Aqui há uns anos, já não sei a que propósito, dei por mim em casa do músico João Coração, na zona de São Bento, em Lisboa. Na altura, ele já estava desaparecido das lides musicais há uns anos e era recorrente perguntarem-me “O que é que aconteceu ao João Coração?”. Sem revelar muito (porque ele gostava de manter a sua vida pessoal privada), eu costumava responder que tinha ido viver a sua vida.
Presumo que nessa noite estivéssemos ambos a viver a nossa vida – mas de uma forma particular: sentado no sofá, fiquei a ouvir as canções que ele acumulara desde Muda que Muda, o seu segundo e maravilhoso disco, datado de 2009. E o que ouvi deixou-me atónito: melodias pop perfeitas, umas atrás das outras, numa sucessão de pérolas escondidas que o mundo desconhecia.
Perguntei-lhe o que ele pretendia fazer com aquele tesouro, aquele baú de dezenas de canções por acabar — mas repletas de potencial — e ele não se manifestou muito preocupado. Isto não me devia admirar: anos antes, quando o entrevistei a propósito de Muda que Muda (dessa feita na mesma casa de Sesimbra onde fora gravado o seu disco de estreia, Nº 1 Sessão de Cezimbra), vi-o criar à minha frente, do nada, um par de gloriosas peças pop, que ele não se deu ao trabalho de gravar ou transcrever para pauta. Coração não estava propriamente preocupado com o destino daquele par de preciosidades que acabara de inventar – o tipo de melodia com que um músico sonha a vida inteira: “Eu faço muitas coisas destas”, disse, e seguiu com a conversa e com a música, como se nada fosse.
[o álbum “Soberana”, na íntegra no Spotify:]
Quinze anos depois, Coração regressa com um disco de pop perfeita e imaculadamente burilada – o tipo de disco que imaginámos, há 15 anos, que iria suceder em pouco tempo a Muda que Muda, antes de ele desaparecer para viver a vida. A ironia é: nem uma das canções que ouvi na casa de São Bento faz parte de Soberana, o seu disco de regresso, que lembra Gainsbourg e Divine Comedy e todos os cultores da pop literata.
“Nunca fiz nada com essas canções”, dizia-me Coração em conversa, há dias, referindo-se às pérolas no baú de São Bento. “Normalmente, quando faço um disco, uso canções que foram criadas na altura em que estou a fazer o disco”, explica, para chegar a uma espécie de conceito: “Porque quando estou a fazer um disco estou num lugar e à partida as canções que estou a fazer nesse momento estão nesse lugar”.
Para Coração, não faz sentido acumular canções e, de X em X anos, ir buscar as 10 melhores e fazer um disco – cada álbum é representativo de um momento, de um estado de espírito, disso a que ele chama “um lugar”. Pelo que só faz sentido fazer um disco se as canções vierem desse lugar e representarem esse lugar.
[o vídeo de “Miúda”:]
Esse lugar, no caso de Soberana, é o da idealização amorosa, notório em temas como Heroína, Miúda ou Dlim dlom, canções soberbamente arranjadas e com melodias primorosas sob as quais há uma espécie de carpir: quem canta dirige-se a um tu amoroso, que não está ali, um tu que não pode ser real, de tão perfeito que parece ser.
A palavra que Coração usa é “idealizado”: “Estas canções são todas canções sobre uma mesma coisa, que é uma ideia bastante idealizada de uma relação com uma mulher – essas canções todas são diferentes fases dessa idealização”, diz, localizando com precisão o lugar emocional de Soberana.
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A coisa amorosa não é tema estranho a Coração – Muda que Muda já se desenrolava em torno de motivos românticos, mas tinha a si associada a ideia de mudança, de aceitação das incertezas da vida e posterior avanço. Soberana quase parece o oposto: é um disco sobre não querer aceitar que o real pode não ser igual ao ideal, um disco em que continuamente se pergunta porque é que o outro não está aqui.
Exemplo: a primeira coisa que se ouve em Dlim dlom é “Onde é que estás?”, e mais à frente Coração canta “Nunca mais toca / esta maldita campainha / tu nem sabes onde eu vivo / e deve ser por isso que não vens”. Em Miúda (grande, grande canção) ele canta: “O que mais me custa / é a tua beleza (…) sem saber / onde andas tu / onde andas tu / miúda, diz-me onde andas tu”.
