O final do discurso de Tim Walz, o candidato do Partido Democrata à vice-presidência dos Estados Unidos, encarnou toda a estratégia pensada para este discurso na convenção do partido. “Estamos no quarto quarter [última parte num jogo de futebol americano]. Estamos a perder por um golo, mas estamos a atacar e somos nós que temos a posse de bola. Estamos a avançar no campo e, acreditem, temos a equipa certa.”

A analogia entre a corrida eleitoral e o futebol americano serviram para enfatizar a imagem de Walz como um “tipo normal”, o candidato que fala a linguagem dos americanos e que distancia o Partido Democrata da imagem das elites que tantas vezes lhe está colada. A estratégia era clara: pegar no passado de Walz como treinador de futebol americano numa escola secundária para provar que ele é tão de carne e osso como os eleitores. Alguns dos seus antigos jogadores, agora adultos, subiram ao palco para falar sobre ele; a multidão tinha cartazes que diziam “Treinador Walz” e cânticos de “Treinador! Treinador! Treinador!” ecoaram na arena ao longo de todo o discurso do candidato a vice-presidente de Kamala Harris.

Todo o discurso foi pontuado por referências biográficas de Walz, até aqui desconhecido da maioria do público americano, para provar a normalidade do primeiro candidato à Casa Branca do partido que, desde Jimmy Carter, não estudou Direito. “Vocês podem não saber, mas nunca fiz grandes discursos como este. Mas fiz muitos discursos para galvanizar pessoas.”

Nascido no estado rural do Nebraska, o antigo governador do Minnesota relembrou o seu percurso como professor, membro da Guarda Nacional e até como caçador. “Apaixonei-me por dar aulas”, confessou aos presentes na convenção. “Tinha 24 miúdos na minha turma e nenhum deles foi para Yale.” Uma frase escolhida a dedo para provar que Walz sabe o que é a experiência de milhões de americanos comuns, cujos filhos não vão para as grandes universidades — e também um ataque velado a J.D. Vance, o candidato a vice-presidente dos republicanos, que tenta explorar as suas raízes populares, mas que estudou em Yale.

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E nada melhor para mostrar um lado humano do que falar da família, é claro. Walz não desperdiçou a oportunidade e recordou a luta que ele e a mulher, Gwen Walz, tiveram com a infertilidade — razão pela qual deram o nome de Hope à primeira filha, a que se seguiu mais tarde Gus. “Hope, Gus e Gwen, vocês são todo o meu mundo e amo-vos”, declarou o candidato a partir do púlpito. A reação emotiva do filho adolescente, lavado em lágrimas e a gritar com orgulho “Aquele é o meu pai!” enquanto apontava para ele, tornou-se rapidamente viral.

Um discurso que ofereceu políticas de esquerda no conteúdo, dentro de uma “embalagem de conservadorismo” no estilo

A lógica do discurso de Walz era claramente uma tentativa de conquistar eleitores nos estados do Rust Belt onde Trump foi buscar muitos votos em 2016 e 2020, como o Wisconsin, o Michigan e a Pensilvânia. E, como tal, não só o candidato a vice quis provar que é “como esses eleitores”, como tentou mostrar que já conseguiu no passado conquistar votos de eleitores da América mais rural e conservadora, lembrando a sua vitória numa zona semelhante na eleição para a Câmara dos Representantes do Minnesota, em 2006.

“Nunca subestimem um professor de uma escola pública”, avisou Walz. “Aprendi como trabalhar com a oposição em temas como o crescimento das economias rurais e no cuidado aos nossos veteranos e aprendi como fazer cedências sem comprometer os meus valores.”

Mas o candidato a vice-presidente também quis clarificar a sua agenda política alinhada com o partido. Recordando a sua experiência como caçador — disse ter “mais pontaria que muitos republicanos no Congresso” e “os troféus que o provam” —, posicionou-se relativamente à questão das armas. “Acredito na segunda emenda”, garantiu, referindo-se à alínea da Constituição que dá a todos os cidadãos o direito a ter uma arma. “Mas também acredito que a nossa principal responsabilidade é manter os nossos miúdos seguros.” Não por acaso, durante anos Walz teve a classificação mais positiva dada aos políticos pela National Riffle Association (a principal organização de lobby pró-armas do país), mas perdeu-a após o seu apoio a limitações nessa matéria na sequência do ataque armado ao liceu de Parkland, na Florida, em 2018.

A tentativa de provar que a agenda dos democratas não colide com os valores da “América profunda” foi constante, nomeadamente quando invocou a questão do aborto: “No Minnesota, respeitamos os nossos vizinhos e as escolhas pessoais que eles fazem. Mesmo que não concordemos com elas, temos uma regra de ouro: mete-te na tua vida“, afirmou. “Alguns tipos simplesmente não entendem o que é ser um bom vizinho.”

