 18 metros num salto nulo onde tentou corrigir as chamadas demasiado afastadas que tinha feito nos dois ensaios nacionais. Bola para o lado de Díaz, salto a 17,85 que deixava tudo na mesma. Também o espanhol foi de imediato falar com Iván Pedroso, voltando depois para a zona onde está o banco de todos os finalistas. O “corte” não deixava de fora nenhum dos favoritos mas Yaming Zhu, que foi medalha de prata na última edição de Tóquio, não foi além dos 16,76 e ficou pela décima posição nesta final.

A inversão da ordem deixava Pichardo a falar para Díaz, que mantinha a capacidade de resposta ao que quer que o português fosse fazendo. No entanto, a quarta ronda voltou a não mexer em nada na classificação geral. Zango falhou o salto, Hibbert fez um nulo, Díaz Hernández voltou a prescindir da sua tentativa, Pichardo teve uma pequena passada em falso e chegou à chamada sem um balanço suficiente para fazer mais do que 17,52, Jordan Díaz continuava a mostrar consistência mas também não fez mais do que chegar a 17,84. A hora das decisões começava a chegar, com o risco a ter de aumentar entre os cinco primeiros.

Zango continuava a forçar mas a melhoria não permitiu que saísse da quinta posição (17,50), Hibbert por forçar voltava a mostrar aparentes problemas físicos na perna direita (sendo que tinha uma proteção mas no joelho esquerdo), Díaz Hernández continuava em terceiro depois de uma tentativa que saiu mal em tudo, Pichardo abdicou. Podia ser por razões físicas, podia ser por uma qualquer tática que não se percebesse mas prescindiu, deixando tudo para o derradeiro salto depois de uma tentativa falhada também de Díaz (17,25). Vestiu o casaco, sentou-se mais uma vez no banco onde estavam fotógrafos ao pé do pai, tirou um tempo só para si para se concentrar e rezar durante alguns segundos. Tinha de voar mas essa tentativa estava mesmo talhada a não dar mais do que prata, repetindo os 17,84 e ficando a três centímetros da histórica revalidação do título. Num concurso com seis saltos entre 17,81 e 17,86, Díaz voltou a ser melhor.