Em Emília Perez, Manitas é uma figura aterradora. Notam-se as marcas no rosto, as tatuagens, a voz dura. Estamos perante um vilão com sangue nas mãos e no dinheiro que conquistou. A advogada Rita Moro Castro (Zoë Saldaña) é desafiada por um dos maiores narcotraficantes do México a mediar um processo de transição de género no mínimo inesperado: Manitas quer ser mulher para fugir à polícia e ter finalmente uma nova vida.
Pode ser um exercício de compaixão extremamente difícil para quem está habituado a olhar para estes rostos do crime com medo. Num musical que conquistou a última edição do Festival de Cannes, durante o filme de Jacques Audiard venceu o Prémio do Júri para todo o elenco, já está a ser um dos títulos mais populares nesta época pré-Óscares. E acima de tudo surge um nome, que deu corpo a Manitas e ao seu novo eu feminino: Karla Sofia Gascón, a madrilena que pode muito bem estar prestes a fazer história como a primeira atriz trans a ser nomeada e a vencer na gala norte-americana.
Não passou despercebida no Festival de San Sebastián, onde o Observador pôde falar com a protagonista. O musical estreia-se esta quinta-feira em Portugal. “Neste filme, a música serve para aliviar toda a carga emocional envolvida, mas no caso do Manitas, não. Aprofunda o medo. É a música que inicia o terror”, diz-nos.
[trailer oficial do filme “Emilia Pérez”:]
No espaço dedicado à imprensa do hotel Maria Cristina em San Sebastián, Karla Sofia Gascón não passou despercebida. Fala um inglês ainda atabalhoado que vira logo para espanhol — o filme tem atores latino-americanos, mas será o candidato francês aos Óscares. Transpira a energias simpática e disponível de quem ainda não se sente completamente como uma estrela. Desculpam-se erros linguísticos, o sorriso de orelha a orelha convence os mais desconfiados por esta nova forasteira prestes a causar sensação em Hollywood. O que é certo é que causou impacto na Riviera francesa e no País Basco seguiu a mesma linha: foram tantos os pedidos de entrevista que as mesas redondas tiveram de ser preenchidas de jornalistas até mais não.
O barão da droga e dono de um cartel vai passar a ser a empresária Emilia Pérez. A partir do início e quase até ao fim, sem fazer grandes spoilers, podemos assegurar que a parte musical — porque é, acima de tudo, um musical — tem neste universo de tráfico de droga um papel muito importante. É esse lado que nos desafia a sentir um qualquer tipo de compaixão perante o criminoso e a querer ver mais de Karla Sofia Gascón a partir de agora. “A música complementa as sequência sem tirar ninguém da cena, que é o que acontece noutros filmes do género. Está tudo perfeitamente integrado”, confessa a atriz o Observador.
E que cenas são essas? As da advogada Rita Moro Castro a dançar e a cantar com um grupo gigante de figurantes pelas ruas mexicanas, construídas num estúdio em Paris. Os momentos audazes de uma Selena Gomes (que aqui interpreta a mulher de Manitas) que não aceita bem a transição do seu ex-marido. Ou os momentos íntimos entre Zoë Saldaña e Karla Sofia Gascón quando se voltam a ver outra vez, porque a empresária quer criar uma associação dedicada aos desaparecidos do narcotráfico e restabelecer os laços familiares com os filhos.
O filme transporta uma energia feminina nesta tríade de atrizes que tem conquistado a imprensa europeia — e que, apostamos, vai convencer os norte-americanos. Ainda assim, não reinventa a fórmula do musical, antes prefere seguir um género bem conhecido do povo latino e, claro, dos portugueses, a telenovela: “Parece, de facto, uma novela. Há quem possa não reconhecê-la neste filme, mas está lá. O Jacques quis criar um melodrama telenovelesco. Ainda que, para o realizador, a novela não tenha o mesmo significado que tem para os latinos. Mas acabou por funcionar bastante bem”. Em França, pelo menos, confirma-se este impacto, já que o país decidiu escolher Emilia Pérez para ser candidato aos Óscares.
Karla Sofia Gascón tem agora 52 anos. Passou muito tempo entre produções de novelas, portanto, conhece bem o género. Fez a transição há apenas seis anos e não tinha qualquer experiência como cantora ou dançarina. Mas teve ambição suficiente para propor ao realizador francês de Emilia Pérez que tomasse as rédeas tanto de Manitas como da sua nova persona. “Insisti para fazer ambas as personagens, queria pintar o quadro completo. Toda a gente gostava de o fazer, bem sei. Não podia ficar pela metade, não seria bom para mim nem para o filme.”
A intensidade é bem captada pela câmara de Audiard, demonstrando uma vontade de romper com limites e preconceitos muitas vezes associados a pessoas trans: um homem grotesco e assassino quer quer ser mulher e usar vestidos? Uma empresária com traços masculinos que mete medo só com o olhar? A atriz devolve a pergunta: “Porque não?”.
Gascón também não sabia como o seu ano histórico de 2024, que fez com que fosse a primeira atriz trans de sempre a vencer um prémio em Cannes — festival onde, diz, “ninguém me conhecia quando cheguei” — podia trazer uma carga grande de ódio. A política de extrema-direita Marion Maréchal, no dia em que Karla Sofia Gascón venceu em Cannes, escreveu no X (antigo Twitter), que “um homem tinha ganho o prémio para melhor atriz”. O degrau que tem de subir para os Óscares, terá uma carga ainda maior, diz: “O que posso fazer é apresentar o meu trabalho. Se tiver de ganhar, ganho, se não, paciência. Não posso fazer mais. Dá-me raiva é que quem não viu o filme venha dizer que só venci porque pertenço a uma minoria. Mas, claro, tudo o que vier de bom para mim vai estar ao lado da minoria a que pertenço, de quem sofre e só quer viver de forma livre, sem magoar ninguém”.