Sesimbra de Patrícia Reis; Cascais de Rita Ferro; Lisboa de João de Melo
Fotografia: Libório Manuel Silva
Traduções: Sara Veiga (1 e 2); Deolinda Adão
Editor: Centro Atlântico
Páginas: 68, bilingue, cada-dura
Preço de cada volume: 15,90 €
Imodestamente apresentada pelo editor-fotógrafo Libório Manuel Silva como “um dos principais acontecimentos literários de 2024”, esta coleção Portugal formada por tantos volumes quanto as oito letras da palavra que anuncia o país — mas de que apenas se conhecem os títulos e autores já publicados (há também Setúbal de Bruno Vieira Amaral) — tem originalidade, sim senhor, mas o hiperbolismo promocional tem mais de propagandístico do que de efetivo, não só porque, em todos os sentidos, é ainda demasiado cedo para uma avaliação completa e comparativa, como internamente não podem deixar de haver uns livros mais conseguidos que outros, pela própria diferença de mérito entre os autores entre si. Até o fotógrafo de todos vacila, e basta perceber — e por enquanto — a queda que vai do portefólio de Cascais e Sesimbra ao de Lisboa, sendo este, pela hiper-abundância das imagens disponíveis, muito mais exigente que os demais, mas sem desprimor destes. Tratando-se duma coleção bilingue, para ser lida por estrangeiros visitantes, faltou ao editor o elementar bom senso de incluir numa página uma nota biobibliográfica sobre cada um dos autores.
O primeiro livro lançado foi Sesimbra de Patrícia Reis, uma narrativa sobre a velha vila piscatória, recortada pela tesoura ripada da lenga-lenga esquerdista, sem que à beira de 1974 o gentil reduto de turismo qualificado — o Hotel do Mar dos irmãos Alcobia, com o arquiteto Francisco da Conceição e Silva, de impactante e inovadora presença moderna desde 1963 — seja mencionado uma única vez. A autora, que não consegue ir além de chavões, dá destaque “à extensão do envolvimento dos gémeos do Rocha na luta antifascista” (p. 27), ao “fim do processo das três Marias, as escritoras condenadas pelo outro regime e que agora [Maio de 1974] se viam ilibadas” (p. 29) e àquele “modo de viver, entre os princípios do partido comunista do meu tio Júlio e a autoridade do senhor padre, de quem a minha avó teve de aprender a gostar” (p. 37), mais o indispensável “feminismo” da irmã Rosa Maria, que “meteu na cabeça que era bom estudar e fazer a faculdade” (p. 33) e a “primeira mulher primeiro-ministro, Maria de Lurdes Pintassilgo” em 1979-80 (p. 41)… Fraca história familiar, pontuada pelo incontornável luto dos pais e, faltando o caviar do adjetivo, pelo “arroz de carabineiros e ostras”, pois “uma pessoa não resiste a uma tentação dessas” (p. 53). Duas estrelas.
Rita Ferro é que sacudiu há muito os pré-conceitos (ou “intimidações sociais”, p. 19) e abre a primeira linha do seu Cascais com uma referência ao clube aristocrático fundado em 1879 por D. Carlos de Bragança, para subverter a convenção dos papéis sociais no romance quase interdito entre o plebeu António e Pureza, “loira e esplêndida” (p. 17), “a menina mais cobiçada de Cascais” (p. 31). O encontro de ambos no “edifício decadente e sem grande traça” da Parada é já sinal de reconhecimento da crise de velhas convenções, que se haviam alimentado de “séculos de astúcias para nos manter à distância” (p. 15). A perplexidade e o “desconforto” dele diante dum ambiente decorativo hostil oscila agora entre “a ilusão patética de sermos admitidos ao seu mundo ou tratados como iguais» e um sentimento de “irrelevância, submissão e infimidade” gerado por uma insegurança atávica, “premeditada por terceiros”, que faz António “trémulo como uma beldade assustada por um gorila” (p. 23).
Rita Ferro sabe bem, desde logo por história familiar, que “é a adversidade que gera, quase sempre, a originalidade, a preseverança, o génio”, e por isso a autora de A Menina É Filha de Quem? — extraordinário título! — está como peixe na água para assumir a tarefa de criar uma história a pretexto desta vila-cidade cuja sociologia mudou muito desde a época das “festas de benemerência promovidas pelas senhoras da alta sociedade” (p. 7), e em que “todos acabariam por ganhar com a democratização da vila” e “Cascais sobreviveu, orgulhosa” (p. 33). À época do primeiro capítulo do livro, a aspereza das exclusões sociais prevalecentes não atormentava apenas o íntimo do “rústico como eu, dentro de um colete mal talhado e, sobretudo, estrangulado por uma gravata espumífera de falsa seda”, ela manifesta-se também na relutância do altivo guarda Raposo, quando enfim Pureza aparece e lhe indica que António é convidado seu: “A menina é que sabe… (“… a que se quer arriscar”, seria a frase completa), p. 29.
