O geógrafo Jorge Malheiros considera que os protestos na periferia de Lisboa são sinal da “expressão espacial da desigualdade e da desvantagem” em resposta a uma polícia infiltrada pelo discurso xenófobo, que usa a violência como primeiro recurso.
Em declarações à Lusa, o especialista em mobilidade humana recordou que existem milhares de pessoas a viver “numa situação de desvantagem territorializada, por isso é que se fala de bairros“.
Essa desvantagem inclui questões económicas, falta de acesso a casas, trabalho precário, desemprego, mas também a “consciência de menos oportunidades para os filhos no sentido de terem carreiras profissionais ou de terem salários que considerem mínimos para ter uma qualidade de vida digna”.
Nessas zonas, “as pessoas notam que há um conjunto de desvantagens, que se tornam mais visíveis em bairros periféricos onde se concentram pessoas com desvantagem social, que têm consciência da sua dificuldade de acesso à cidade-centro”.
Odair Moniz, 43 anos, foi baleado mortalmente por um agente da PSP na madrugada de segunda-feira, no Bairro da Cova da Moura, Amadora. A PSP alega que o homem se pôs “em fuga” e “terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca” — o que não é corroborado pelas imagens de videvigilância, de acordo com o Diário de Notícias.
Morte na Cova da Moura. Investigação sugere uso desproporcional e excessivo de força
Em resposta, moradores de vários bairros da Área Metropolitana de Lisboa provocaram distúrbios, tendo sido queimados dois autocarros, automóveis e caixotes do lixo. Em resposta, o governo prometeu mão firme para impedir os atos de violência e levar os responsáveis à justiça.
A ação da polícia é também criticada por Jorge Malheiros, considerando que tem sido dada prioridade à componente repressiva e menos à prevenção. Exemplo disso é o “policiamento de proximidade, que praticamente deixou de se fazer” naquelas zonas.
“Este lado mais repressivo de exibição da força acaba por gerar também, do lado das pessoas dos bairros, uma tensão maior e, eventualmente, uma resposta também ela desagradável e depois que acaba por descambar para estes atos de vandalismo e de violência que são não são obviamente aceitáveis”, afirmou o investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa.
Os agentes “ganham pouco” e “há pouca proteção ao ‘stress'” profissional, mas tem-se assistido também a “uma infiltração ou presença mais forte de um discurso de extrema-direita com componentes xenófobas nalgumas polícias“, algo que deve “ser mais estudado” para apurar as causas.
Atualmente, recordou Jorge Malheiros, vive-se “um contexto em que o discurso xenófobo com componentes de ódio está mais presente na sociedade portuguesa”.
Antes, “os grupos neonazis não eram tão visíveis”, mas “hoje convocam mais eventos sociais, manifestações no espaço público que se cruzam com forças políticas de extrema-direita, que têm uma visibilidade como nunca e uma presença no espaço político, como nunca houve no Portugal democrático”.
A partir daqui constrói-se “um discurso que, muitas vezes, é estigmatizante”, criando uma “situação de pressão, de discriminação fortíssima sobre as pessoas destes bairros”, com maior “diversidade étnico-racial”.
A combinação destes fatores contribui para que “as pessoas se sintam ainda mais discriminadas, mais em desvantagem, mais maltratadas”. Portugal fez “um trajeto importante de redução da pobreza até 2022”, mas não fez “um trajeto tão significativo no encolher das desigualdades e na redução das desigualdades socioespaciais”, resumiu.