Depois, a mensagem tornou-se ainda mais clara com o foco no combate às dificuldades económicas. Enquanto os republicanos tentavam “banir livros das escolas”, disse, “nós estávamos a banir a fome das nossas”. “Se vocês são uma família de classe média ou uma família que está a tentar chegar aí, Kamala Harris vai baixar os vossos impostos”, prometeu. “Se querem comprar uma casa, Kamala Harris vão ajudar-vos a que o consigam fazer com menos custo.”

Um discurso que, no fundo, foi uma mensagem de políticas de esquerda entregue “numa embalagem de conservadorismo” no tom, como resumiu o site Vox. E, terminado o quarto tempo do jogo, Walz saiu ao som de Rockin’ in the Free World, de Neil Young.

Bill Clinton quer que os democratas sejam “duros”, Pelosi e Buttigieg falam no ataque ao Capitólio e “nas trevas”. Mas a surpresa da noite foi Oprah Winfrey a falar das “mulheres sem filhos e com gatos”

Ao longo de todo o discurso, Tim Walz nunca invocou os nomes de Donald Trump e J.D. Vance — porque não precisou. Aqueles que falaram antes dele focaram-se nos ataques diretos, embora sempre equilibrando a acidez com várias referências à ideia de “alegria” que dizem sentir nesta campanha democrata.

O caso mais evidente foi o do antigo Presidente Bill Clinton. Depois de descrever os sentimentos positivos, avisou que nunca se deve “subestimar o adversário”. “Estas pessoas são muito boas a distrair-nos, a semear dúvida”, reconheceu. “Mas como os Obama disseram de forma tão eloquente ontem, eles são humanos, sabem? Vão cometer um erro de vez em quando. E nós temos de ser duros.

Clinton não falou diretamente da campanha que a sua mulher, Hillary Clinton, perdeu para Trump em 2016, mas reconheceu erros do passado: “Vimos mais do que uma eleição escapar-nos quando achávamos que isso não podia aconteceu, quando as pessoas se distraíram por assuntos cínicos ou tiveram excesso de confiança. Este é um negócio brutal e duro.”

Por isso mesmo, embora uma vez mais sublinhando que Kamala Harris representa “felicidade” e “alegria”, o ex-Presidente não poupou quando decidiu referir-se a Donald Trump. “Ele fala sobretudo de si próprio. Por isso, da próxima vez que o ouvirem, não contem as mentiras. Contem os ‘eu’. As suas vendettas, as suas vinganças, as suas queixas, as suas conspirações”, aconselhou. “Quando Kamala Harris for Presidente, todos os dias vão começar por ‘tu, tu, tu'”.

Clinton até conseguiu incluir o que até há pouco tempo era o elefante na sala, aproveitou para relembrar à audiência que aquilo que tantas vezes foi apontado a Joe Biden como um defeito — a idade avançada — não é exclusivo do atual Presidente. “Vamos diretos ao ponto: os riscos são muitos e eu estou demasiado velho para dourar a pílula. Na verdade, fiz 78 anos há dois dias. E mesmo assim não sou tão velho como Donald Trump“, mencionou, marcando a distância não pela idade física (ambos nasceram no mesmo ano), mas pela das ideias.

E os ataques não foram exclusivos de Bill Clinton. Nancy Pelosi, a antiga presidente da Câmara dos Representantes, aproveitou a sua intervenção para relembrar o papel de Trump no ataque ao Capitólio (“Não nos esqueçamos de quem atacou a democracia a 6 de janeiro. Foi ele.”) e o atual secretário dos Transportes, Pete Buttigieg, aproveitou para sublinhar “as trevas” da candidatura republicana, por oposição a um desejo dos americanos de uma política mais positiva. “Pelo menos Mike Pence era educado”,  afirmou, sublinhando um maior radicalismo nesta candidatura do Partido Republicano do que na de 2016. “J.D. Vance é um daqueles tipos que que acha que se não tiveres a vida que ele acha que deves ter, então não contas para nada.”

Mas a verdadeira surpresa da noite foi quando subiu ao palco a apresentadora Oprah Winfrey, que não tinha sido anunciada como oradora. O tom foi o mesmo dos outros oradores, opondo o contraste do “otimismo sobre o cinismo”, “do senso comum sobre o nonsense“, “da doce promessa do amanhã sobre o regresso amargo ao ontem”.

E até Oprah Winfrey, há muito associada ao Partido Democrata mas longe de ser uma política profissional, enfrentou J.D. Vance, referindo-se aos seus comentários sobre o país estar a ser gerido por “um bando de mulheres com gatos que se sentem miseráveis com as suas vidas”. A estrela televisiva — que não tem filhos nem gatos, mas vários cães — foi taxativa.

“Não somos muito diferentes dos nossos vizinhos”, assegurou Oprah. “Quando uma casa está a arder, não perguntamos qual a raça ou religião dos donos. Não nos questionamos sobre quem são os seus companheiros ou em quem votaram. Não. Tentamos fazer o melhor possível para os salvar. E se aquela casa for de uma senhora sem filhos que tem um gato… Bem, tentamos tirar o gato também.