Escritora de ofício que sabe corresponder ao que lhe é pedido, Rita Ferro transfere depois os ócios do casal para um roteiro daquela generosa parcela do litoral, assinalando figuras e factos históricos dignos de nota, ou de serem dados a conhecer aos leitores de língua inglesa a que esta coleção também se destina, sem todavia omitir as pequenas rivalidades locais, que uma conhecida quadra snob tipifica. E sabendo quanto as redes sociais reaproximam pessoas que há muito se afastaram mas não se esqueceram, vale-se delas para o reencontro de antigos namorados que a guerra colonial começou por apartar, ao mesmo tempo que recorre a dois graciosos trocadilhos gastronómicos para se referir à condição suburbana que o abatimento da classe média instituiu. Quatro estrelas.
Lisboa de João de Melo é o quarto título desta coleção (o terceiro, de Bruno Vieira Amaral, não o recebi), e nele, em fundo de cena, está claramente plasmada a história pessoal do autor de Gente Feliz com Lágrimas e de O Meu Mundo Não É deste Reino, marcada pela insularidade e pela guerra colonial. Não estamos perto de Lisboa, Livro de Bordo de José Cardoso Pires (1988) ou, mais remotamente, de Lisboa: O que Um Turista Deve Ver de Fernando Pessoa (1925), embora o livro de Melo também comece com uma entrada pela barra do Tejo. O escritor preferiu evocar — quase enfabular — a sua própria surpresa juvenil no primeiro contacto com “a auspiciosa cidade”, “a entrar-lhe pelos olhos dentro” (p. 9), “como se ela fosse, em si mesma, a fonte donde emanava a própria luz” (p. 15), uma perspetiva que, tal como a do inesquecível A Cidade Branca de Alain Tanner (1983), lhe facilita um primeiro descritivo dessa cidade “futura, a única e numerosa cidade da sua vida” (p. 19), em que a matriz oceânica do autor se repercute perpetuamente, tanto quanto a condição auto-reflexiva do escritor — como a avalia nas páginas seguintes, cap. III — se distinguirá da do fotógrafo que vê e interpreta (“dois criadores desencontrados”, que é preciso reunir “no mesmo exame de observação da vida”, p. 37).
Ao contrário de Reis, que tem 53 anos, e de Ferro, com 69, Melo, nascido em 1949, traz consigo um maior e mais vívido peso do antigo regime e, por isso, carrega nas tintas que esta coleção perspectivada pelos 50 anos da Revolução dos Cravos põe à sua disposição, tintas agora também adensadas por novos ímpetos reparadores, sejam anticolonialistas sejam anti-esclavagistas. “Vivemo-la, no passado, a preto e branco, por entre o claro-escuro dos poderes que a governaram” (cap. “A cidade do ditador”, p. 39), “avenidas, ruas, torres e ruas” tornadas “fantasmas submersos pela bruma ditatorial” (p. 47), numa «cidade toldada, onde até as nuvens tomavam a forma de fantasmas para nos assustar”. Segundo diz, “a ditadura do espírito que durante quarenta e oito anos imperou sobre nós”, “gente exaltada pelo passado heroico, e pouco ou nada pelo tempo presente”, desfez-se num instante, no salvífico dia de “libertação” da “nossa finalmente amada Lisboa do seu povo” (p. 49). É bem caso para se perguntar como foi que esse fardo, ou ferida, de meio século não desaparece no idêntico período que se lhe seguiu, a ponto de o fim João de Melo nos contar a história duma mulher que, procurando libertar-se dum casamento nefasto, percorre todos os bairros lisboetas numa errância inútil para reencontrar “esse homem, de quem se perdera de amores desde a última visita à cidade literária onde morava” (cap. “Amor num copo de vinho”, p. 51). A embriaguez revolucionária de 1974 tem ainda os seus próprios ressacados, ou órfãos, e sobre eles exerce a sua feroz ditadura — mas de sinal benigno, claro. Três estrelas, e mais nenhuma.