Embora eu não seja jornalista e não tenha o dever da imparcialidade, acho que faz sentido um pequeno enquadramento. Não sou fã de Tony Carreira. Pronto, disse. Não me odeiem, mas também não concordem comigo de forma sobranceira. É o que é. Não é por ele ser “pimba” ou por ser um cantor “popular”. Há muita coisa nesse espectro que me dá bastante alegria e provavelmente vos deixaria de cara à banda. E se “cara à banda” não é a expressão mais idosa alguma vez usada num artigo da secção de cultura do Observador, que me ardam todos os naperons que eu tenho na gaveta do psiché. O Marante dá-me alegria, o Nel Monteiro tem grandes malhões, os Malhoas têm um assoalhada no meu coração, o Dino Meira deixou-me saudade eterna, enfim… Ficam a saber que não sou a intelectual erudita que vocês pensavam. Na verdade, ninguém pensava, porque não sou suficientemente relevante para seja quem for ter uma opinião formada sobre a minha pessoa. Mas vocês perceberam a ideia.
É claro que sei algumas cantigas do Tony de cor e salteado. Come on, é o Tony. Mas não é, de facto, a minha praia. No entanto, não sendo fã do “poeta, cantor de cantigas de amor”, não lhe tenho nenhum ranço ou antipatia. É certo que, como autora que sou, as minhas ideias são o meu património mais precioso e há poucas coisas que me tirem mais do sério que a apropriação, plágio ou, pura e simplesmente, o roubo da propriedade intelectual. Mas isso fica para os tribunais julgarem. Por outro lado, como mãe que sou, tenho profunda compaixão pela perda dele. E há, também, um lado de respeito pelo seu percurso de origens humildes, por ser um homem que construiu uma carreira bem sucedida e duradoura, enchendo salas de espectáculos que os tais intelectuais eruditos achariam impossível ou mesmo escandaloso.
[o trailer de “Tony”:]
Vamos ao que interessa. Vi os dois primeiros da série de quatro episódios, descrita pela TVI (que a produz, com a Prime Video) da seguinte forma: “Tony é o nome da minissérie que retrata a vida de Tony Carreira desde a infância no Armadouro, onde lidou com a fome e a pobreza, os anos de emigração em França, o início da carreira e a luta pelo sucesso até se tornar um dos maiores cantores românticos portugueses. Uma biografia musical de um Herói Português. Uma história de superação, sobrevivência, trabalho, conquista, sonho, romance e amor… O homem que se inventou a si próprio para alcançar o que mais ambicionou ao longo da sua vida: a criação de um legado familiar.” Não vou mentir: “Herói Português”, ainda por cima com maiúsculas, custa-me um pouco. Mas estão a vender o peixe deles, vou deixar passar. Ouviram isto? Foram os CEOs da Media Capital e da Prime Video a respirar de alívio, por esta abébia que eu lhes dei.
O primeiro episódio começa momentos antes de um concerto de Tony Carreira em Paris, em 2001. O espectador menos conhecedor poderá não perceber logo o porquê da escolha deste evento em concreto e qual a sua importância para a narrativa, mas o Tony da altura explica em conversa com o irmão e agente Zé, num diálogo com a naturalidade de uma Fanta Laranja “Zé, nós acabámos de esgotar a mais emblemática sala de espectáculos em Paris. Como é que tu queres que eu não esteja nervoso?”.
A partir daqui, a linha narrativa do episódio vai intercalando entre momentos deste concerto e retratos da infância do pequeno António, em Armadouro: o pequeno António a roubar figos; o pequeno António a atirar pedras várias vezes e a várias coisas (bem sei que isto é coisa de putos, mas esta ação repete-se tantas vezes, que parece ser um traço de personalidade); o pequeno António a ficar a cargo dos avós, enquanto a mãe e o irmão mais velho se juntam ao pai (que já estava a trabalhar em França); o pequeno António a ter o seu primeiro contacto com a música, quando uma carrinha forrada a “gajas nuas” e cheia de cassetes chega à aldeia para animar o baile; o pequeno António a ver o avô, o seu herói, a chegar a casa de cabeça rachada, amparado num homem que diz “já fui chamar o padre”; o pequeno António a despedir-se do avô, que morre em casa, e no último suspiro lhe diz “Sonha” (aparentemente, ninguém se lembrou de levar o homem para o hospital. Era Pampilhosa da Serra em 1970, não era Pampilhosa da Serra em 1570, na altura da peste negra!); e por último o pequeno António a despedir-se da “aldeia, perdida na Beira”, tornando-se se um emigrante, tal como os pais e o irmão. Voltando a Paris, 2001, o concerto foi um sucesso, até houve uma fã que subiu a palco e lhe espetou um xoxo, e um Tony reflexivo decide voltar para a terra Natal de vez, porque “Eu preciso que me reconheçam em Portugal”.
