Desde 2010 que o Código Penal passou a prever o “recebimento indevido de vantagem”, que pune com “pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias” os funcionários que aceitarem “vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida”. O novo crime visa exatamente os presentes recebidos por altos funcionários da administração pública ou políticos. A alínea 3 deste artigo, no entanto, institui o seguinte: “Excluem-se dos números anteriores as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes”. Não é por acaso que, nas respostas aos meios de comunicação social, o secretário de Estado Fernando Rocha Andrade diz que “encara com naturalidade, e dentro da adequação social”, a aceitação de dois convites da Galp para assistir a dois jogos da seleção no euro 2016. Ou seja, nas suas respostas, Rocha Andrade usa uma formulação política, mas com sustentação jurídica, para afastar a possibilidade de ter cometido um crime.

Mário Centeno, ministro das Finanças disse ao Observador que não queria fazer mais declarações sobre o assunto, sublinhando que “o secretário de Estado esclareceu tudo, inclusive que vai regularizar a situação”. E acrescentou: “A Galp era o patrocinador oficial da seleção portuguesa e foram várias pessoas no mesmo convite do secretário de Estado nas viagens, não foi um convite propositado só para ele”. O ministro afirmou que “também eram pessoas da política”. O Observador apurou depois que três deputados do PSD (Luís Montenegro, Hugo Soares e Luís Campos Ferreira) também foram a jogos a convite de empresário Joaquim Oliveira.

Rocha Andrade não foi, no entanto, o único membro do Governo a ser convidado pela petrolífera. Segundo o Público, João Vasconcelos, secretário de Estado da Indústria, também viajou através da Galp: “O secretário de Estado da Indústria, João Vasconcelos, confirma que viajou para o Euro 2016 a convite da Galp, enquanto entidade patrocinadora da Selecção Nacional, mas esclarece que pagou um bilhete de avião. Mais informa que já pediu à Galp que esclareça se há despesas adicionais que, a existirem, serão devidamente reembolsadas”, comunicou o gabinete de imprensa do Ministério da Economia, após ser questionado pelo Público. Rocha Andrade e João Vasconcelos aparecem juntos numa fotografia, em França, publicada no Facebook.

O que diz o Código Penal sobre o "recebimento Indevido de vantagem"?

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Artigo 372.º
Recebimento indevido de vantagem
1 – O funcionário que, no exercício das suas funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 – Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a terceiro por indicação ou conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, no exercício das suas funções ou por causa delas, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias.

3 – Excluem-se dos números anteriores as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes.

Quando a nova norma do Código Penal foi aprovada pelo Parlamento em 2010, o socialista Jaime Gama — que então presidia à Assembleia da República –, manifestou dúvidas sobre a forma de interpretar as alterações à lei no caso dos deputados. E pediu um parecer ao Conselho de Prevenção de Corrupção (CPC), um organismo que funciona junto do Tribunal de Contas e que era presidido por Guilherme d’ Oliveira Martins.

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O parecer enviado a Jaime Gama em novembro de 2010 dizia que “as entidades e os seus trabalhadores devem declarar ao respetivo superior hierárquico ou ao órgão competente, as ofertas recebidas de terceiros”. No entanto, Mário Centeno não respondeu diretamente ao Observador à questão sobre se teve conhecimento prévio da viagem paga, afirmando que “não é relevante nesta circunstância” pronunciar-se sobre se foi informado.

O gabinete do primeiro-ministro, contactado pelo Observador reconhece que não há um código de conduta no Governo quanto às ofertas de empresas e remete para “as respostas do secretário de Estado”.

Segundo o parecer de Guilherme d’ Oliveira Martins para a Assembleia da República, que foi divulgado pelos jornais naquela época, os políticos, funcionários e entidades do setor público podem receber “ofertas institucionais” desde que baseadas na “mera relação de cortesia”, escreveu então o Público. Segundo dois jurista de partidos diferentes consultados pelo Observador — que também são deputados — exemplos dessas ofertas institucionais de cortesia podem ser, por exemplo, os presentes trocados por Presidentes da República que por vezes atingem valores consideráveis. Ou a oferta de um cabaz ou de uma garrafa de vinho no fim da visita a uma feira.

O parecer do CPC ainda recomendava que “as ofertas de natureza institucional que não tenham valor diminuto devem ser entregues na entidade respetiva”. Ou seja, devem ser devolvidos. Neste caso em concreto, como Rocha Andrade não tinha maneira de devolver o bem oferecido, apressou-se a comunicar, através do Ministério das Finanças, que ia “reembolsar a empresa da despesa efetuada”. Só o fez porém, poucas horas depois de o caso ter sido tornado público através de uma notícia da revista Sábado. E não por iniciativa própria.

O documento assinado por Oliveira Martins era claro quanto ao que, na sua interpretação, era o espírito da lei:

No exercício da sua atividade, as entidades e os seus trabalhadores não podem oferecer, solicitar, receber ou aceitar, para si ou para terceiros, quaisquer benefícios, recompensas, presentes ou ofertas.”

A recomendação da CPC especificava também as exceções, como “as ofertas institucionais, entendendo-se como tais as entregues ou recebidas por força do desempenho das funções em causa que se fundamentem numa mera relação de cortesia”. Ora Rocha Andrade não viajou devido às suas funções, pois não é secretário de Estado do Desporto. O titular dos Assuntos Fiscais, segundo as respostas enviadas ao Observador, considera que “não existe qualquer fundamento para falar em conflito ético”, mesmo tratando-se a Galp de um grande contribuinte, com disputas judiciais com o fisco em valores que ultrapassam os 100 milhões de euros.

Fernando Negrão, ex-juiz e deputado do PSD disse na noite de quarta-feira, no programa Negócios da Semana, da SIC Notícias, que a conduta de Rocha Andrade “podia configurar a prática deste crime”. Quanto à exceção na lei, Negrão diz que “nada disto corresponde aos bons usos e costumes”. E que o problema é agravado pelo fato de a oferta ter sido da Galp. “Acho que deve refletir sobre a sua continuação no Governo, porque é secretário de Estado de uma área muito sensível, muito próximo do primeiro-ministro e a sua situação fica muito fragilizada”. O CDS também pediu a demissão do secretário de Estado.

Paula Teixeira da Cruz, ministra da Justiça do Governo PSD/CDS, tinha como intenção aprovar um Código de Ética para a Administração Pública, mas nunca chegou a ver a luz do dia.