A FIFA anunciou esta semana o lançamento de um fundo de 50 milhões de dólares (cerca de 47,2 milhões de euros) oriundos das receitas do Mundial do Qatar, em 2022, destinado a diversos programas sociais, mas em que são ignoradas as responsabilidades da entidade organizadora do torneio para com os muitos trabalhadores migrantes que morreram durante a construção dos estádios no Qatar.

A decisão de alocar a totalidade do chamado Legacy Fund do Mundial do Qatar a projetos de desenvolvimento ignora uma recomendação surgida num relatório da FIFA com data de 22 de dezembro de 2023 — mas só tornado público este sábado, após fortes resistências internas —, que destaca que a FIFA “tem a responsabilidade” de tomar medidas para atribuir compensações financeiras aos trabalhadores que não beneficiaram de adequada proteção laboral durante a fase de construção.

O relatório, agora conhecido, foi elaborado pelo sub-comité da FIFA para os Direitos Humanos e Responsabilidade Social para investigar a responsabilidade da organização na exploração de trabalhadores migrantes durante a construção de estádios e hotéis no Qatar — e recomenda à FIFA que elabore um projeto para aplicação do Legacy Fund que tenha em conta medidas “retrospetivas e prospetivas” para a proteção dos trabalhadores migrantes.

6.750 trabalhadores migrantes morreram na construção de infraestruturas para acolher o Mundial no Catar

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“Colocar os trabalhadores mais vulneráveis no centro do legado do Campeonato do Mundo não é apenas a coisa certa a fazer, mas é também parte da própria responsabilidade da FIFA pelos direitos humanos”, diz o relatório. “Garantir que a FIFA e o FIFA Legacy Fund contribuem para uma compensação significativa para os trabalhadores impactados em relação ao Campeonato do Mundo vai ajudar a cumprir os compromissos da FIFA na sua política de direitos humanos para o Campeonato do Mundo da FIFA Qatar 2022.”

Ao longo de dezenas de páginas, o relatório detalha a necessidade de o torneio, que se realizou no Qatar em dezembro de 2022, deixar como legado significativo para o país um conjunto de melhorias nas políticas laborais do Qatar.

Contudo, o Legacy Fund do Mundial do Qatar, apresentado esta semana, não inclui qualquer medida destinada a compensar financeiramente os trabalhadores migrantes que não beneficiaram de proteção laboral durante a construção dos estádios — nem as famílias daqueles que morreram durante os trabalhos.

De acordo com o que foi divulgado pela FIFA, os investimentos deste fundo oriundo das receitas do Mundial do Qatar vão ser distribuídos por quatro áreas: refugiados (em projetos em parceria com o alto-comissariado da ONU para os refugiados); saúde pública e ocupacional (em parceria com a Organização Mundial da Saúde, serão lançadas iniciativas para melhorar as condições de saúde e trabalho em próximos grandes eventos desportivos); educação (em parceria com a Organização Mundial do Comércio e o Centro de Comércio Internacional, para medidas destinadas à promoção de mulheres empreendedoras); e desenvolvimento do futebol (através de investimentos em iniciativas destinadas a promover a prática do futebol em países em desenvolvimento).

Em reação ao anúncio dos investimentos abrangidos pelo Legacy Fund, a Amnistia Internacional considerou que é “vergonhoso que a FIFA e o Qatar tenham lançado o seu muito aguardado fundo sem qualquer reconhecimento da sua clara responsabilidade para com o grande número de trabalhadores migrantes que foram explorados e, em muitos casos, morreram para tornar o Mundial de 2022 possível”.

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“Embora contribuir com dinheiro para os esforços globais de apoio aos refugiados e de proteção dos trabalhadores dos impactos do calor extremo seja importante, o fundo não faz absolutamente nada pelas famílias que perderam os seus entes queridos no Qatar e foram atirados para a pobreza em resultado disso”, destaca a organização.

Numa nota divulgada na sequência da revelação do fundo, a Amnistia Internacional acusa mesmo a FIFA de, “provavelmente, ignorar as conclusões do seu próprio relatório”, que ainda era desconhecido — e que só foi publicado este sábado.

O número de trabalhadores migrantes que morreram durante os trabalhos de construção das infraestruturas necessárias para o Mundial do Qatar é ainda incerto. Um relatório de sustentabilidade da FIFA dá como números oficiais três mortes relacionadas com o trabalho e 37 não relacionadas com o trabalho. As autoridades do Qatar, porém, chegaram a admitir “entre 400 e 500 mortes” de trabalhadores durante as construções. Mas há investigações que apontam para números bem maiores — estima-se que poderão ter morrido mais de 6.750 trabalhadores nas obras, a maioria migrantes de países como Índia, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka, recrutados para o efeito. Além destas mortes, abundam os relatos apontando más condições de trabalho e de exploração de migrantes para realizar as obras a baixo custo e num curto prazo. Sob pressão internacional e debaixo dos holofotes de todo o mundo, o Qatar teve mesmo de mudar a sua legislação laboral.

O mesmo relatório de sustentabilidade da FIFA admite que os trabalhos de preparação do campeonato envolveram milhares de trabalhadores migrantes e reconhece também que muitos deles foram obrigados a pagar taxas de recrutamento — algo que é ilegal tanto no Qatar como pelo direito internacional. Um dos compromissos da FIFA passa, por exemplo, pelo reembolso de todas estas taxas aos trabalhadores afetados.