São 11 emails no total, trocados entre o ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD), António Domingues, e membros do ministério das Finanças, incluindo o ministro Mário Centeno, que confirmam, pelas palavras de Domingues, que houve de facto um acordo entre o Governo e aquele que viria a ser o presidente do banco público no sentido de os administradores ficarem isentos do Estatuto do Gestor Público. Isto é, sem terem de estar sujeitos aos habituais limites salariais e, sobretudo, sem terem de apresentar as suas declarações de rendimentos e património no Tribunal Constitucional como são obrigados a fazer todos os gestores públicos.

Nos emails, segundo avança o jornal digital Eco, fica claro que os próprios advogados de António Domingues se pronunciaram até sobre as propostas de alteração ao Estatuto do Gestor Público e ao regime do Setor Empresarial do Estado. E que a questão da não-declaração de rendimentos e património era condição central para a equipa de Domingues aceitar assumir funções — condição essa que, na troca de correspondência, nunca é confirmada, mas também não é desmentida pelo Governo.

Os emails chegaram esta terça-feira às mãos dos deputados que coordenam a comissão de inquérito à Caixa que, como o Observador escreveu, vão agora avaliar o conteúdo das mensagens para decidir se as vão usar no âmbito do inquérito. Depois de uma recusa inicial, António Domingues acabou por aceder ao requerimento do CDS, que pedira acesso a toda a correspondência trocada entre o Governo e o então futuro presidente da CGD desde o dia 20 de março para perceber se havia referências às garantias acordadas. Na sequência deste requerimento, o gabinete de Mário Centeno respondeu ao Parlamento dizendo que “inexistem trocas de comunicações” como as descritas no requerimento. Ou seja, que não há, nos emails trocados, referências às condições acordadas.

O objetivo era perceber se tinha havido um acordo sobre as condições para a equipa de Domingues aceitar o cargo e se, em particular, tinha ficado expressa a garantia de que os administradores estariam isentos da obrigatoriedade de declararem os seus rendimentos no Tribunal Constitucional. Na correspondência agora conhecida, embora não haja nenhum email das Finanças a deixar, preto no branco, quais são as condições, essas condições aparecem nas cartas de Domingues e não chegam a ser recusadas pelo destinatário.

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As condições do novo presidente da Caixa

Uma das condições, segundo o Eco, aponta para a declaração de rendimentos: “Não devem existir obrigações de publicidade, transparência ou de declaração relativamente à identidade e aos elementos curriculares de todos os membros dos seus órgãos sociais, às respetivas remunerações e outros benefícios além das que já decorrem da lei comercial, incluindo da lei e regulação bancária”, lê-se.

Num dos primeiros emails, de 14 de abril, Domingues dá conta do início das negociações com Mário Centeno, deixando claro que houve reuniões, a 18 e 21 de março, entre o ainda administrador do BPI e o ministro das Finanças, bem como o secretário de Estado Ricardo Mourinho Félix, no sentido de haver condições e garantias para a aceitação do cargo. “No seguimento das reuniões realizadas com V.Exª conforme então acordado, venho apresentar as bases que entendo necessárias para que a CGD continue a desempenhar o seu relevante papel no sistema financeiro português e que, conforme referi a V.Exª, são essenciais para aceitar o convite que V.Exª me dirigiu para liderar o conselho de administração daquela instituição bancária nacional”, começa por dizer.

E que condições são essas? Primeiro, a garantia de que a CGD vai reger-se pelas regras bancárias e não pelas regras de gestão públicas, “sem limitações que afetem a sua capacidade concorrencial ou que a coloquem em desvantagem”. Ou seja, que fica desde já excluída do regime que vigora para o setor empresarial do Estado e que os seus administradores ficam excluídos do Estatuto do Gestor Público. E depois, como uma ramificação desta isenção do Estatuto do Gestor Público, aparece detalhada a proposta de alteração da norma que diz que o gestor público é obrigado a declarar “quaisquer participações e interesses patrimoniais que, direta ou indiretamente, detenha na empresa na qual irá exercer funções ou em qualquer outra”. A proposta de alteração dos advogados de Domingues vai no sentido de eliminar esta obrigatoriedade.

