Estava a caminho de uma reunião para o design dos pratos do The Table quando soube da notícia. Eram 9h30 da manhã de 7 de junho. As chamas estavam a começar a consumir o hotel JNcQUOI House, que deveria abrir portas dali a pouco mais de uma semana, e Filipe Carvalho pouca importância deu à situação, pensando estar sob controlo. “Fomos ter a reunião e a meio dizem-nos que é mesmo sério”, recorda. “Aí sim, quando saímos, tivemos noção da gravidade”. Quatro meses depois, o antigo chef executivo do Fifty Seconds, com uma estrela Michelin no topo da Torre Vasco da Gama, mantém-se no grupo Amorim Luxury assumindo agora uma cozinha diferente, junto do chef António Bóia: está no JNcQUOI Avenida.
Com o objetivo de elevar, ainda mais, a experiência gastronómica deste espaço plantado na Avenida da Liberdade, e de fazer a diferença, o chef natural de Aveiro apresenta agora uma nova coleção de pratos, assentes num conceito de partilha, mas sem nunca esquecer a identidade e essência do Avenida, como lhe chama. “O JNcQUOI Avenida é um restaurante que sempre trabalhou bem, é um projeto de sucesso. Mexer num projeto de sucesso é difícil, não é? Porque tudo aquilo em que tu toques pode estragar, não é? Portanto, foi trazer um bocadinho mais de diversão e um conceito de partilha“, explicou o chef Filipe Carvalho ao Observador. “Tentámos fazer este caminho de refinar um bocadinho a cozinha, torná-la mais atrativa, mais divertida, mas sem perder a essência do avenida“, acrescentou.
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Que essência é essa? “O foco no cliente”, responde o chef, explicando que um dos motivos que o levou a aceitar o desafio de liderar a cozinha do Avenida foi identificar-se com a identidade que o restaurante tem ao democratizar a comida de forma a que “toda a gente possa, se quiser, vir pelo menos uma vez experimentar uma trufa branca”, por exemplo.
É esta qualidade e autenticidade de produto que o chef António Bóia valoriza nos seus restaurantes e que, para Filipe Carvalho, dá prazer trabalhar — era a mesma com a qual trabalhou no Fifty Seconds ao longo de oito anos.
“O atum é o mesmo, o caviar, a trufa branca e preta, o porco preto bolota. A diferença é que lá eu trabalhava para 10 mesas e conseguia encaminhar o cliente para uma experiência que eu queria transmitir através do menu de degustação”, afirma, acrescentando que “aqui deixamos o cliente um bocadinho nas mãos dele e para que possa descobrir a nossa carta através de diferentes pratos.”
É sobre essa carta que falamos sentados à mesa. Não saiu de cá a baba de dinossauro — “Se tirássemos éramos mortos” — mas entraram umas outras quantas opções, que invocam a partilha. A começar, um ovo estrelado regado de lascas de trufa branca, um pecado em forma de caviar, salmão, angulas e anchovas, um salmão fumado com creme fraîche e salada alemã e umas gambas e lavagante com maionese de trufa em abacate. Ainda como novas opções para entrada estão a tortilha de boletos e batata com carpaccio de gamba e a sopa de tomate com robalo e ovo escalfado.
Antes de seguirmos aos principais, é importante perceber: como se encara esta pausa temporária no fine dining? “De forma positiva, estou a mostrar que sou multifacetado”, afirmou Filipe Carvalho. O antigo chef estrelado anunciou a sua saída do Fifty Seconds no final do ano passado, junto do anúncio da não renovação de contrato de Martín Berasategui, distinguido com 12 estrelas Michelin, para assumir os dois restaurantes inseridos no hotel JNcQUOI House, que ia abrir portas a 19 de junho mas que viu a inauguração ser adiada por um incêndio, uma semana e meia antes.
Filipe Carvalho ia liderar o The Fish, um restaurante do mesmo target que o Avenida mas tendo como foco o peixe e o marisco, e o The Table, um restaurante de fine dining, apenas com 11 lugares sentados ao balcão e onde será trabalhado o melhor produto do mar que chegará ao hotel. “Não se pode comparar com nada”, afirmou o chef, acrescentando: “É o tipo de cozinha Filipe Carvalho”.
Apesar da mudança de planos, o chef defende que agora no JNcQUOI vai provar aquilo que todos os cozinheiros devem saber fazer antes de chegarem ao fine dining: “fazer qualidade e volume com muita qualidade”. “Agora, se posso continuar a trabalhar tudo, como trabalhava no fine dining, sinto-me feliz porque um cozinheiro não se pode satisfazer só por ter uma estrela Michelin. Tem que se satisfazer por fazer bem e com qualidade“, defendeu.
“Não tem mal nenhum nós agora estarmos aqui e fazermos uma coisa do qual sentimos orgulho e nos sentimos felizes. Eu levanto-me todos os dias motivado para vir trabalhar, que é o mais importante. Sinto-me feliz onde estou, sinto-me bem. E quando tivermos o projeto do hotel e do fine dining, ainda ainda me sentirei melhor e com mais vontade”, garantiu.
Quanto ao hotel, com as obras de reconstrução já em andamento, o chef garante que o projeto se vai manter e que, quando finalmente estiver pela cozinha do The Table, vai trabalhar para alcançar “uma, duas ou três estrelas, as que deixarem”.
Por enquanto, quem o visitava pelo seu trabalho no Fifty Seconds, não deixa de vir provar a carta do Avenida e dar um olhinho nos novos principais, que homenageiam a costa portuguesa: tranche de robalo grelhado com esparregado e alcaparras e a pescada com angulas e ameijoas em salsa verde. Por fim, uma bola de gelado de baunilha pincelada com as lascas de trufa branca, que decoraram o ovo logo ao início.
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