A viver numa caravana com a mulher e dois filhos, no início dos anos 1970s, Stephen King estava longe de imaginar que seria o autor que é hoje, quando ainda dava aulas de inglês numa escola pública e publicava contos e novelas em revistas masculinas. Carrie, publicado originalmente em abril de 1974, e reeditado agora em Portugal pela Bertrand numa nova edição comemorativa dos cinquenta anos, com prefácio de Margaret Atwood, mudou tudo.

Era um escritor diferente naquela altura, como o próprio descreve em Escrever, obra útil para quem ambiciona – e não só – ser um escritor, mas também uma biografia sobre o ato de escrever, que se debruça sobre a própria experiência de King. O norte-americano procurava, há anos, temas populares que pudessem interessar a quem quisesse comprar as suas histórias. Um misto de sobrevivência e, em retrospetiva, uma aprendizagem forçada para abrir horizontes, encontrar os grandes temas em histórias atípicas, tornar o estranho em cultura popular e desmontar algumas especificidades do modo de vida americano e as suas pessoas.

Carrie, como muitas obras que se tornaram num fenómeno cultural, foi resultado de um feliz acaso. Foi-lhe pedido uma história para a revista masculina Cavalier com uma personagem feminina e sobre menstruação. King começou a escrevê-la mas não gostou do resultado, sentia que a história não ia a lugar algum e, pior que tudo, sentia-se incomodado por estar a escrever uma história do ponto de vista feminino. Acaba posta de lado, no lixo, até que Tabitha, a esposa, encontra, lê umas páginas e incentiva-o a continuar. Alguns anos depois tornar-se-ia no primeiro romance publicado por Stephen King. Dois anos depois, em 1976, o filme de Brian de Palma catapultou as vendas do livro. A carreira de Stephen King estava lançada.

O pitch da Cavalier surge logo nos primeiros momentos, umas raparigas estão a tomar banho no balneário feminino de uma escola, depois de uma aula de Educação Física, e uma delas começa a ter o período. A adolescente entra em pânico, não sabe como reagir, não necessariamente por embaraço ou desconforto, mas porque, em primeiro lugar, pensa que algo de mal lhe está a acontecer. Em simultâneo, as colegas começam a gozar com Carrie White, em parte porque ela já era alvo de gozo por ser uma rapariga estranha; por outro pela situação – o pior acontece aos desalinhados nos piores momentos -, agem como se aquilo fosse mais um apontamento daquela estranheza, riem-se, atiram tampões e pensos higiénicos para o chuveiro para que Carrie resolva o assunto.

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A edição especial do 50.º aniversário, com chancela da Bertrand e prefácio da escritora Margaret Atwood

Uma professora intervém na situação, primeiro começa por ter uma atitude não muito diferente das colegas de Carrie — não se ri, mas age com dureza num estilo de “resolve isso miúda” – e à medida que a cena se desenvolve vai percebendo que algo está de errado, desenvolve uma certa empatia no momento que concilia também o espectador com a protagonista naquele momento: é uma vítima, sim, mas vemo-la para lá disso.

A chave aqui, o elemento de estranheza em cima da estranheza, é aquele momento é a primeira vez que Carrie White está a menstruar. Tardiamente, aos dezasseis anos, e sem qualquer conhecimento da situação, e daí que se questione logo naquelas páginas: mas a mãe nunca lhe falou disto. Outro elemento da estranheza, a mãe Margaret, uma devota religiosa que vive praticamente fechada em casa, que condiciona a vida da filha e tem uma série de macaquinhos muito próprios na sua cabeça. Nesta cena, a do chuveiro, o escritor conta não contando várias especificidades de Chamberlain, Maine, os diferentes estratos sociais, dinâmicas de pequena cidade e a pobreza escondida. Este último importa, King nasceu no Maine (em Portland) e cresceu conhecendo as especificidades da pobreza naquele estado e de como se esconde. Carrie é inspirada em duas raparigas que conheceu na escola.

Em poucas páginas, Stephen King cria um conjunto de personagens que, a partir de poucos elementos, nos dão muito. Revela-se logo um dom para a trama e, sobretudo, para diferentes leitores encontrarem aqui diferentes coisas. Não é preciso gostar de histórias de horror, com elementos sobrenaturais, para gostar de Carrie. Elementos sobrenaturais, pois, há telecinesia metida ao barulho. Se já leu ou viu alguma das adaptações de Carrie, sabe que isso existe, se nunca leu ou viu, aqui vai.

