Depois de, recentemente, ter sido acusado de violências sexuais por mais de 20 mulheres, uma carta escrita à mão por Abbé Pierre, encontrada nos arquivos dos Frades Menores Capuchinhos, veio revelar que o famoso padre francês, fundador da Emaús, instituição de solidariedade social, foi vítima de abusos sexuais aos sete anos. As pilhas de papéis que relatam a sua infância, juventude e vida adulta, ordenados por ordem cronológica, aos quais o Le Monde teve acesso, desvendaram, segundo o jornal francês, “impulsos prementes e desordenados” de uma das personalidades mais queridas de França, e revelaram “a origem da sua carreira como predador sexual”.

Na carta escrita em 1932, aos 20 anos, Abbé Pierre, de seu nome Henri Grouès, relatou que sofreu de abusos sexuais aos sete anos enquanto era aluno interno de Notre-Dame des Minimes, em Lyon.“Durante dois meses, sob a mira de uma arma, tornei-me no jogo deles”, escreveu. “Um dia, fugi da escola. Em casa, viram-me a chegar sem fôlego, não sabiam, fizeram perguntas. Eu não respondo. Perceberam que tinha febre – uma graça que o meu coração agradece — e passei três meses na cama, doente, mas salvo.”

Nesta carta de “quase 17 páginas”,  dirigida ao seu mestre de noviços, Louis-Antoine de Clermont-Ferrand, que escreveu “a partir da sua cela monástica em Saint-Etienne”, depois de ter entrado para os Capuchinhos, ainda menciona que, ao retornar ao colégio, os agressores tinham sido expulsos: “Quando voltei aos Minimes, os adultos tinham-me esquecido. Outra pessoa era vítima deles. Um mês depois, os mais endiabrados foram surpreendidos e despedidos com grande escândalo. Ouço o eco. Eu tinha 7 anos.

Os votos capuchinhos e os seus dilemas pessoais

“Movidos por uma preocupação de transparência”, os capuchinhos permitiram que o jornal Le Monde consultasse a correspondência monástica de Frei Filipe (nome que assumiu aos 19 anos, antes de entrar na ordem dos Capuchinhos.

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O jornal francês descreveu duas caixas “cheias até rebentar” de cartas de Abbé Pierre em criança, adolescente e adulto, que sempre se proclamou como “grande escritor”.

Ao longo da vida, Abbé Pierre guiava-se por três votos – o voto de pobreza, o voto de castidade e o voto de obediência – que constituíam a pedra angular dos capuchinhos e refletiam a procura espiritual de Henri Grouès.

O voto de pobreza orientou Henri Grouès para o abandono total de bens materiais. A 10 de dezembro de 1932, renunciou à sua parte da herança familiar, em conformidade com a regra de São Francisco de Assis, que proíbe todos os bens pessoais. Os capuchinhos preconizavam uma vida despojada, com condições de vida rigorosas: dormiam vestidos sobre uma tábua, contentavam-se com pouca comida e flagelavam-se para imprimir “o amor da penitência” nos seus corações. Numa carta, Henri confessou a dificuldade que sentia em seguir este modo de vida: “Não tenho força suficiente para andar com estas algemas”, mas persistia sempre em nome da sua fé.

O voto de castidade sempre representou uma prova íntima e dolorosa para Henri. Desde a sua infância que lutava contra uma perceção perturbada do seu próprio corpo e dos seus desejos, tendo aos cinco anos de idade, tentado mutilar-se para rejeitar “esta coisa sombria” que “detestava”. Aos 16 anos, fez um voto de castidade, uma decisão que qualificou como libertadora: “A partir desse dia – paz.”.

No entanto, esta paz permaneceu frágil. Numa carta destinada ao seu diretor de estudos, o padre Ernest de Saint-Etienne, em 1937, confessou-se dilacerado por uma paixão por um colega frade capuchinho: “Tenho necessidade de chorar no seu ombro! Só por ele!”, confessou.

Apesar desta tensão entre os seus desejos e a sua vocação religiosa, sempre tentou resistir aos seus sentimentos e empenhou-se na sua castidade, que considerava ser um meio para alcançar um amor mais puro, centrado em Deus.

O voto de obediência impõe-se para Henri Grouès como um teste psicológico. Com um caráter “ardente e independente”, como ele próprio admite, esforçava-se por se conformar com as rígidas regras monásticas que lhe eram impostas, no entanto, várias trocas de impressões com os seus superiores revelaram as suas dificuldades em seguir a norma.

A sua necessidade de liberdade levou-o, por vezes, a desobedecer, como quando abandonou o convento sem autorização em 1939. O seu conflito interior acabou por levar a melhor, sentindo-se incapaz de cumprir plenamente a disciplina capuchinha, apesar dos seus esforços, acabou por abandonar a ordem em 1939, encontrando no clero secular um ambiente mais adequado para o seu temperamento.

“Através da correspondência do futuro padre, surge o retrato de um homem atormentado pela carne desde a mais tenra infância. E esses impulsos prementes e desordenados parecem nunca ter sido canalizados”, afirmou o Le Monde o que poderá explicar o que se passou mais tarde, já anos anos 50.

As acusações recentes e o impacto na sua reputação

Foi esse lado escuro do criador da Emaús que veio a público este ano. Abbé Pierre foi acusado por 24 mulheres de abusos sexuais, em que alguns atos que podem ser considerados violações, alegadamente cometidos entre os anos 1950 e 2000, segundo um relatório da Egaé.

As acusações incluem “toques não solicitados nos seios”, “beijos forçados”, “contactos sexuais repetidos com uma pessoa vulnerável”, “atos repetidos de penetração sexual” e “contactos sexuais com uma criança”, que vieram manchar a reputação de uma das figuras mais emblemáticas de França.

Os testemunhos provêm de voluntários da Emaús, empregados, familiares próximos ou pessoas que conheceram o padre em eventos públicos.

Na sequência dos testemunhos, a Fundação Abbé-Pierre anunciou a decisão de mudar de nome, e a Emaús decidiu encerrar definitivamente o memorial dedicado ao padre, em Esteville, no oeste de França.

O Papa Francisco reconheceu que o Vaticano tinha conhecimento das acusações pelo menos desde 2007, ano de sua morte.

França: Igreja Católica admite que alguns bispos sabiam de abusos sexuais de padre francês desde década de 1950

Abbé Pierre foi uma figura muito estimada e emblemática em França, por ter dedicado a sua vida à luta contra a pobreza e fundado os Companheiros Emaús. Morreu aos 94 anos, num hospital de Paris, depois de ter sido internado na sequência de uma bronquite.

Texto editado por Dulce Neto