Duas mensagens, um vídeo, dois depoimentos arrasadores. A investigação ao que aconteceu ao Titan está a revelar avisos ignorados, falhas de segurança e materiais inapropriados que deixavam adivinhar uma tragédia.
A Guarda Costeira dos Estados Unidos da América mostrou na segunda-feira as últimas palavras que saíram do Titan, antes de implodir a 18 de junho do ano passado numa expedição ao Titanic matando os cinco ocupantes. Ao mesmo tempo divulgou as primeiras imagens do que sobrou do submersível que prendeu as atenções do mundo: a cauda em cone que se partiu durante a implosão, ao lado de cabos e outros destroços da embarcação no fundo do Atlântico.
Footage of the tail cone from the Titan submersible was shown in the first two days of a formal hearing by a Coast Guard panel into the disaster. The hearing has raised basic questions about the deaths of the five passengers. https://t.co/IS7vAHHeau pic.twitter.com/fNbkIm6RHX
— The New York Times (@nytimes) September 18, 2024
O vídeo agora tornado público numa audiência que começou na segunda-feira e se prolonga até ao dia 27 deste mês para averiguar as causas do desastre — e que está a ser transmitida em direto — foram recolhidas pelas equipas de socorro, através de um ROV, um veículo subaquático operado remotamente.
Na apresentação feita no arranque da audiência, na Carolina do Sul, a Guarda Costeira explica que no dia 22 de Junho de 2023, às 10h50 (hora local), o ROV “descobriu o cone da cauda e outros destroços do Titan no fundo do mar após uma busca exaustiva”. E recorda como “esta descoberta levou à prova conclusiva da perda catastrófica do submersível e da morte de todos os cinco membros a bordo”, quatro dias depois de o navio mãe, o Polar Prince, ter perdido o contacto com o Titan.
“K” e “a” como códigos
Na reconstituição do que aconteceu antes da implosão, a Guarda Costeira refere como a tripulação do Polar Prince falava com o Titan durante a descida. Usavam códigos simples como “a” para confirmar a receção de mensagens e “k” para dizer que os sistemas de comunicação estavam a funcionar.
O contacto entre as duas embarcações fluiu normalmente desde a partida do Titan, às 9h14, até às 9h53, quando o Polar Prince perguntou se o Titan ainda o conseguia ver no seu ecrã de informações. Mas não obteve resposta.
Oito dias de expedição por 250 mil dólares. Como é a embarcação que desapareceu no Atlântico
Foram 15 minutos de silêncio, 15 minutos de tensão no navio de apoio. Às 10h08, o Titan respondeu com “k”, explicando que havia perdido temporariamente o sistema de comunicação. E depois chegou uma mensagem tranquilizadora do mergulhador francês Paul-Henry Nargeolet, um dos maiores especialistas do Titanic e um dos cinco passageiros: “Aqui tudo bem”.
Ainda houve mais uma mensagem antes do silêncio total. Foi enviada às 10h47, numa profundidade de 3.346 metros. Era uma informação técnica.“Deixamos cair dois wts” — que significa que tinha libertado dois pesos de queda —uma manobra normal para melhorar a flutuação.
O Polar Prince ainda enviou a mensagem “perdi o rasto” entre duas e três vezes por minuto, mas nunca chegou qualquer resposta. O Titan deveria ter voltado à superfície às 15h00 o que não aconteceu.
Sucederam-se quatro dias de buscas. Às 10h50 (locais) do dia 22 de junho de 2023, o PelagicResearchServices 6000, um ROV, efetuou duas operações no fundo do oceano, onde conseguiu descobrir o cone da cauda e outros escombros do Titan, recuperando restos mortais dos passageiros. O submarino estava apenas a 300 metros do Titanic.
Mas afinal, o que se passou? Na audiência — em que a Guarda Costeira quer apurar “se existem provas de que qualquer falha de material (física ou de conceção) esteve envolvida ou contribuiu para o acidente ou se algum certificado contribuiu para o acidente” —, estão a ser ouvidos especialistas e funcionários da OceanGate, a empresa proprietária do Titan. E até agora confirmaram-se alguns dos problemas que foram mencionados depois do desastre como, por exemplo, o facto de “nunca ter sido solicitada a inspeção da Guarda Costeira”.
Na síntese da apresentação, a Guarda Costeira dos Estados Unidos, frisa que, numa expedição de 14 de junho a 25 de julho de 2022, o submarino foi testado, sendo que teve apenas 7 mergulhos bem sucedidos entre os 13 tentados até ao Titanic.
Além disso, foram identificados 48 problemas de equipamento durante esse período: baterias descarregadas; plataforma danificada durante a recuperação; uma avaria nos pesos de queda; propulsores mapeados em sentido contrário; entre outros.
Submersível ficou no parque de estacionamento sete meses sem proteção
A lista de práticas desajustadas continua. Depois dessa expedição, o submersível não foi armazenado de forma adequada: ficou no parque de estacionamento das instalações costeiras sem qualquer tipo de proteção durante sete meses — de 26 de julho 2022 a 6 de fevereiro de 2023.
