Foi a primeira vez que viu os filhos em quatro anos e foi a eles que se dirigiu no seu depoimento final no Tribunal de Avignon, no sul de França. “Insisto que nunca toquei nos meus filhos, nem nos meus netos. Eu guardo-os no meu coração de qualquer maneira”, assegurou Dominique Pelicot visivelmente emocionado. O homem garante que nunca abusou de outros elementos da família, mas confessou, desde o momento em que foi detido e acusado, ter drogado durante dez anos a ex-mulher, Gisèle Pelicot, para deixá-la num estado de inconsciência total e permitir a sua violação por dezenas de homens desconhecidos que encontrava online.
Esta terça-feira, tanto o agressor como a principal vítima do caso fizeram os seus depoimentos finais num julgamento que começou em setembro e que se prevê ter um veredicto no mês que vem. Os três filhos do ex-casal estiveram presentes na sala de audiências todo o dia. De manhã, Gisèle Pelicot depôs e foi acusada pela defesa do acusado de não conseguir condenar totalmente ex-marido, mesmo que tenha garantido que as ações do homem que a abusou anos a fio são “imperdoáveis”.
Na fase de interrogatório do depoimento, o advogado de Gisèle Pelicot perguntou a Dominique Pelicot sobre os ficheiros guardados no seu computador que mostram imagens da sua filha Caroline nua. “Posso dizer-lhe, olhando-a diretamente nos olhos, que nunca lhe toquei”, disse, virando-se para o local da sala de audiências onde estava a filha: “Caroline, nunca te toquei.”
Nesse momento, segundo descreve a BBC, a reportar a sessão do julgamento a partir do Tribunal de Avignon, Caroline gritou: “Estás a mentir. Estou farta das tuas mentiras. Estás sozinho nas tuas mentiras, vais morrer a mentir.”
Dominique foi também questionado em relação ao facto de não ter apagado os ficheiros incriminatórios — guardava dezenas de vídeos dos abusos à mulher — quando estava prestes a ser apanhado, após um dos incidentes de upskirting e de já ter sido interrogado pela polícia. Pelicot garante que não apagou os vídeos porque tinha intenção de contar tudo à sua então mulher e principal vítima. “Não tive coragem porque não queria perder tudo”, admitiu, referindo que se sentia um “morto-vivo” enquanto prosseguia com os abusos à mulher durante mais de uma década.
Pelicot voltou ainda a falar em tribunal sobre os abusos sexuais que sofreu na infância, que os especialistas dizem ter-lhe provocado uma cisão de personalidade. Afirmou, no entanto, que estas experiências não “desculpam nada” do que fez. Admitiu que, na base dos abusos, estava uma necessidade de “controlar as mulheres”. “Aqui está o meu motivo. Pode fazer o que quiser com isto”, revelou na resposta aos advogados da defesa de Gisèle Pelicot.
“Quando se vai a um casino, joga-se e perde-se, não se pode culpar o casino”, diz agressor sobre co-arguidos
O principal agressor e “condutor” dos abusos sexuais em série à sua própria mulher durante dez anos negou qualquer manipulação dos restantes 47 arguidos — homens das mais variadas idades que se dirigiam à casa do ex-casal para abusar de Gisèle Pelicot enquanto ela estava inconsciente.
“Para ser honesto, se eles [os outros arguidos] não estivessem aqui, eu também não estaria”, disse, negando ter manipulado os restantes agressores. A linha de defesa de alguns deles neste julgamento é a de que não tinham conhecimento da ausência de consentimento por parte da mulher, alegando considerar que participavam num “jogo sexual” do casal.
A defesa de outros tantos agressores alega ainda que os seus clientes foram drogados, tal como aconteceu com a vítima. “Se é algo que eu faria, porque não o teria feito com todos eles? Respondam-me, por favor”, questionou Dominique Pelicot, que diz que todos eles estão a socorrer-se destes alegados meios de manipulação “para se salvarem“.
“Quando se vai a um casino, joga-se e perde-se, não se pode culpar o casino“, disse, referindo-se ao esquema de abusos sexuais montado por si. Desculpou-se depois aos juízes pela expressão utilizada. Segundo a repórter da BBC no tribunal, a frase do principal arguido gerou risos na sala, incluindo de alguns dos co-arguidos.
Um dos advogados de defesa também confrontou Dominique Pelicot com o facto de ter ensinado outros homens a drogar as suas mulheres, partilhando o seu método. O homem atirou as culpas para outro homem que, antes dele, “fingiu ser enfermeiro” e que lhe ensinou como deixar a mulher inconsciente. Admitiu ainda que “sempre teve algo dentro dele” que o levou a realizar os violentos abusos à própria mulher e disse ao tribunal que tem recebido ajuda psiquiátrica nos últimos quatro anos, tempo em que tem estado detido.
Pelicot nega querer ficar conhecido enquanto criminoso sexual “prolífico”
Outro advogado interrogou Dominique Pelicot, perguntando-lhe se deseja ser conhecido, futuramente, como um criminoso “prolífico”. “Quando venho aqui, as pessoas insultam-me, não sou uma estrela”, garantiu, admitindo que preferia que a família não estivesse a passar por tudo isto.
O mesmo elemento da sua defesa questiona se “ainda há alguma bondade” nele. Ele responde que “espera que sim”. Pelicot refere ainda que teve dois deuses na sua vida. “A minha mãe há 18 anos e a minha mulher há 50 anos”, assegurou. O advogado questionou de seguida se Dominique ainda ama a sua mulher. “Não acho que isso seja correspondido”, admite o agressor. O membro da defesa vai mais longe e questiona se “amava demasiado a sua mulher” para fazer o que fez.
A sala irrompeu em protestos perante a questão do advogado. Dominique Pelicot respondeu: “Pode estar parcialmente certo.”
A sessão judicial foi suspensa cerca das 18h00 da tarde desta terça-feira, hora local em França, depois de o principal arguido ter sido interrogado durante várias horas. O julgamento retoma na quarta-feira, às 9h00 da manhã, com a continuação do depoimento de Dominique Pelicot.