Novembro é sinónimo de dias curtos, a escuridão a chegar cedo e talvez por isso os The Cure tenham decidido voltar aos discos, 16 anos depois, num mês assim. Songs of a Lost World, com o seu negrume atmosférico, foi dos discos mais ouvidos e celebrados deste mês, mas não foi o único – a mega-estrela de hip-hop e prémio Pulitzer Kendrick Lamar editou GNX sem que ninguém estivesse à espera e o mundo parou para o ouvir e dissecar até à última estrofe cada rima de um disco em que Lamar surge razoavelmente zangado, não obrigatoriamente no topo do jogo, mas em boa forma.
Por cá, os Fontaines DC deram um grande concerto e Tyler the Creator esteve no primeiro lugar das tabelas de vendas, o que só surpreende quem não tem filhos adolescentes. Já Father John Misty regressou, recebeu ótimas críticas e deixou 99,9% das minhas amigas ofegantes porque, bem, porque é Father John Misty – o que só surpreende quem não tiver amigas de 40 anos.
Mas houve mais discos relevantes, que passaram um pouco à margem das parangonas, de que os radares não deram conta, e que convém assinalar antes que a humanidade se esqueça deles, até porque encontrarão por certo os seus fãs de eleição. Vamos lá ao resumo do que de melhor se produziu em novembro.
“Nobody Loves You More”
Kim Deal
A estatística dirá que a maior parte dos músicos se estreiam a solo cedo, ali pelos 20s, o mais tardar. O que é realmente raro é alguém editar o primeiro álbum a solo aos 64 anos, caso de Kimberley Ann Deal, mais conhecida no mundo da música por Kim Deal, a baixista original dos Pixies, inventora do cool feminino no indie-rock (ao lado de Kim Gordon). Só Deal saberá porque esperou tanto, visto o talento sempre ter estado lá – nos Pixies escreveu as soberbas Gigantic e Into the Light, com as Breeders fez discos tão bons quanto os dos Pixies.
Deal teve lidar com problemas de adição e uma auto-estima que a impediam de se ver como artista a solo – mas a espera valeu a pena: Nobody Loves You More é um belo disco de indie-rock, de arranjos simples (uns violinos aqui, uns metais acolá) mas eficazes e cheio de guitarrinhas deliciosas e grandes melodias. O que se deseja à senhora Deal, agora que se estreou a solo, é que tenha uma longa e frutuosa carreira, para bem dos nossos ouvidos.
“Access All Areas”
Flo
Nunca ninguém entende muito bem como se dão os revivalismos – o que numa altura é considerado ultrapassado, passado uns anos é visto como uma fonte segura de inspiração. O r’n’b, que na década de 90 começou por ser considerado uma arte menor — e sobretudo comercial, como se fosse coisa terrível — foi (com o tempo) revisto em alta. E agora parece ter chegado o momento do seu revivalismo (se é que alguma vez foi embora).
E foi exatamente esse r’n’b que as Flo, um trio de raparigas inglesas, escolheram como principal influência de Access All Areas, o seu disco de estreia – e, diga-se, executam-no com uma sabedoria inesperada em gente inexperiente: beats imaculados, coros, melodias de cetim e uma mão cheia de grandes singles (Check é maravilhosa) remetem-nos para os tempos em que as Destiny’s Child ou as Sugababes ditavam as regras da pop – e não é por acaso que elas mencionam tanto Destiny’s Child como as Sugababes logo no início do disco.
“Night Palace”
Mount Eerie
Ninguém quer estar na pele de Phil Elvrum e isso nota-se em Night Palace, um disco duríssimo, mesmo tendo canções lindíssimas, como Huge Fire, uma das grandes faixas que ninguém ouviu deste ano. Em 2016, Elvrum perdeu Geneviève Castrée, sua esposa e mãe da filha de (então) um ano, para o cancro. Em 2018 voltou a casar, desta feita com a atriz Michelle Williams, mas o casamento não durou – e se discos anteriores abordavam a morte da esposa, aqui é a separação de Williams o mote para Night Palace.
É um disco estupidamente triste mas absolutamente admirável na arte de nos fazer sentir empatia por cada pessoa que estiver neste momento com o coração partido. Ainda não me decidi se Night Palace é tão bom que quase nos dá vontade de estar a sofrer (para sentir o mesmo que se sente ao ouvir o disco) ou é tão duro que nos faz ter medo de voltar a arriscar ao amor e acabar assim. Felizmente as dores de coração são muito melhores em música que na vida.
“Eels”
Being Dead
Havia uma banda chamada Eels, de Mark E, e diga-se que não seria minimamente se os Eels tivessem lançado um disco chamado Being Dead, tanta é a proximidade de Mark E com a morte. Mas o que temos aqui é uma banda chamada Being Dead, cultura de um rock lo-fi sem grandes tretas que, ao segundo disco, sacam ótimas melodias, inventivas e cheias de coros.
Tirem 3 minutos e 33 segundos para ouvir Van Goes: um riffzinho de guitarra, a voz cheia de ennui, muitos coros e de repente o que parecem ser 3 melodias a ocorrer ao mesmo tempo, tudo com uma simplicidade enorme, que evoca tanto os Ramones como os The Fall ou os maravilhoso The Clean. Bom, podíamos encher páginas com as influências que notamos (as dinâmicas lembram os Pixies, por exemplo), mas em resumo digamos que há ecos de qualquer uma das primeiras bandas da era de ouro do CGBG – e que o fundamental é que o rock divergente continua tonificado, musculado, bem nutrido e com boas análises.
“Seed of a Seed”
Haley Heynderickx
I Need To Start a Garden, o disco de estreia de Haley Heynderickx, era uma das joias mais preciosas da indie-folk dos últimos anos: delicado, inesperado e melodicamente inspirado, capturava qualquer coisa de inominável nisto de ser vivo e, em particular, milenial. Em Seed of a Seed o tema regressa logo à primeira canção, quando – por cima de uma bela riffalhada acústica – Haley confessa a sua culpa por passar demasiado tempo no smartphone.
Foram seis anos de espera desde I Need To Start a Garden, mas Haley mantém todas as suas qualidades: é uma guitarrista nata e bastante experimental (há momentos em que as canções vão parar quase à bossa), e é, sobretudo, uma observadora aguda da condição humana, que traduz em letras de um humor mordaz mas empático – e sobretudo, sabe como calibrá-las para o formato canção e torná-las em melodias levemente melancólicas e comoventes (exemplo do tema títulos, entre outros). Um disco em estado de graça.
“Electric Bouquet”
Anna McClellan
Há discos que só existem para nos comover, para nos recordar que a vulnerabilidade é uma qualidade que devemos preservar com todas as nossas forças. Basta um segundo de piano e voz frágil e sofrida de Anna McClellan para percebermos que está na hora de ir buscarmos os lenços de papel e simplesmente abrirmos o coração a esta tremenda beleza: em Jam the Phones ela desata a gritar “Cry your eyes out” e isto das coisas mais bonitas que aconteceram em 2024.
O mais engraçado é que, quando não está a fazer música, McClellan exerce uma profissão com zero grau de emotividade – é eletricista e técnica de luzes em cenários de TV. Mas esperemos que isso não dure muito tempo e que estas canções estranhas e doces, com subtis arranjos de vibrafone e saxofone, sejam ouvidas por muita gente e a ajudem a pagar as contas sem necessidade de apanhar choques elétricos.