Demasiado barato? Paroquial? Rasca? Bom, se forem atributos do cliente e não da roupa, “não há nada a fazer”. Em 2004, em anúncio, Karl Lagerfeld desfazia todas as perplexidades. Sim, teria sido fácil dizer “não” a uma coleção para a H&M, mas a resposta do designer alemão surpreendeu — e mudou para sempre as regras do jogo neste setor, abrindo caminho para um encontro entre a inspiração mais exclusiva, o luxuoso cunho de autor e as grandes cadeias de retalho. Afinal de contas, tem tudo a ver com “bom gosto”, insistia Lagerfeld. E tal predicado os euros não compram.

Desde então, o gigante sueco de roupa e acessórios firmou vinte anos de parcerias com outros grandes nomes da Moda. Para assinalar a efeméride, a marca anunciou esta semana o relançamento de uma série de peças pré-usadas que abrangem todos estes anos. Estarão disponíveis a partir desta quinta-feira, 24 de outubro, através de um conjunto de ativações e lançamentos em diferentes lojas pelo mundo (Portugal fica de fora desta corrente mas a partir de 31 de outubro pode tentar a sua sorte online, no site oficial da marca).

A loja da rua Lafayette, em Paris, será a primeira a receber estes items em modo pre-loved, recolhidos, segundo a H&M revela, no marketplace  Sellpy e em lojas vintage de todo o mundo, que de resto se mantêm bons pontos de passagem para garimpeiros de preciosidades. Depois de França, nos dias seguintes será a vez de Londres (Regent Street), Milão (Duomo), Nova Iorque (Soho), Barcelona   (Paseo de Gracia), Estocolmo (Götgatan and Drottninggatan) e Berlim (Mitte), a 30 de outubro. De caminho, recordamos os lançamentos que marcaram os últimos vinte anos.

Super estrelas, vanguarda e uma montanha russa de estilos

De repente, por menos de 20 euros, era possível comprar t’shirts com a cara de Karl, ou smokings a rondar uma centena. “Há 60 anos que estamos neste negócio e nunca vimos nada como isto”, admitia o então diretor de marketing da cadeia, Jörgen Andersson. “Estamos tão surpreendidos como o cliente”. Cliente esse que em num abrir e piscar de olhos esgotava o que havia para esgotar nas lojas europeias e em solo norte-americano. Lagerfeld, no entanto, haveria de lamentar a escassez de stock e a impossibilidade em chegar a todos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em 2020, a WWD recordava o efeito sísmico do processo de democratização do consumo (e como as decisões do designer sempre forma bem ponderadas). De resto, a colaboração teve um duplo efeito. Se por um lado criou uma espera e agitação anual em torno dos lançamentos que vieram a seguir, por outro ajudou o próprio Lagerfeld a relançar a sua marca em 2012.

Segundo a responsável pela comunicação de Lagerfeld, o criador alemão adorava um bom desafio e argumentava que um esboço para um vestido de alta costura da Chanel, um casaco de pele Fendi, um blazer da Lagerfeld Gallery ou uma camisa da H&M envolviam o mesmo processo, custo e esforço. Karl, que nunca tinha entrado numa loja H&M na sua vida, mas reparara que elementos da sua equipa vestiam a marca, conseguiu tornar a elegância um pouco mais acessível — e provavelmente as suas peças estarão entre as mais cobiçadas neste renovado fervor pre-loved.

Recuando aos primeiros anos do milénio, e às parcerias iniciais, não seria fácil suceder ao sucesso de Karl. No outono de 2005, a responsabilidade coube a Stella McCartney, que quatro anos antes lançara a sua marca homónima, sob a alçada do grupo Gucci, e agora servia com o seu selo uma fornada de 40 peças (além da musa Kate Moss a liderar a campanha publicitária). E para o terceiro ensaio, o que se seguiria? “Em primeiro lugar, a H&M apresentou o superstar Karl Lagerfeld, depois Stella McCartney, que é a pessoa certa para seu grupo-alvo e agora; o desafio. Viktor e Rolf são apreciados pela multidão da moda internacional, mas ainda um pouco desconhecidos fora dela. Isso vai acabar com isso”, comentava então Tim Blanks, da Style.com. E eis que em 2006 o duo de designers apresentava a sua couture moderna, entre smokings, vestidos de cocktail, jeans e sweatshirts.

GettyImages-1424876195

A corrida à coleção Stella McCartney, em 2005 © Getty Images

No ano seguinte, modo party girl mais que ativado, como se o cheiro a pólvora da recessão não estivesse ali ao virar da esquina: Roberto Cavalli desdobrava-se no seu emblemático animal print. Lantejoulas e brilho reforçavam a ementa de zebra e leopardo, naturalmente. Em 2008, Rei Kawakubo vinha colocar um ponto nas colaborações com a H&M. Não um ponto final, entenda-se mas antes muitos pontos, ou bolas, ou polka dots, bem ao estilo Comme des Garçons.

