Se a proposta de lei do enriquecimento ilícito tivesse entrado em vigor – foi chumbada pelo Tribunal Constitucional (TC) – caberia a José Sócrates e Carlos Santos Silva provar a licitude dos seus bens e de gastos acima dos rendimentos auferidos.

O projeto lei aprovado em 2012 na Assembleia da República determinava a inversão do ónus da prova. Isto significa que caberia à pessoa justificar o património “sem origem lícita determinada” e gastos “incompatíveis com os seus rendimentos e bens legítimos”, como pode ler-se no diploma.

O diploma é muito claro nesse aspeto: no n.º1 do artigo 1º pode ler-se que “quem por si ou por interposta pessoa singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

E mais: no n.º 1 do artigo 2º, lê-se que caso o culpado seja “titular de cargo político ou de alto cargo público e que durante o período de exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes” tenha enriquecido ilicitamente, “é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”, ou de “1 a 8 anos”, caso os montantes ou bens em causa sejam superiores a “350 salários mínimos mensais” (cerca de 177 mil euros).

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No caso particular de José Sócrates, que é suspeito de branqueamento de capitais, evasão fiscal e corrupção, só os crimes alegadamente cometidos depois de 2012 – ano em que lei entraria em vigor – estariam sujeitos a este regime legal.

Ao Observador, o advogado Manuel Magalhães e Silva, um dos especialistas então ouvidos na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias a propósito do diploma, confirmou que “encarregar outra pessoa de adquirir um determinado bem”, socorrendo-se de rendimentos ilícitos, por exemplo, “enquadrar-se-ia neste regime legal”.

Como também explicou Manuel Magalhães e Silva, “se a lei do enriquecimento ilícito tivesse sido considerada constitucional (…) não teria efeitos retroativos”, o que significa que só os crimes cometidos depois da sua entrada em vigor estariam abrangidos pelo novo enquadramento legal.

PS esteve desde o início contra a aprovação do diploma

Os socialistas foram, desde o início, contra este diploma. A proposta de lei para criminalizar o enriquecimento ilícito foi aprovada na Assembleia da República pela maioria PSD/CDS em fevereiro de 2012 com votos favoráveis dos deputados do BE e do PCP – apenas os socialistas votaram contra.

António José Seguro, que viu o seu próprio projeto de lei para penalizar a ausência ou a prestação de informações erradas sobre rendimentos e património ser chumbado pelos restantes partidos, responsabilizou a “maioria de direita e os partidos à nossa esquerda” de “perderam imensos meses no combate à corrupção”. O então secretário-geral do PS garantiu que “nunca aceitaria que um cidadão pudesse ser preso sem que houvesse prova de que tinha cometido um crime”.

Fazendo eco das preocupações levantadas pelos socialistas e pelo Procurador Geral da República (PGR) Pinto Monteiro, que considerava a legislação “popular” e avisava que “não podemos, para obter os fins, recorrer a todos os meios”, Cavaco Silva decidiu pedir a fiscalização preventiva da proposta de lei, porque tinha dúvidas sobre a “constitucionalidade deste diploma, que pode [podia] pôr em causa princípios essenciais do Estado de direito democrático”.

O Presidente da República explicava que, para que “a criminalização do enriquecimento ilícito se processe sem subsistirem dúvidas quanto a eventuais riscos de lesão dos direitos fundamentais de todos os cidadãos”, o TC deveria pronunciar-se sobre a constitucionalidade do diploma.

A 4 abril 2012 os juízes do Palácio Ratton, depois do pedido de fiscalização preventiva de Cavaco Silva, entenderam que o diploma violava “os princípios constitucionais da presunção da inocência e da determinabilidade do tipo legal ” e a proposta de lei acabou por cair. Os juízes discordaram do facto de ser o arguido a justificar a proveniência dos bens por considerarem que isso viola direitos e garantias e, por outro, consideraram que não havia bem jurídico atendível, ou seja, não havia valor que justificasse a autonomização do crime de enriquecimento ilícito.