O inspetor-geral das Atividades em Saúde repetiu a mesma ideia vezes sem conta ao longo da audição desta terça-feira, apesar das muitas insistências dos deputados: o trabalho da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS), que culminou no relatório conhecido em abril, limitou-se apenas à avaliação da conduta dos estabelecimentos e entidades de saúde envolvidos e não dos responsáveis políticos. Aliás, insistiu António Carapeto, não cabe à IGAS avaliar os responsáveis políticos.
Saber se houve interferência política na marcação da consulta das gémeas luso-brasileiras ou aferir a eventual irregularidade do comportamento ou as intenções dos governantes é uma matéria que Carlos Carapeto remeteu para Comissão Parlamentar de Inquérito. “A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde não investigou o comportamento do Presidente de República ou da Casa Civil, do primeiro-ministro, da ministra da Saúde ou do secretário de Estado da Saúde, nem tampouco de nenhum deputado da Assembleia da República. Não o pode fazer”, disse o responsável, recusando-se sempre a emitir juízos de valor sobre a atuação do ex-secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales ou da Presidência da República em todo o caso.
“Aferir as responsabilidades políticas são atribuições dos tribunais e da Assembleia da República”, disse António Carapeto, salientando que apenas cabe à IGAS avaliar a atuação das entidades do setor da saúde, como os hospitais. O inspetor-geral recusou a ideia de a entidade que lidera alguma ter sido alvo de pressões no âmbito do caso.
Acesso das crianças à consulta “desrespeitou as regras”, reafirmou inspetor-geral da IGAS
Logo na intervenção inicial, António Carapeto reafirmou as conclusões do relatório da IGAS, referindo que “o acesso das duas crianças à primeira consulta no hospital desrespeitou as regras previstas na legislação” e sublinhando que o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (atual Unidade Local de Saúde de Santa Maria) “procedeu ao agendamento das consultas na sequência de uma comunicação remetida pelo gabinete pelo então secretário de Estado da saúde”.
António Carapeto, que assumiu cargo de inspetor-geral em 2020, observou que as “consultas são agendadas no centro de saúde e nas unidades locais de saúde da aérea de residência”. “É assim que o Serviço Nacional de Saúde [SNS] deve funcionar, se não funciona assim, funciona mal”, disse, em resposta ao deputado Livre Paulo Muacho.
O inspetor-geral das Atividades em Saúde admitiu a instauração de mais processos de inspeção no âmbito do caso das gémeas, caso se verifique que as três entidades visadas pelas recomendações da IGAS (Hospital de Santa Maria, Ministério da Saúde e Infarmed) não as implementaram.
Na sequência da inspeção foram emitidas três recomendações: uma ao Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, para que “cumpra as regras de acesso dos utentes à prestação de cuidados de saúde”; uma outra dirigida à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, para que “verifique e assegure que a documentação que lhe é remetida pelos gabinetes dos membros do governo foi objeto de despacho dos mesmos”; e uma recomendação ao Infarmed, “para que cumpra o circuito de submissão, avaliação e aprovação dos pedidos de Autorização de Utilização Especial de medicamentos”, explicou António Carapeto, salientando que, como sempre acontece, a IGAS vai publicar, muito em breve, um relatório final relativo à inspeção realizada, que já contará com as respostas dadas pelas três entidades alvo de recomendações.
“Estamos perto do fim do processo de inspeção, da informação de avaliação final. A equipa de inspeção está a avaliar a informação referida por estas três entidades. Se concluirmos que alguma dela não implementou as recomendações que lhe foi dirigida, é possível que venhamos a instaurar uma ação inspetiva específica sobre a matéria que estiver em causa”, admitiu o responsável.
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IGAS vai investigar ex-assessor de Marcelo por declarações na CPI
Certa é a inspeção que a IGAS vai abrir para investigar a conduta do médico Mário Pinto (ex-assessor do Presidente da República) por causa das declarações feitas por Mário Pinto há poucos dias na Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso das gémeas. O ex-assessor de Marcelo revelou, perante os deputados, que tinha marcado uma consulta para uma funcionária da Presidência, enquanto exercia funções no Palácio de Belém. Para além disso, disse aos deputados que poderia marcar uma consulta para qualquer um deles, caso necessitassem, algo que foi implicitamente criticado por António Carapeto.
Para além disso, o inspetor-geral da Saúde admitiu a possibilidade de a IGAS abrir uma ação inspetiva mais vasta sobre o acesso indevido a consultas no SNS. “Estamos a discutir sobre a questão dos acesso às consultas no SNS. É preciso saber o que se passa, também para os decisores políticos olharem para o sistema de referenciação”, sublinhou.
Já na segunda ronda de perguntas da audição, o inspetor-geral das atividades em Saúde revelou que a IGAS começou “cedo” a enviar a documentação sobre o caso das gémeas ao Ministério Público a pedido do próprio Ministério Público. António Carapeto respondia assim a um pergunta da Joana Cordeiro (da IL), que tinha o tinha questionado sobre se a IGAS enviou a documentação ao MP porque tinha suspeitado de eventuais crimes. “Começámos a enviar a documentação cedo ao MP a pedido do próprio MP e não fazemos a valoração se estamos perante crimes ou não”, disse.
Diretor da Pediatria da Estefânia tinha (e ainda tem) “reservas” quanto à administração de Zolgensma nas gémeas
Depois, foi a vez de o diretor do Serviço de Neuropediatria do Hospital Dona Estefânia, José Pedro Vieira, ser questionado pelos deputados. O médico começou por revelar que, quando foi contactado pela família das gémeas para avaliar a possibilidade de serem tratadas com Zolgensma, manifestou reservas quanto a essa possibilidade, sobretudo devido à falta de evidência científica do benefício da administração do Zolgensma nas duas crianças, que já estavam a ser tratadas com Nusinersen, a outra alternativa terapêutica.
“Percebendo o propósito [do contacto], colocou-se a questão se as bebés tinham acesso ao SNS, a segunda era o medicamento não estar aprovado na União Europeia e a terceira era se as bebés, que já estavam a ser tratadas, tinham indicação para mudar de terapêutica”, enumerou José Pedro Vieira, acrescentando que sugeriu à família das gémeas, no final de 2019, que “contactassem o conselho de administração do Centro hospitalar de Lisboa Central”, que integrava o Hospital Dona Estefânia.
José Pedro Vieira explicou que a “diferença entre Zolgensma e Nusinersen[o medicamento que as gémeas já estavam a receber no Brasil] não era óbvia” e que os estudos que levaram à aprovação do Zolgensma envolveram menos doentes. O especialista referiu que, numa idade superior a oito meses, a administração do Zolgensma não é vantajosa relativamente ao Nusinersen. Ora, à data da administração do medicamento às gémeas, as crianças tinham já mais de um ano.
Questionado sobre se mantém hoje as mesmas reservas, o experiente médico neuropediatra afirmou que sim.
Família das gémeas tentou consulta na Estefânia depois de crianças terem sido vistas em Santa Maria
José Pedro Vieira considerou “reprovável” a alegada interferência política na marcação da consulta para as gémeas luso-brasileiras. “Se foi reprovável, acho reprovável”, disse o diretor de Neuropediatria do Hospital Dona Estefânia, quando questionado pela deputada Joana Cordeiro (da IL), recusando alongar-se em mais comentários.
O médico disse ainda aos deputados que, já depois de as gémeas terem sido vistas pela neuropediatra Teresa Moreno no Hospital de Santa Maria, a família das crianças o contactou a pedir uma segunda avaliação das crianças. José Pedro Vieira garante que não respondeu ao pedido.