Depois de uma longa batalha judicial, que envolveu o Estado Português e parte da família de Eça de Queiroz, o escritor vai ser mesmo trasladado para o Panteão Nacional, para se juntar à galeria de notáveis que jazem naquele espaço, em Lisboa. Os restos mortais serão transportados para a capital no próximo dia 8 de janeiro, quarta-feira, depois de um fim de semana em que a Fundação Eça de Queiroz está a organizar visitas gratuitas, uma oficina de escrita e um jantar-tertúlia na casa de Tormes, no concelho de Baião.
O autor de obras como A Cidade e as Serras ou Os Maias morreu em 16 de agosto de 1900 e foi sepultado em Lisboa. Em setembro de 1989, os seus restos mortais foram transportados do Cemitério do Alto de São João, na capital, para um jazigo de família, no cemitério de Santa Cruz do Douro, em Baião. 125 anos depois da morte, especialistas forenses falam apenas da trasladação das ossadas de Eça e explicam o que acontece ao corpo humano após a morte.
125 anos depois, apenas ossadas
Tendo em conta o tempo já decorrido desde a morte de Eça (cujas causas são desconhecidas), “o natural é que o corpo esteja reduzido a ossadas”, diz ao Observador o médico legista Mário Sardinha. Estando o escritor num jazigo há décadas, e “mesmo que parte da estrutura [do esqueleto] já esteja decaída (e já não tenha os ossos todos íntegros), certamente terá os [ossos] mais robustos (o fémur, por exemplo)“, sublinha o especialista, que trabalha no Instituto Nacional de Medicina Legal, acrescentando que “certamente haverá algum material ósseo” restante aquando da trasladação do escritor para o Panteão.
Uma opinião também partilhada pela especialista em Antropologia Forense Eugénia Cunha. “Por esta altura, o corpo está esqueletizado. O que vai ser trasladado são os ossos de Eça de Queiroz“, diz a também professora catedrática da Universidade de Coimbra, acrescentando que a esqueletização “ocorre em poucos anos”.
A possibilidade de mumificação
Eça de Queiroz morreu em Paris (quando exercia o cargo de cônsul de Portugal na capital francesa), a 16 de agosto de 1900, a três meses de completar 55 anos. Antes de ser transportado para Lisboa, o caixão esteve cerca de um mês depositado, de forma provisória, num túmulo, na Igreja de Saint-Pierre de Neuill. O corpo de Eça chegou ao Terreiro do Paço a 17 de setembro de 1900 e acabaria por ficar, durante quase 90 anos, no jazigo dos condes de Resende (os sogros), no Cemitério do Alto de São João, na zona da Penha de França, em Lisboa.
Embora sublinhe desconhecer que tenha sido feita qualquer preservação do corpo, Eugénia Cunha admite que numa situação como a de Eça possa haver mais que ossadas, caso tal tenha acontecido, e dá como exemplo o rei D. Dinis, que morreu há precisamente 700 anos e cujos restos mortais ainda preservam outros elementos, garante a especialista.
“Porventura poderá (no todo ou em parte) haver uma situação de mumificação natural”, admite igualmente Mário Sardinha, caso o corpo tenha sido preservado. Na maior parte das vezes, não se consegue obter uma preservação homogénea em todo o cadáver “podendo haver algum grau de união entre os ossos“, realça o especialista.
Deposição em jazigo tem influência?
O facto do corpo de Eça de Queiroz não ter sido enterrado, ficado sob terra, mas sim sempre à superfície — primeiro em Lisboa e nos últimos 35 anos num outro jazigo em Baião — “permite um arejamento diferente, uma condição mais fresca”, admite o médico legista Mário Sardinha.
Tendo isso relevância na forma como o corpo humano se decompõe, se não tiver havido nenhum tipo de preservação, o especialista não espera que, “passados mais de 100 anos”, haja mumificação do corpo do escritor.
Quanto tempo demora até um corpo a chegar ao estado de esqueleto?
Há relatos de situações muito variáveis, sublinha Mário Sardinha. Até se decompor totalmente, um corpo passa por várias fases: a autólise (com a interrupção da circulação sanguínea); a putrefação (com o rompimento de algumas partes do corpo); a colonização; a fermentação butírica e a esqueletização (fase onde só restam os ossos ou algumas cartilagens).
Este processo pode demorar poucas semanas (“uma raridade”, segundo o médico), mas normalmente as decomposições demoram “alguns anos”. De acordo com a legislação portuguesa, é proibido abrir qualquer sepultura antes do prazo de três anos a contar do enterro, uma vez que se considera que esse é o tempo médio necessário para a esqueletização de um corpo.
Que condições influenciam a decomposição de um corpo?
Segundo os dois especialistas contactados pelo Observador, existem pelo menos seis fatores que podem acelerar ou atrasar a decomposição do corpo humano. A humidade e temperatura (sendo que, quanto mais elevadas, mais contribuem para o processo de decomposição); o tipo de solo (em solos gelados ou inertes, a decomposição é mais lenta, por exemplo); o acesso do corpo a oxigénio; a exposição a agentes externos (como fauna ou flora, que caso existam, aceleram o processo) e as características da própria pessoa, nomeadamente a quantidade de tecido adiposo ou as doenças associadas (nos casos em que a morte se deveu a uma doença infecciosa, por exemplo, a decomposição do corpo pode acelerar).
A causa da morte de Eça de Queiroz permanece ainda desconhecida, embora existam várias teorias: desde tuberculose a vários tipos de cancro (estômago ou intestino), passando pela neurastenia (o enfraquecimento do sistema nervoso central).
Quanto tempo pode demorar até um esqueleto se transformar em pó?
Segundo o médico legista Mário Sardinha, este é um processo que pode levar “vários milhares de anos”, relembrando que, ainda hoje, são encontrados “esqueletos de antepassados que viveram há dezenas e até centenas de milhares de anos”. Isso acontece em várias escavações arqueológicas e, no caso da preservação de corpos, onde o caso mais flagrante é o das múmias egípcias.