Dores abdominais provocadas por “dificuldades intestinais” e uma “possível infeção urinária” foram os motivos apresentados pela advogada de Dominique Pelicot para que a presença do homem em tribunal fosse dispensada. Esta segunda-feira foi o sexto dia de audiências do julgamento do crime que está a chocar França. O homem é acusado de, durante 1o anos, ter drogado a ex-mulher, Gisele Pelicot, para deixá-la num estado de inconsciência total e permitir a sua violação por dezenas de homens desconhecidos que encontrava online.

Violada 100 vezes por 80 homens a mando do marido. O caso de Gisèle Pélicot que está a chocar França

Esta segunda-feira, Dominique Pelicot permaneceu durante poucos minutos na bancada do Tribunal de Avignon, no sul de França, até a sua advogada, Béatrice Zavarro, mencionar os problemas de saúde que o seu cliente enfrentava e obter do juiz presidente, Roger Arata, a sua dispensa para o dia.

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Dominique Pelicot seria ouvido esta terça-feira em tribunal, mas por persistirem os problemas de saúde que a defesa alega ter, foi mais uma vez foi dispensado. Entretanto, a SkyNews avança que o juiz ordenou que o réu fosse sujeito a exames médicos no hospital, para onde foi transportado.

É esperada uma decisão nos próximos dias em relação ao agendamento do testemunho do homem. Segundo a advogada de Pelicot, o homem de 71 anos quer comparecer no tribunal para se explicar e pedir desculpas à ex-mulher. Quando descobriu os crimes de que tinha sido vítima, no final de 2022, Gisele Pelicot divorciou-se do agressor.

Apesar de o próprio não ter estado presente na sala do tribunal, a personalidade do ex-marido de Gisele Pelicot foi dissecada esta segunda-feira por uma equipa composta por um investigador de personalidade, um psicólogo e dois psiquiatras. Os especialistas, citados pelo Le Monde, enumeraram uma “ausência de traços de personalidade marcantes”, “uma relação correta com a realidade”, “ausência de patologia mental” e “ausência de antecedentes psiquiátricos” em relação a Dominique Pelicot.

As conclusões dos especialistas validam as descrições recolhidas junto de pessoas próximas à família que descrevem o agressor e violador em série enquanto um “pai inegavelmente presente e amoroso”, “muito envolvido na educação dos seus netos” e “um patriarca que respirava felicidade”.

Face a estas conclusões, levantou-se no tribunal a questão: como foi possível o francês ter uma vida dupla em que planeava e executava a violação sucessiva da mulher ao mesmo tempo que mantinha uma vida familiar, à primeira vista, equilibrada? Questionados em tribunal, os especialistas que estudaram o caso invocaram o conceito de “cisão” — um mecanismo de defesa psicológica que permite que “duas personalidades opostas, que vivem duas vidas diferentes, possam coexistir dentro do mesmo indivíduo”.

“Não é esquizofrenia, não é um processo delirante, não é algo que faz perder o contacto com a realidade”, esclareceu o psiquiatra Laurent Layet, referindo que o agressor sexual nuns momentos atuava enquanto tal e noutros “alterava o disco rígido” e atuava como marido, pai e avô dedicado e preocupado que os familiares e amigos próximos descrevem.

Os traumas sexuais que terão provocado a fragmentação da personalidade de Dominique Pelicot

“Dominique Pelicot vem de uma família com uma história confusa e marcos conturbados, marcada por segredos e pela existência de relações sexuais entre adultos e menores“, leu em tribunal o especialista que estudou a formação da personalidade do homem de 71 anos. Revelou que Dominique, nascido em 1952, é o segundo filho de Denis Pelicot e Juliette Rousseau, que já tinha dois filhos com André Pelicot, irmão mais velho de Denis. Ou seja, as quatro crianças eram ao mesmo tempo meios-irmãos e primos.

Poucos anos após o nascimento de Dominique Pelicot, os seus pais adotaram uma menina com deficiência mental, Nicole, vítima de incesto dentro da família que a acolheu. A informação foi obtida a partir do depoimento de Dominique e corroborada por dois outros irmãos que prestaram declarações.

O homem, que é o principal acusado de fazer com que a sua mulher tenha sido violada dezenas de vezes ao longo de uma década por dezenas de homens que recrutava, terá tido uma infância e adolescência marcada pela violência verbal e física por parte do pai. Aos 9 anos, foi vítima de abuso sexual por uma enfermeira do hospital Châteauroux. Além disso, segundo apuraram os especialistas, foi confrontado precocemente com a sexualidade dos pais, assistindo a atos de violência sexual do pai para com a mãe.

Aos 14 anos terá ainda estado envolvido na agressão sexual de uma jovem num estaleiro de construção, na qual terá sido obrigado a participar por outros agressores. “O disco rígido fica fragmentado porque teve que lidar com essas coisas. É nestes momentos que nasce a divisão”, descreveu em tribunal o psiquiatra francês Laurent Layet.

O julgamento do caso começou na semana passada no Tribunal de Avignon, no sul de França, e previa-se que durasse quatro meses, sendo expectável que o atraso no testemunho do principal acusado adie a data da leitura da sentença.

Dominique Pélicot, de 71 anos, e os outros 50 acusados podem ser condenados a 20 anos de prisão se forem considerados culpados do crime de violação agravada. Os investigadores do caso não conseguiram, até agora, identificar e localizar os mais de 30 outros homens que surgem nas gravações dos atos de violência sexual. Por vontade da própria vítima, todas as audiências do julgamento serão públicas. Gisèle Pelicot não queria um julgamento à porta fechada porque entende que “era isso que os seus agressores quereriam”.