Será a frase mais reveladora dos acordos assinados esta terça-feira por António Costa, com cada um dos partidos de esquerda que apoiarão o arranque da sua governação. “O PS e o PCP reconhecem as maiores exigências de identificação política que um acordo sobre um Governo e um Programa de Governo colocava“, lê-se no ponto 4 do documento. A frase é replicada no papel assinado pelo BE e também no dos Verdes. E “colocava” é a palavra chave: o verbo está no pretérito imperfeito. Não há nos três documentos mais referências a um “acordo” e até o título fala de uma “posição conjunta sobre solução política”.

Estes não são, assim, acordos sobre um programa, mas sim sobre medidas de emergência. Se Cavaco Silva der posse ao Governo que António Costa lhe vai propor, serão vários os obstáculos que o primeiro governo minoritário com apoio parlamentar em Portugal vai ter pela frente. Negociações permanentes – e sempre bilaterais, muitos dossiês em aberto, divergências vincadas até nos acordos. Aqui estão nove exemplos, numa viagem que estará cheia de imprevistos.

  • O Acordo assumido não é um acordo para a governação, antes uma “posição conjunta sobre solução política” – como se lê nos títulos. No texto assinado com o PCP, lê-se que o objetivo das negociações foi chegar a “uma política que dê resposta aos problemas mais urgentes dos portugueses” ou “um indispensável sinal de mudança”. E isto “na perspetiva de uma legislatura”. No caso do Bloco, os termos são – anote-se – diferentes: “Vontade de negociar um acordo tendo no horizonte a construção de uma maioria estável, duradoura e credível na AR, que sustente a formação e a ação de um Governo comprometido com a mudança”. Repetindo a frase do ponto 4 dos vários acordos texto: os partidos “reconhecem as maiores exigências de identificação política que um acordo sobre um Governo e um Programa de Governo colocava“. Colocava: pretérito imperfeito.
  • PS e PCP assinalam divergências no texto do acordo. Não só as “diferenças quanto a aspetos estruturantes” entre os programas, mas sobretudo sobre como concretizar algumas medidas que fazem parte do acordo. Lê-se assim: “PS e PCP registam ainda a identificação de outras matérias onde, apesar de não se ter verificado acordo quanto à sua concretização, se regista uma convergência quanto ao enunciado dos objetivos”.
    E a lista é longa: ritmo de reposição dos salários, de fim da sobretaxa, de reposição das 35 horas de trabalho no Estado, eliminação de restrições à contratação no Estado, “aumento dos escalões e progressividade no IRS”, eliminação das taxas moderadoras, reposição de regras de transporte de doentes não urgentes, alargamento de acesso e montantes de apoios sociais, reforço e diversificação das fontes de financiamento da Segurança Social. 
    No caso do Bloco, anota-se “a natureza distinta dos programas” – mas, ao contrário do PCP, o Bloco não se limita a anotar as matérias de convergência plena, como as lista em anexo para o PS colocar no programa de Governo. 
  • A perspetiva de um objetivo. Vejamos a formulação dos partidos: “PS e PCP reconhecem, no quadro do grau de convergência, que foi possível alcançar que estão criadas as condições para (…) existir uma base institucional bastante para que o PS possa adotar medidas que respondam a aspirações e direitos do povo português”.
  • OE, mais medidas, censuras: conversas marcadas. Nos instrumentos centrais para a governação, o acordo promete… mais conversas. Por exemplo:
    • Os partidos vão “encetar o exame comum quanto à expressão que as matérias convergentes identificadas devem ter nos Orçamentos do Estado, na generalidade na especialidade”;
    • No que respeita a medidas de “concretização mais imediata”, propõem-se a “examinar as medidas e soluções. Aqui (e nesta formulação genérica) podem encaixar-se as medidas extra que António Costa já disse querer ver repostas ainda este ano (numa versão menor), para não haver um buraco no início do OE2016;
    • Já as possíveis moções de censura, ou na legislação com impacto orçamental, o acordo é de as partes as “examinem”, em reuniões bilaterais que venham comummente a ser consideradas necessárias”.
  • Todos falam com o PS – mas não uns com os outros. A obrigação de reuniões bilaterais alarga-se, até a iniciativas que venham “de outros grupos parlamentares”, como se lê no documento assinado com o PCP. Isto quer dizer que se o Bloco avançar com uma iniciativa que mereça crítica do PCP, o PS terá que dirimir o conflito. A mesma formulação é usada no acordo PS-BE e no acordo PS-Verdes, pelo que aos socialistas caberá a ligação entre todas as partes que apoiam o seu Governo.
  • Não há referências a planos B: Catarina Martins chegou a dizê-lo explicitamente, numa entrevista à SIC. Que o acordo que ia contar “metas, objetivos e compromissos e também um debate, mecanismos de articulação e prioridades para os naturais sobressaltos no caminho sobre problemas que podem surgir”. A líder do Bloco dizia que essas medidas extra não poderiam traduzir-se em cortes de rendimentos e pensões ou aumento de impostos sobre rendimentos e pensões, ou ainda “aumento de impostos sobre bens e serviços essenciais” e “diminuição da progressividade fiscal”. Mas frisou que o entendimento incluiria “outras formas” de agir, como “diferentes formas de tributação”. No papel, porém, nada aparece. 
  • Nenhuma referência às regras e objetivos europeus, sequer aos tratados internacionais. Nestes quatro documentos não se lê uma só referência ao que pediu o Presidente da República nos seus últimos discursos. Nem as regras do euro, nem os tratados da UE, tão pouco os que ligam Portugal à NATO ou ao acordo em negociação entre UE e EUA. Isso fica escrito, sim, no programa de Governo.
  • Ninguém no Governo. Os acordos dizem, no mesmo tom, que as diferenças entre os partidos impedem outras formas de apoio a um Governo do PS. 
  • Pouco os prende depois de 2016. Entre as medidas negociadas entre o PS e os outros partidos da esquerda, a esmagadora maioria terá de ser aplicada nos primeiros meses de governação. As ‘amarras’ programáticas a ligar os quatro partidos daqui a um ano são poucas, valendo destacar estas:
    • Descongelamento das carreiras: é suposto aplicar-se a partir de 2018 – pelo que a sua aplicação só virá com o orçamento a apresentar em outubro de 2017.
    • Aumentar a progressividade do IRS, nomeadamente através do aumento do número de escalões (grupo de trabalho em 2016);
    • Revisão da tributação municipal do património, ponderando a introdução da progressividade no IMI;
    • Universalidade da oferta da educação pré-escolar a todas as crianças dos três aos cinco anos, até ao final da legislatura;
    • Há outras medidas contínuas e podem ser definidas e calendarizadas em Concertação Social: aumento anual das pensões; aumento do salário mínimo, etc;
    • E vários grupos de trabalho, cujo trabalho deve apontar para o orçamento de 2017 (aprovado daqui a um ano, se tudo correr normalmente): plano contra a precariedade; pensões não contributivas; avaliação de sustentabilidade da dívida externa; avaliação dos custos energéticos; e um outro para a política de habitação, crédito imobiliário e tributação do património. No documento do Bloco não se refere um outro, que tinha sido referido pelo PS: um grupo que avaliaria os escalões e progressividade do IRS. O acordo com o Bloco prevê ainda um grupo de trabalho para estudar a “sustentabilidade da dívida externa” portuguesa: com a presença do ministro das Finanças nas reuniões e a elaboração de um primeiro relatório ao fim de 6 meses. 

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