Jimmy Choo

O foco virou-se para os acessórios em 2009. Jimmy Choo talvez não fosse o nome mais sonante por essa altura quando o assunto era stilletos, mas eles ousaram fazer a sua entrada em cena nas lojas H&M. Nesse mesmo ano, em maio, o inglês Matthew Williamson lançava uma vibrante coleção de verão para a cadeia sueca (e estreava-se no segmento masculino). Com um pé em 2009 e outro já em 2010, sem o brado de outros ilustres, a francesa Sonia Rykiel (que morreria poucos anos depois) liderou dois momentos para a H&M, um com uma linha de lingerie e outro centrado nas suas irreverentes malhas.

Em novembro de 2016, o Observador destacava alguns eleitos Kenzo

As super estrelas fariam o seu regresso em 2010, desde logo com a muito aguardada coleção Lanvin. Se Alber Elbaz investiria nas reconhecíveis silhuetas volumosas, a senhora que se seguiu, Donatella Versace celebrou a cor e o estampado com toda a abundância — rezam as narrações da época que o site da marca foi abaixo poucos minutos de a coleção ser despejada online, com muitas peças a alcançar valores astronómicos no mercado secundário, incluindo os sacos de compras, disputados no ebay. A loucura foi tal que a H&M retomou a ligação com a marca em 2012. E há que convir que é difícil bater uma festa de lançamento em Nova Iorque com direito a atuação de Prince.

Uma peça Versace

Ainda em 2012, a mulher Marni conheceu o seu momento de glória nas dependências do consumo rápido, para um estilo totalmente diferente do anterior, e seguramente um impacto muito mais de nicho, mas nem por isso menos desejado. O hype avant-garde reacendeu-se no ensaio permitido pela Maison Martin Margiela, entre casacos e high top sneakers. Uma década depois, de forma avisada, meio mundo andava pela Vinted a vasculhar este arquivo MMM.

Margiela

Como não bastasse vibe indie e de it girl, Isabel Marant vinha reforçar o registo com um ligeiro toque francês. E se em 2014 foi a vez do athleisure de Alexander Wang ditar as regras na estação, chegados a 5 de novembro de 2015, não só as parcerias já haviam garantido o seu lugar na agenda outonal da cidade, como a fila no coração de Lisboa atingiu proporções épicas. Foi o ano de uma das coleções mais aguardadas, a da maison francesa Balmain, que desaguava na única loja portuguesa para a qual tinha sido anunciada, a da Baixa-Chiado.

Balmain

As portas só abriram às 10h00 mas por essa hora já a extensão era assinalável e não faltavam relatos de madrugadores. Em menos de hora e meia, a coleção feminina e sobretudo a masculina voava das prateleiras. Pulseiras e sinos regulavam o fluxo no espaço físico mas online a deslocação era viral: basta pensar que a Olivier Rousteing tinha Kendall Jenner, Gigi Hadid, os anjos da Victoria Secret, e ainda os Backstreet Boys a encherem o Instagram com a tagg #BalmainHMNation. Importa notar que os vestidos se situavam a um convidativo décimo do preço habitual, o que tornava mais fácil o alistamento no exército de Beyoncé, Rihanna, Kardashian e outras divas da marca.

Em novembro de 2016 fazíamos uma seleção de compras Kenzo © Observador

Se o tigre de Kenzo rugiu com toda a sua cor no inverno seguinte, mantendo a procura prego a fundo, em 2017 houve margem para uma pausa vitoriana. Erdem Moralioğlu apostou em padrões florais e em peças especiais, sobretudo na linha feminina. Vestidos longos, tecidos pesados, saias rodadas e lantejoulas selaram uma coleção romântica, mas também cara. O ponto de partida foi os 19,99€, preço das collants, e a peça mais cara, um vestido preto de renda, ascendia aos 299€. “Ainda assim, nada está nada mal, se pensarmos que um vestido da marca britânica custa em média 200€.”, escrevia-se então neste mesmo jornal.

Moschino

Jeremy Scott assinou a coleção Moschino em 2018, e até Madonna foi às compras para essa ocasião. Em 2019, foi com vestidos de tule, hoodies e pérolas que Giambattista Valli chegou à H&M. O criador estreou-se no vestuário de homem, incorporando elementos do guarda-roupa feminino. Simone Rocha tomou os comandos em 2021, na ressaca da pandemia, e Casey Cadwallader pôs a estética da Mugler em modo play no ano de 2023, um ano depois da morte do criador francês. Ainda antes do cair do pano desse ano, Julian Dossena, para a Rabanne, caprichava nas malhas metálicas e nas peças estampadas com padrões caleidoscópicos. Veremos quem se segue.