A promulgação cravada de reservas do Presidente da República, no dia seguinte ao Natal, acendeu o rastilho ao decreto do Governo que alterou o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial, também conhecido por lei dos solos. O Bloco juntou-se com PCP, Livre e PAN para pedir a apreciação parlamentar (marcada para dia 24) e tentar travar a vigência do decreto, mas o PS está pouco interessado em fazer mais do que algumas alterações. E o Chega ainda está a pensar no caso.

Esta terça-feira, no programa Conselho de Líderes, da TSF, a líder parlamentar do PS falou pela primeira vez no decreto que Marcelo Rebelo de Sousa promulgou “apesar de constituir um entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território” — segundo a nota da Presidência. Para Alexandra Leitão, as alterações que permitem que terrenos rústicos possam ser reclassificados para serem utilizados para construção não representam um problema por si, como tem defendido a esquerda à esquerda do PS.

Leitão disse mesmo que “não há uma objeção de princípio” do PS ao que foi aprovado pelo Governo, nomeadamente à passagem do poder de reclassificação de solos para as autarquias. E alinha com as justificações do Governo para a alteração ao regime jurídico, defendendo que ela visa “aumentar a oferta e, com isso, diminuir os preços” da habitação. Por isso, o PS não vai querer travar a mudança e avançará apenas com o que diz serem duas “alterações importantes”.

A primeira é que continue a ser obrigatório que a reclassificação de solos rústicos em urbanos siga “a regra de contiguidade“, ou seja, que isso só possa acontecer em terrenos rústico contíguos a terrenos urbanos. Isto para evitar “ilhas urbanizadas” que exijam a construção de grandes infraestruturas e choquem com o ordenamento do território. Uma questão que foi logo levantada pela a Associação Nacional de Municípios quando se pronunciou sobre o decreto — que, na avaliação global, não contestou.

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A segunda alteração que o PS pretende propor tem a ver com o valor das futuras casas. O decreto determina que esse valor não ultrapasse 125% da mediana de preço de venda no concelho, nem 225% da mediana nacional — e os socialistas consideram que “pode haver reclassificação do uso dos solos para pôr no mercado casas 25% acima do valor da média. Isso é um erro e ninguém compreende que se considere moderado um preço que fica 25% acima da mediana.”

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Pontos do PS “parecem sensatos”, diz Hugo Soares

Logo no mesmo programa, o líder parlamentar do PSD apareceu aberto às alterações que o PS coloca em cima da mesa. Hugo Soares disse que “alguns” dos pontos referidos pelo PS “parecem sensatos“: “Podemos olhar para algumas destas matérias.” O social-democrata só quer que o processo seja “expedito” e atira à “esquerda radical” por colocar a alteração como uma via verde para a corrupção nas autarquias: “Olhamos para os autarcas com esta desconfiança? São potenciais criminosos?”

À esquerda começam a alinhar-se as vozes para atirar ao bloco central na alteração à lei dos solos em cima de eleições autárquicas, sobretudo depois de os líderes parlamentares de PSD e PS surgirem em clima de paz sobre este assunto. A critica maior deixada pela socialista no mesmo programa da TSF foi, aliás, ao Presidente da República, ao afastar a ligação que Marcelo fez ao PRR para justificar a promulgação do decreto com tantas dúvidas. “É uma ligação abusiva“, disse Leitão que argumentou com a pouca relação que uma lei aprovada em 2025, que permitirá, só muito mais adiante, avançar com a construção de casas, com o programa que tem 2026 como prazo de execução.

De resto, ao Governo, Leitão só deixou um reparo, ao defender que tivesse sido feito um debate mais alargado sobre este assunto e na Assembleia da República. O decreto foi aprovado em Conselho de Ministros no início do mês de dezembro, promulgado pelo Presidente da República a 26 de dezembro e foi publicado em Diário da República no antepenúltimo dia do ano (entre em vigor 30 dias depois da publicação).

Já o Chega, o outro partido que é decisivo para a formação de maiorias no Parlamento, não foi conclusivo sobre o tema, embora não pareça alinhar numa posição mais radical face ao decreto do Governo. E isto porque ainda esta segunda-feira, em declarações aos jornalistas, André Ventura admitiu que “é importante que haja flexibilidade, porque isso gera investimento e crescimento económico, e atrai investimento”. Ainda que logo de seguida tenha acrescentado algumas reservas.

“Esta iniciativa parece querer descomplexificar de tal forma e flexibilizar de tal maneira, que abre as portas à participação da corrupção neste fenómeno de forma muito, muito abrangente”, disse Ventura, apontando a uma alteração “muito facilitada” do Plano Diretor Municipal (PDM) que “irá certamente aumentar também os riscos de corrupção e de fraude”.

O Chega parece avançar com cautelas num tema que toca, aos mesmo tempo, a agilização de investimento e dinamização da economia, mas também dúvidas sobre eventuais aproveitamentos com uma excessiva simplificação de processos. O combate à corrupção é uma das áreas de peso no seu campo de batalha e, nesta matéria, o Bloco tomou a dianteira, quando veio primeiro apontar a uma alteração que “incentiva a especulação imobiliária, agrava o combate às alterações climáticas e torna as cidades e vilas muito mais permeáveis à corrupção”.

Ventura tende a concordar com a última frase, mas ao mesmo tempo reconhece a necessidade de “atrair investimento”, Assim, por agora, vai mantendo o Chega recuado, atirando mais para a frente uma decisão sobre o que fazer em relação ao decreto que vai ser apreciado dentro de duas semanas no Parlamento.

Até aqui, não foi preciso ter uma maioria para chamar ao Parlamento o decreto do Governo (para a apreciação parlamentar de um decreto bastam dez deputados), já a aprovação de alterações (como quer o PS — e o PSD parece concordar) e a cessação de vigência (que o BE vai propor) seguem as regras das votações. Um acordo do PS e PSD será suficiente para que o decreto do Governo se mantenha, ainda que possam ser feitas algumas alterações — com este entendimento alinhado, a votação do Chega não fará diferença.