Com o seguro de vida, de saúde e acidentes pessoais e de automóvel é cobrada uma taxa de 2,5% que reverte integralmente para o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Anualmente, essa contribuição rende mais de 150 milhões de euros por ano e é praticamente a única fonte de financiamento do organismo que por estes dias tem andado no foco político-mediático por causa de 11 mortes que poderão estar relacionadas com a demora no socorro (ou a total falta de resposta dos serviços de emergência). Uma situação crítica que destapou as debilidades do INEM e da sua falta de recursos, em particular humanos.
O INEM chegou ao final de 2023 (os dados mais recentes) com 1.355 postos de trabalho efetivamente ocupados, o que significa um défice de 16%, já que, por ocupar, estavam 264 empregos. A estes efetivos somam-se mais 226 trabalhadores em regime de prestação de serviços — 178 médicos, 41 enfermeiros e seis trabalhadores equiparados a assistentes técnicos, com funções nos CODU (Centros de Orientação de Doentes Urgentes) — vulgarmente conhecido por centro de atendimento do 112 — e um prestador de serviços, o fiscal único. Face à falta de pessoal, o INEM tem sido obrigado a gastar vários milhões em horas extraordinárias.
O INEM já tinha pedido, no início do ano, a contratação de 200 técnicos — um pedido que não foi autorizado pela tutela. Luís Meira, ex-presidente do INEM que se demitiu na sequência do braço de ferro com o Ministério da Saúde por causa do contrato para o serviço de helitransporte de emergência, tinha, numa audição de julho no Parlamento, indicado que esse pedido “era uma prioridade” para o INEM, mas “demorou mais de um mês para sair do gabinete da senhora secretária de Estado da Gestão de Saúde [Cristina Vaz Tomé]” para a tutela da administração pública, já que ambas as tutelas têm de dar a sua autorização, que chegou em agosto.
INEM vai contratar 200 novos técnicos de emergência pré-hospitalar
Aliás essa foi uma das questões que levou Luís Meira a dizer aos deputados que “o copo já se tinha vindo a encher” antes do caso dos helicópteros. “Nunca uma tutela me tinha falhado como esta”, realçou.
Não é, no entanto, apenas da falta de recursos humanos que o INEM se tem queixado. Um organismo que depende quase em exclusivo dos seguros pagos pelos portugueses tem vindo a alertar para a necessidade de ter outras fontes de financiamento, até para conseguir reforçar esse financiamento.
De acordo com os relatórios de atividade e gestão do INEM, “pese embora a diversidade de fontes de receita previstas, os recursos do INEM continuam a ter como principal fonte de financiamento a percentagem aplicada aos prémios ou contribuições relativas a contratos de seguros”. Em 2023, pesaram 98,86%, ano em que atingiram 151 milhões de euros, um crescimento de 8,57% face a 2022. Segundo esse relatório, os rendimentos totais chegaram aos 153 milhões de euros, mais 8,65% que os 140,9 milhões de euros de 2022.
Isto para um total de gastos de 148,9 milhões de euros, mais 13% que em 2022. Valores que deram lugar a um resultado líquido de 4,37 milhões de euros, menos 56% que os 9,9 milhões do ano anterior.
INEM não pode ficar com os seus resultados. Tem de os entregar ao SNS
Apesar de uma aparente saudável situação financeira, com resultados líquidos positivos todos os anos com exceção de 2020 — ano em que foi decretada a pandemia da Covid-19 —, o INEM tem vindo a alertar a tutela para a obrigação a que tem estado sujeito de entregar esses lucros à ACSS (Administração Central do Sistema de Saúde) — que gere os recursos financeiros, humanos, instalações e equipamentos do Serviço Nacional de Saúde.
Em 2020, essa entrega atingiu quase 90 milhões de euros. Sem recorrer ao Orçamento do Estado, o INEM acaba, no entanto, por ajudar a financiá-lo. Isto porque todos os anos tem sido obrigado a entregar o saldo de gerência à ACSS, quando o Instituto tem solicitado a sua retenção para poder investir nos seus próprios recursos. “Não devia haver essa transferência, para que o saldo de gerência pudesse ser reinvestido”, reforçou o então presidente demissionário Luís Meira, em julho, no Parlamento.
Mas a situação agravou-se em 2020, quando o INEM se viu obrigado a entregar à ACSS um valor mais elevado que o saldo de gerência anual. “Em 2020, e em virtude do acréscimo de gastos ocasionados pelas entregas realizadas a favor do Ministério da Saúde, no valor de 70,9 milhões de euros, por conta da pandemia por Covid-19, o resultado líquido apresentou um défice de 51,9 milhões, representando um decréscimo de 455% face ao resultado alcançado em 2019”, lê-se no relatório do INEM referente a esse ano. A ministra da Saúde era a agora eurodeputada Marta Temido.
Acresceu a este valor a entrega do saldo de gerência do ano anterior à ACSS, que foi referente a 2020 mas entregue apenas em 2021, no valor de 14 milhões de euros. “Esses 90 milhões eram uma almofada muito relevante” e o INEM “deixou de ter essa capacidade”, indicou Luís Meira no Parlamento já este ano, acrescentando, depois, à Lusa que “o processo de renovação da frota de ambulâncias dos bombeiros estava assente na utilização dessa reserva financeira, num processo que, se tivesse continuado, em 2021, teria permitido renovar a frota de todas as ambulâncias dos bombeiros e, inclusivamente, das ambulâncias do INEM”.