Em abril de 2019 o submarino completou um mergulho a 3.760 metros de profundidade com quatro tripulantes. Em junho do mesmo ano, um piloto da OceanGate identificou uma grande fissura na superfície interna do casco de fibra de carbono. Em outubro de 2019, o casco do submarino mostrou “sinais de fadiga” ao ser testado pela Deep Ocean, tendo sido reduzido.
Mais: a pressão do funcionamento do Titan foi testada apenas 1,09 vezes, sabendo que a norma do sector é 1,25 vezes e duas vezes em cada 5 anos. Muitos dos mergulhos teste mostraram variados problemas.
Em 2013, foi assinado um contrato com a Universidade de Washington, para que o aparelho pudesse ser desenvolvido, construído e testado, no Laboratório de Física Aplicada por um valor de 5 milhões de dólares (4,5 milhões de euros), com um prazo estimado de 30 meses. Mas em 2015 e 2016, os testes de modelos falharam. Ainda assim, em 2017, o casco de fibra de carbono foi acabado pela Spencer Composites, mas sem qualquer tipo de supervisão por parte da Guarda Costeira ou outra entidade competente.
Na audição ficou claro que não foram efetuados ensaios não destrutivos (NDT) no casco e que o plano inicial de utilizar fibra de carbono na sua construção não foi avante devido a falhas nos modelos. Por sua vez, optaram por titânio — fabricados pela Titanium Fabrication Corporation (TIFAB) — mais uma vez, sem qualquer supervisão da Guarda Costeira ou da entidade certificadora, sabendo que as regras não permitem a utilização de compósito de fibra de carbono em Viaturas de Pressão para Ocupação Humana (Pressure Vessels for Human Occupancy (PVHO’s)).
Foram apontadas várias críticas à comunidade de exploração marina, entre elas, ao design não convencional do aparelho e verificações independentes padrão nunca feitas por decisão do fundador da empresa.
Titan foi atingido por um raio
Durante a audiência, Tony Nissen, ex-diretor de engenharia da OceanGate, revelou ainda que a embarcação tinha sido atingido por um raio durante um teste em 2018, o que pode ter comprometido a funcionalidade do casco. A Guarda Costeira acrescentou que nunca foram feitos testes independentes a esta peça.
Nissen explicou que acabou por ser demitido em 2019 por afirmar que a embarcação “não estava a funcionar como esperado” e se opor à circulação do submarino na expedição ao Titanic. O ex-diretor de engenharia da empresa recusou mesmo viajar no Titan, mesmo tendo sido convidado, afirmando: “Eu não vou entrar nisso”.
Por fim, expôs que Stockton Rush, o fundador da OceanGate — que também morreu no Titan bem como o explorador britânico Hamish Harding, Paul Henri Nargeolet, o milionário britânico-paquistanês Shahzada Dawood e o filho Suleman, de 19 anos —, se concentrava excessivamente nos custos e prazos estabelecidos, o que o tornava num colega difícil, mas mantinha os seus conflitos com o chefe em segredo.
OceanGate foi avisada de que a expedição poderia ter problemas “catastróficos”
Por seu turno, David Lochridge, antigo diretor de operações da OceanGate, num dos depoimentos mais esperados, voltou a dizer que alertou a empresa para as questões de segurança, mas ninguém o escutou. Referindo que as normas de segurança eram desrespeitadas sublinhou que uma tragédia deste tipo era “inevitável”.
Aliás, acusou, toda a ideia” da OceanGate era “fazer dinheiro, havia muito pouco de científico”. Já em 2017 apresentara as suas dúvidas sobre a forma como o Titan tinha sido construído. “Não tinha qualquer confiança e fui muito claro sobre isso, e ainda sou”, disse.
Lochridge acabou por ser despedido em 2018 e processado pela OceanGate, alegando divulgação indevida de informações confidenciais aos reguladores.
Nesta quarta-feira, o antigo responsável da empresa também relatou que Stockton Rush fizera colidir um outro submersível em 2016, depois de tentar pilotar a embarcação até ao navio transatlântico Andrea Doria, naufragado na costa de Massachusetts.
Nessa viagem caótica, irritado, Rush atirou os controlos do submersível a Lochridge, depois de um passageiro ter pedido que outra pessoa assumisse o comando quando, segundo este ex-funcionário, Stockton levou a embarcação para muito perto do Andrea Doria. Teve dificuldades em manobrar o submersível, entrou em pânico, e só cedeu o controlo quando o passageiro, em lágrimas, lhe gritou.
Algumas figuras importantes da OceanGate, como Wendy Rush, viúva de Stockton Rush e diretora de comunicações da empresa, não irão depor nesta audiência. No entanto, outros ex-funcionários da companhia, como Guillermo Sohnlein, co-fundador da OceanGate, deverão prestar depoimentos durante as próximas sessões.