[o vídeo de “Heroína”:]
Um amigo a quem mostrei a canção disse que era creepy, que lhe lembrava daqueles tipos que desaparecem durante uns tempos e depois voltam, perguntando “Onde andas, baby”. Mas estou em crer que Miúda é outra coisa – um desejo que se perpetua apesar da ausência e que roça quase o desespero: aquele “onde andas tu?” não é uma pergunta literal – é mais algo como “em que mundo vives”, “como podemos ter chegado a esta situação em que já não fazemos parte do mesmo mundo?”. O final, com as guitarras a cruzarem-se, é extraordinário: as harmonias sobrepõem-se e Coração repete “Ainda ouço a tua voz / a sussurrar o meu nome”. Estamos no território do Werther de Goethe.
Pode parecer que Soberana é um disco conceptual sobre o romantismo, e de certa forma acaba por ser – mas talvez isto não tenha sido propositado. “O meu processo”, explica Coração, “é sempre o mesmo: vem tudo [está a referir-se às canções] e eu sou apenas o altifalante – só percebo depois o que é cada canção”, continua, explicando que neste processo não tem muita margem de manobra: “Eu não escolho muito, respeito o que vem”, diz, concluindo a ideia.
Mais do que um regresso à música, isto é um regresso da música a Coração – finalmente, 15 anos depois, ele voltou a sentir aquela necessidade urgente de compor e gravar e fazer arranjos e deitar cá fora. Ao longo desses 15 anos custou-lhe não estar a pôr música cá fora – mas não podia ter sido de outra forma: “Fui fazendo música, mas não estava a vivê-la como estou agora. Sentia-me incompleto [por não estar a fazer discos] mas não dava, não estava neste sítio em que estou agora. E não estando nesse sítio, não vou forçar”.
Quinze anos de espera e é tão simples quanto isto: um dia vieram canções que ele precisou de gravar e no momento em que chegaram soube que desta vez era a sério. “As primeiras desta série”, recorda, “fi-las as duas num dia à noite e vieram as duas em 10 minutos: a Dlim-Dlom gravei-a a estalar o dedo e a cantar e foi assim. A ideia era soar a r’n’b à D’Angelo. E a seguir fiz a Buganvília”. Bastaram estas duas para se seguirem cerca de 30, das quais acabou por escolher 10.
[o vídeo de “Não Sei (estou bem)”:]
Nada disto — a idealização, o conceito, o jorro de canções que o atravessou ao longo de um mês — importaria se as canções não fossem boas – mas desde a imaculada Amor e verão, com que o disco abre, aquilo a que temos direito é pop repleta de melodias encantatórias, reminiscente de Gainsbourg e dos Divine Comedy, com arranjos imaculados (os teclados e as guitarras certas no sítio certo) e coros perfeitos. A sequência inicial é esmagadora: Amor e verão, Não sei (estou bem), Heroína e Miúda, isto é single perfeito atrás de single perfeito. E depois há outras pérolas: a magnífica Tu defendes, eu defendo, a voz feminina em Amour Multilingue, os teclados em Nunca mais.
A carreira na música de certo modo acabou, ficou lá atrás, há 15 anos, quando ele decidiu dar prioridade a outras partes da sua vida. Agora, Coração faz discos quando precisa, da maneira que lhe apetece: “Não tenho necessidade que alguém me aprove – sendo que gosto que apreciem a minha música. Mas isso não altera em nada como faço a minha música”. O que lhe interessa é que “a arte é uma forma de comunicação privilegiada, porque é poética e é profunda” e “se [o que faz] tocar em alguém isso é um privilégio”.
Teremos de esperar mais 15 anos até ouvirmos a sua versão muito pessoal de pop outra vez? Talvez não: “Tenho um disco a vir na minha cabeça. Já tenho ideias de para onde irá e já estou a compor”. A boa notícia é que ele acha “que é inevitável que venha esse disco”; a má é que “a seguir a esse não sei”.
Pouco importa. Esperámos 15 anos, vamos celebrá-lo agora que está de novo entre nós, repleto de grandes singles.