894kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

O bravo coração de João voltou a cantar

"Muda que Muda" foi o segundo álbum de João Coração, desde 2009 até agora: 15 anos depois, chegou "Soberana", disco de pop perfeita e imaculadamente burilada. Porquê Tanto tempo? Agora pouco importa.

“Fui fazendo música, mas não estava a vivê-la como estou agora. Sentia-me incompleto [por não estar a fazer discos] mas não dava, não estava neste sítio em que estou agora. E não estando nesse sítio, não vou forçar.”
i

“Fui fazendo música, mas não estava a vivê-la como estou agora. Sentia-me incompleto [por não estar a fazer discos] mas não dava, não estava neste sítio em que estou agora. E não estando nesse sítio, não vou forçar.”

“Fui fazendo música, mas não estava a vivê-la como estou agora. Sentia-me incompleto [por não estar a fazer discos] mas não dava, não estava neste sítio em que estou agora. E não estando nesse sítio, não vou forçar.”

Aqui há uns anos, já não sei a que propósito, dei por mim em casa do músico João Coração, na zona de São Bento, em Lisboa. Na altura, ele já estava desaparecido das lides musicais há uns anos e era recorrente perguntarem-me “O que é que aconteceu ao João Coração?”. Sem revelar muito (porque ele gostava de manter a sua vida pessoal privada), eu costumava responder que tinha ido viver a sua vida.

Presumo que nessa noite estivéssemos ambos a viver a nossa vida – mas de uma forma particular: sentado no sofá, fiquei a ouvir as canções que ele acumulara desde Muda que Muda, o seu segundo e maravilhoso disco, datado de 2009. E o que ouvi deixou-me atónito: melodias pop perfeitas, umas atrás das outras, numa sucessão de pérolas escondidas que o mundo desconhecia.

Perguntei-lhe o que ele pretendia fazer com aquele tesouro, aquele baú de dezenas de canções por acabar — mas repletas de potencial — e ele não se manifestou muito preocupado. Isto não me devia admirar: anos antes, quando o entrevistei a propósito de Muda que Muda (dessa feita na mesma casa de Sesimbra onde fora gravado o seu disco de estreia, Nº 1 Sessão de Cezimbra), vi-o criar à minha frente, do nada, um par de gloriosas peças pop, que ele não se deu ao trabalho de gravar ou transcrever para pauta. Coração não estava propriamente preocupado com o destino daquele par de preciosidades que acabara de inventar – o tipo de melodia com que um músico sonha a vida inteira: “Eu faço muitas coisas destas”, disse, e seguiu com a conversa e com a música, como se nada fosse.

[o álbum “Soberana”, na íntegra no Spotify:]

Quinze anos depois, Coração regressa com um disco de pop perfeita e imaculadamente burilada – o tipo de disco que imaginámos, há 15 anos, que iria suceder em pouco tempo a Muda que Muda, antes de ele desaparecer para viver a vida. A ironia é: nem uma das canções que ouvi na casa de São Bento faz parte de Soberana, o seu disco de regresso, que lembra Gainsbourg e Divine Comedy e todos os cultores da pop literata.

“Nunca fiz nada com essas canções”, dizia-me Coração em conversa, há dias, referindo-se às pérolas no baú de São Bento. “Normalmente, quando faço um disco, uso canções que foram criadas na altura em que estou a fazer o disco”, explica, para chegar a uma espécie de conceito: “Porque quando estou a fazer um disco estou num lugar e à partida as canções que estou a fazer nesse momento estão nesse lugar”.

Para Coração, não faz sentido acumular canções e, de X em X anos, ir buscar as 10 melhores e fazer um disco – cada álbum é representativo de um momento, de um estado de espírito, disso a que ele chama “um lugar”. Pelo que só faz sentido fazer um disco se as canções vierem desse lugar e representarem esse lugar.

[o vídeo de “Miúda”:]

Esse lugar, no caso de Soberana, é o da idealização amorosa, notório em temas como Heroína, Miúda ou Dlim dlom, canções soberbamente arranjadas e com melodias primorosas sob as quais há uma espécie de carpir: quem canta dirige-se a um tu amoroso, que não está ali, um tu que não pode ser real, de tão perfeito que parece ser.

A palavra que Coração usa é “idealizado”: “Estas canções são todas canções sobre uma mesma coisa, que é uma ideia bastante idealizada de uma relação com uma mulher – essas canções todas são diferentes fases dessa idealização”, diz, localizando com precisão o lugar emocional de Soberana.

[Já saiu o segundo episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio.]