INEM devolveu 90 milhões de euros na pandemia que serviria para renovar ambulâncias
As entregas anuais dos saldos de gerência (ou o resultado apurado) para a ACSS começaram em 2016, no âmbito do Orçamento do Estado aprovado para esse ano e que só entrou em vigor em abril por conta das eleições legislativas de 2015, que acabaram por resultar numa mudança partidária no Governo, com António Costa a assumir a sua primeira legislatura em novembro de 2015.
Logo no Orçamento para 2016, com Mário Centeno sentado no Ministério das Finanças, determinou-se a entrega dos saldos de gerência. Mas também desde essa altura as cativações não chegaram ao setor da saúde. E, por conta dessa exceção no setor, o INEM ficou sempre a salvo de verbas cativadas. Não obstante ter de entregar o dinheiro que ganha anualmente, desde 2016.
No relatório de atividades e contas de 2016 do INEM é, pois, referido que “a diminuição apurada do Fundo Patrimonial em meio ponto percentual relativamente ao ano anterior é justificada essencialmente pelo impacto da entrega do saldo de gerência de anos anteriores à ACSS, no valor de 10 milhões de euros, por contrapartida da conta de resultados transitados de exercícios de anos anteriores — conta 591 — no âmbito da interpretação dada ao disposto no n.º 2 do artigo 106.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março. Não obstante o resultado líquido positivo obtido no exercício de 2016, este não foi suficiente para cobrir a totalidade do valor que foi abatido ao fundo patrimonial”.
Nos anos seguintes, a disposição de entrega à ACSS dos saldos das entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde continuou. Até que o Orçamento de 2024 deixou de ter essa determinação. O que levou Luís Meira a acreditar que teria cessado a obrigatoriedade e, por isso, disse ter ficado surpreendido quando a indicação para continuar a entregar os saldos à ACSS chegou no Decreto-Lei de Execução Orçamental, publicado já em janeiro.
“Os saldos da execução orçamental de 2023 das entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde (MS), excluindo as entidades referidas no número seguinte e a Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, EPE (SPMS, E. P. E.), são integrados automaticamente no orçamento de 2024 da ACSS, IP”, lê-se no diploma. Na proposta de Orçamento para 2025, a norma volta a não constar, mas poderá ainda ficar inscrita, tal como aconteceu este ano, no decreto-lei que rege a execução orçamental.
No entanto, nos relatórios referentes a 2017, 2018 e 2019 do INEM não há referência a qualquer entrega desses saldos, tendo, nesses anos o INEM sido excecionado dessas transferências. Um procedimento que, ainda assim, voltou a verificar-se em 2020. E, desde então, as transferências não pararam.
No relatório de 2022, salienta-se que “o INEM dispõe assim de uma situação orçamental, económica e financeira saudável, que poderia ser ainda melhor, possibilitando maior investimento no SIEM (Sistema Integrado de Emergência Médica), caso não estivesse obrigado a entregar o saldo orçamental da gerência anterior à ACSS, montante que em 2022 ascendeu a 15,55 milhões”.
Além destas entregas, o INEM dispunha, no final de 2023, de 36 milhões em ativos financeiros (boa parte em títulos de dívida pública) e mais 12,5 milhões em caixa e depósitos. No ano anterior, esses montantes eram, respetivamente, de 6 milhões e 7 milhões, tendo Luís Meira justificado, aliás, a subscrição de CEDIC (dívida pública de curto prazo) por razões de gestão de tesouraria e para não ter de entregar mais esses valores ao SNS. Já esta quinta-feira, Leitão Amaro, ministro da Presidência, questionou a existência destas disponibilidades não utilizadas. “Se foi para compor o resultado orçamental quem tem de justificar não somos nós”, acrescentou o governante, assumindo que a decisão foi tomada e implicou não realizar investimentos necessários.
Aumentar taxa de seguros ou ter verbas do Orçamento
“Na última década, com exceção do ano de 2020, devido à pandemia Covid-19, o INEM apresentou sistematicamente resultados líquidos positivos, aliados a uma política de sustentabilidade económica e financeira.” A frase está plasmada no relatório de atividades de 2023. Mas logo a seguir surge uma ressalva.
“Todavia, a obrigação de entrega de saldos à ACSS e a crescente pressão para a cobertura integral dos custos de operação dos parceiros do INEM, consubstanciada em despachos conjuntos da Administração Interna e da Saúde que reforçam os montantes a pagar para postos PEM (Postos de Emergência Médica) e PR (postos de reserva), levou a que, desde 2021, o Instituto apresentasse um decréscimo dos resultados líquidos e do património líquido.”
Acrescentando-se que, assim, dado este “novo contexto”, exige-se “a procura do reforço do financiamento do INEM, seja por via do aumento da taxa sobre seguros, seja por via do Orçamento do Estado ou novas fontes de financiamento, com vista a manter a sustentabilidade do Instituto a médio prazo”.
No plano de atividades para 2024, o INEM sublinha mesmo que “cada vez é mais evidente a necessidade de concretizar um aumento de 0,5% da percentagem que incide sobre os prémios dos seguros, o que se traduzirá num valor de receita adicional aproximada de 20 milhões de euros, essencial para garantir a continuidade da expansão do SIEM, sem comprometer a sua sustentabilidade”. E é nesse mesmo documento que se reitera, também, “a necessidade de, em sede de execução orçamental, ser autorizado o recurso ao saldo de gerência para concretização de um plano de investimentos plurianual”.
(Notícia atualizada quinta-feira, 14 de novembro, com declarações de António Leitão Amaro)