Carrie manifesta telecinesia. Ao longo da sua vida, coisas estranhas aconteceram à sua volta, para as quais nunca conheceu explicação. Objetos moviam-se, ela conseguia controlar objetos, embora sem realmente ter noção. Stephen King prepara bem o leitor para o expoente máximo desta manifestação, a noite do baile de finalistas/prom. É uma cena que faz parte do imaginário coletivo graças ao filme de De Palma: no baile de finalistas, Carrie e Tommy, o seu parceiro de baile, são eleitos como rei e rainha da noite e, no momento de aceitação e celebração do prémio, um balde de sangue de porco cai em cima de Carrie. A cena continua com Carrie a usar os seus poderes para se vingar de todos os presentes.

O filme cresce para este momento. O livro é bem diferente, o leitor sabe que algo aconteceu — ou acontecerá — logo nas primeiras páginas. Em parte devido à estrutura do romance, um romance epistolar, em que vários narradores vão contando a história na sua perspetiva. King arrisca e conta partes da história através de estudos e artigos escritos momentos e anos depois do que aconteceu em Chamberlain. O filme, mais presente no imaginário coletivo, restringe tudo a uma mão cheia de eventos na cidade, no livro é a cidade toda que é destruída por Carrie: a última vingança.

O leitor vai conhecendo os poderes de Carrie através de relatos, descrições. Isso permite usufruir as várias camadas do romance que vão para lá dos efeitos primários do horror e do sobrenatural. Porque Carrie é, sobretudo, uma história de vingança que expõe dinâmicas que depois se tornaram populares nas décadas seguintes na cultura popular na ficção em volta da escola secundária. No filme de De Palma, a audiência vê os poderes de Carrie serem manifestados logo no início e sabe que ela sabe deles porque vai para a biblioteca da escola ler sobre o assunto: uma cena que virou ferramenta para muitos argumentistas/realizadores mostrarem as personagens a ter conhecimento das coisas.

[o trailer da versão de Brian de Palma, de 1976]

O baile dos finalistas entra no imaginário da cultura popular. A forma como tudo acontece no livro de King, seja a expectativa, os jogos de sedução, os vestidos, o durante e até o depois – há sempre algo marcante que acontece — define a forma como esse evento é retratado na ficção norte-americana nas décadas seguintes, até hoje. Mas há também, dentro do imaginário de escola, outro elemento importante que é o de vingança. Em última instância, Carrie é sobre a vingança final da protagonista. Ele é gozada, novamente, e usa os seus poderes em todos aqueles que se riem dela. Esse é o momento para o qual Stephen King nos prepara, a apoteose. Mas parte do livro é também sobre outra vingança, a dos colegas sobre ela, que se sentem injustiçados pelos castigos e repreensões que receberam por terem gozado com Carrie White.

A cabeça dos adolescentes é muito confusa, mas está aqui o ABC de tantas histórias sobre adolescentes que se seguiram. E o cenário de Carrie é um que se molda aos tempos, não só por causa da estranheza do momento em que a primeira menstruação de Carrie acontece, mas porque, lá está, as ideias de vergonha/injustiça/vingança que existe no livro é universal. Por exemplo, na adaptação de 2013 de Kimberly Peirce, Carrie (interpretada por Chloë Grace Moretz) vê a sua humilhação exponenciada pelos novos tempos: as câmaras dos telemóveis filmam o seu momento do chuveiro e o posterior embaraço e os vídeos são partilhados, mostrados, ficam para a posterioridade.

Mas esse é um cenário que nos 1970s Stephen King estava longe de imaginar. A Carrie que imaginou foi, primeiramente, uma história que reanimou o interesse por um género literário – o horror – que estava pouco em moda e que se mostrava a acontecer em situações quotidianas, reconhecíveis a qualquer norte-americano. No fundo, trazia o inesperado, o sobrenatural, para as casas, para a vida familiar.

Feliz consequência, o filme de Brian De Palma, dois anos depois da publicação do romance, e a Carrie de Sissy Spacek, são, igualmente, dínamos para o cinema de terror daquela década e, também, para a padronização de uma série de elementos que se tornaram costume na ficção audiovisual, de terror e não só. Carrie trouxe o terror para o mainstream, para as massas, e, sobretudo, o estranho, a convivência com o estranho para o quotidiano. Muitos aprenderam a ler terror com Stephen King, muitos aprenderam a ver terror com Carrie e as histórias de adolescentes na escola nunca mais foram as mesmas.