A coisa amorosa não é tema estranho a Coração – Muda que Muda já se desenrolava em torno de motivos românticos, mas tinha a si associada a ideia de mudança, de aceitação das incertezas da vida e posterior avanço. Soberana quase parece o oposto: é um disco sobre não querer aceitar que o real pode não ser igual ao ideal, um disco em que continuamente se pergunta porque é que o outro não está aqui.

Exemplo: a primeira coisa que se ouve em Dlim dlom é “Onde é que estás?”, e mais à frente Coração canta “Nunca mais toca / esta maldita campainha / tu nem sabes onde eu vivo / e deve ser por isso que não vens”. Em Miúda (grande, grande canção) ele canta: “O que mais me custa / é a tua beleza (…) sem saber / onde andas tu / onde andas tu / miúda, diz-me onde andas tu”.

[o vídeo de “Heroína”:]

Um amigo a quem mostrei a canção disse que era creepy, que lhe lembrava daqueles tipos que desaparecem durante uns tempos e depois voltam, perguntando “Onde andas, baby”. Mas estou em crer que Miúda é outra coisa – um desejo que se perpetua apesar da ausência e que roça quase o desespero: aquele “onde andas tu?” não é uma pergunta literal – é mais algo como “em que mundo vives”, “como podemos ter chegado a esta situação em que já não fazemos parte do mesmo mundo?”. O final, com as guitarras a cruzarem-se, é extraordinário: as harmonias sobrepõem-se e Coração repete “Ainda ouço a tua voz / a sussurrar o meu nome”. Estamos no território do Werther de Goethe.

Pode parecer que Soberana é um disco conceptual sobre o romantismo, e de certa forma acaba por ser – mas talvez isto não tenha sido propositado. “O meu processo”, explica Coração, “é sempre o mesmo: vem tudo [está a referir-se às canções] e eu sou apenas o altifalante – só percebo depois o que é cada canção”, continua, explicando que neste processo não tem muita margem de manobra: “Eu não escolho muito, respeito o que vem”, diz, concluindo a ideia.

Mais do que um regresso à música, isto é um regresso da música a Coração – finalmente, 15 anos depois, ele voltou a sentir aquela necessidade urgente de compor e gravar e fazer arranjos e deitar cá fora. Ao longo desses 15 anos custou-lhe não estar a pôr música cá fora – mas não podia ter sido de outra forma: “Fui fazendo música, mas não estava a vivê-la como estou agora. Sentia-me incompleto [por não estar a fazer discos] mas não dava, não estava neste sítio em que estou agora. E não estando nesse sítio, não vou forçar”.

Quinze anos de espera e é tão simples quanto isto: um dia vieram canções que ele precisou de gravar e no momento em que chegaram soube que desta vez era a sério. “As primeiras desta série”, recorda, “fi-las as duas num dia à noite e vieram as duas em 10 minutos: a Dlim-Dlom gravei-a a estalar o dedo e a cantar e foi assim. A ideia era soar a r’n’b à D’Angelo. E a seguir fiz a Buganvília”. Bastaram estas duas para se seguirem cerca de 30, das quais acabou por escolher 10.

[o vídeo de “Não Sei (estou bem)”:]

Nada disto — a idealização, o conceito, o jorro de canções que o atravessou ao longo de um mês — importaria se as canções não fossem boas – mas desde a imaculada Amor e verão, com que o disco abre, aquilo a que temos direito é pop repleta de melodias encantatórias, reminiscente de Gainsbourg e dos Divine Comedy, com arranjos imaculados (os teclados e as guitarras certas no sítio certo) e coros perfeitos. A sequência inicial é esmagadora: Amor e verão, Não sei (estou bem), Heroína e Miúda, isto é single perfeito atrás de single perfeito. E depois há outras pérolas: a magnífica Tu defendes, eu defendo, a voz feminina em Amour Multilingue, os teclados em Nunca mais.

A carreira na música de certo modo acabou, ficou lá atrás, há 15 anos, quando ele decidiu dar prioridade a outras partes da sua vida. Agora, Coração faz discos quando precisa, da maneira que lhe apetece: “Não tenho necessidade que alguém me aprove – sendo que gosto que apreciem a minha música. Mas isso não altera em nada como faço a minha música”. O que lhe interessa é que “a arte é uma forma de comunicação privilegiada, porque é poética e é profunda” e “se [o que faz] tocar em alguém isso é um privilégio”.

Teremos de esperar mais 15 anos até ouvirmos a sua versão muito pessoal de pop outra vez? Talvez não: “Tenho um disco a vir na minha cabeça. Já tenho ideias de para onde irá e já estou a compor”. A boa notícia é que ele acha “que é inevitável que venha esse disco”; a má é que “a seguir a esse não sei”.

Pouco importa. Esperámos 15 anos, vamos celebrá-lo agora que está de novo entre nós, repleto de grandes singles.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.