E as respostas que se seguem do gabinete do ministério das Finanças e do secretário de Estado vão no sentido de tomar diligências para que as condições se concretizem. “Conforme já por nós falamos, muito agradecia que habilitasse este gabinete com as informações necessárias para que a CGD deixe de estar abrangida pelo Estatuto do Gestor Público”, lê-se num dos e-mails, de 3 de maio, assinado pela chefe de gabinete do secretário de Estado do Tesouro, Mourinho Félix.

Quando o Governo tira o tapete a Domingues

Numa das últimas respostas de Centeno, já em novembro — com a polémica no auge e com o Governo pressionado por todos os lados, inclusive pelo Presidente da República e pelo PS no sentido de os gestores acederem às notificações do TC –, o ministro das Finanças dá um passo no sentido contrário ao tom que, aparentemente, tinha sido usado nas cartas anterior. Terá sido aí que António Domingues percebeu que o Governo lhe tinha tirado o tapete e que não ia dar seguimento às condições acordadas.

O mote já tinha sido lançado publicamente pelo primeiro-ministro António Costa, que andava a evitar responder a perguntas e fazer qualquer comentário sobre a polémica da entrega ou não entrega da declaração de rendimentos, mas que no dia 28 de outubro não consegue fugir mais e remete a polémica para o Tribunal Constitucional, lembrando que ele próprio entregou a sua declaração de rendimento nos juízes do Palácio Ratton. Ou seja, põe o ónus nos administradores da Caixa Geral de Depósitos: “Compete ao Tribunal Constitucional apreciar se são devidas. E compete aos próprios [administradores da CGD] saberem se sim ou não”, dizia Costa.

A polémica das declarações de rendimentos tinha estoirado a 23 de outubro, quando o comentador político Marques Mendes lança a dúvida na SIC: ao isentar a CGD do estatuto de gestor público, o Governo isenta também os administradores da obrigação de transparência. Teria sido lapso?, perguntava o ex-líder do PSD. Marcelo Rebelo de Sousa tinha promulgado aquelas alterações ao Estatuto do Gestor Público, mas sabia que a lei do controlo de riqueza e património, de 1983, que obriga inequivocamente à entrega das declarações no TC, estava acima do Estatuto do Gestor Público, e foi para isso que veio depois alertar, a 4 de novembro, numa nota na página da Presidência da República.

O cerco estava a apertar e, quando, a 15 de novembro, já no auge da polémica, Domingues escreve a Centeno a relembrá-lo do acordo e a alertar para o problema que estava a ser levantado na praça pública, o ministro das Finanças responde logo no dia seguinte, mas com pinças: “Tomo nota das notificações do Tribunal Constitucional de que me dá conhecimento. Permita-me que cumprimente a elevação do conselho de administração da CGD e de cada um dos seus membros na determinação que me comunica de respeitar a decisão do Tribunal. Estou convicto ser do interesse da CGD que tal determinação [do TC] se concretize num prazo muito curto”, dizia, citado pelo Eco. E mais: “Naturalmente, os putativos novos membros dos órgãos sociais da CGD têm de conhecer e estar dispostos a cumprir todas as obrigações legais a que se encontrarão sujeitos”.

Ou seja, depois de o ministério ter tomado as diligências no sentido de aceder às condições da nova administração da CGD, agora já o ministro estava a indicar que os administradores do banco público deviam dar seguimento às notificações do TC, isto é, entregando as declarações. António Domingues demitiu-se dez dias depois, a 27 de novembro. E tal como disse quando foi ouvido pelos deputados no Parlamento, fê-lo porque o Governo tinha deixado de ter as “condições políticas” para dar seguimento ao que tinha com ele acordado.