O segundo episódio também vai alternado entre duas linhas temporais. A primeira, em 2003, começa na rua das Portas de Santo Antão e vai narrando os dias que antecedem o primeiro Coliseu de Lisboa de Tony: as hesitações, um ataque de síndrome de impostor do nosso “vagabundo feliz” (muita empatia, estamos juntos), as estratégias para encher um espectáculo que parecia votado ao fracasso, as primeiras aparições de Fernanda, a mulher, e o convite de Tony para que se tornasse sua agente (em substituição do irmão Zé, que quer continuar na França); e um autocolante a dizer esgotado no cartaz do Coliseu.
A segunda linha temporal começa com a chegada a Dourdan, França, onde os pais e o irmão Zé já viviam. Assistimos às dificuldades de adaptação do pré-adolescente António, que é vítima de bullying; o desenvolvimento da sua paixão pela música, muito ancorada na admiração por um tal de Mike Brant, que tinha um cabelo não menos que incrível; o sacanço de miúdas francesas de um António já adolescente; o trabalho na fábrica de enchidos, que abominava; o regresso à terra onde tem mais dificuldade para engatar, porque com as francesas “não precisa de falar”; um desabafo na campa do avô; e finalmente a metamorfose de António para Tony, quando diz a uma miúda de aldeia “eu sou cantor”.
E o que é que eu achei disto tudo? Está bonito e bem filmado. Outra coisa não seria de esperar, com a Prime na equação. O primeiro episódio enche bastante chouriço com o concerto em Paris, que contribui tão pouco para a história, que mais parece um separador. Os dois atores que fazem de “Tony criança” são bons, especialmente o segundo. As cenas na aldeia são as mais bonitas, mas talvez até de mais. Eu explico: a família é retratada como muito humilde, mas é uma pobreza de postal ilustrado. Se usássemos um frame do pequeno António pastor num catálogo da Lanidor Kids, não ia destoar. Há uma música meio épica usada em momentos de transição, absolutamente descabida na minha opinião, que me fez lembrar o Lendas de Paixão. Por momentos, pensei que me fosse aparecer o Tristan/Brad Pitt a trotar no seu cavalo de cabelos ao vento, e em vez disso aparece-me o Avô do Tony/João Lagarto, montado num burro a vender sardinha seca. Por muito que eu admire o João Lagarto, que admiro, é tudo uma questão de expectativas. O Carlos Félix, que faz o protagonista, parece-me uma boa escolha em temos físicos, apanhou alguns gestos e trejeitos reconhecíveis, mas nestes dois episódios ainda não mostrou o suficiente, que me faça dizer que é um grande papel. As restantes personagens variam entre o acessório e o meio caricaturado, apesar de ter ótimos nomes no elenco.
Dito isto, fazer um biopic de alguém ainda vivo parece-me uma “shit storm” que eu, enquanto argumentista, evitaria… A não ser que o vil metal dobrasse esta minha convicção e eu era menina para comer estas minhas palavras, desde que tivesse um bom Champagne francês para empurrar. Neste caso em concreto, há que juntar mais uma potencial camada de enxaquecas debilitantes: o biografado é acionista da TVI. Não sei qual foi o envolvimento de Tony na série, se influenciou ou condicionou as escolhas, mas pelo que foi noticiado os episódios do divórcio e da morte da filha ficarão de fora. Opções que muito respeito, claro, mas parecem-me demonstrativas que este Tony é prematuro. Mas a procissão ainda vai no adro, que é como quem diz, ainda faltam dois episódios que podem muito bem fazer-me comer estas palavras. Pelo sim, pelo não, no fim-de-semana terei uma garrafa de Raposeira no frio. Pode ser que a segunda metade da série me faça mudar de opinião. Espero que sim, serei uma “vagabunda feliz”.