Ao longo de 10 anos, Feliciano Barreiras Duarte, hoje secretário-geral do PSD, deu a morada da casa dos pais no Bombarral para cálculo do subsídio de transporte e ajudas de custo na Assembleia da República. Mas, pelo menos durante nove desses 10 anos, morou na Avenida de Roma, em Lisboa. Os próprios serviços da Assembleia da República confirmaram ao Observador que, nas VII, IX, e X legislaturas (entre 1999 e 2009), o deputado do PSD “declarou, para efeitos de cálculo de ajudas de custos e despesas de deslocação” que era “residente no Bombarral“.

Um deputado do distrito de Leiria recebe hoje, em média, entre 900 e mil euros mensais em abonos de deslocação. Vários deputados contactados pelo Observador confirmam que os parlamentares que residem fora de Lisboa recebem em média mais algumas centenas de euros dos que vivem na capital e os nos concelhos mais próximos. Feliciano Barreiras Duarte justifica, em respostas ao Observador, que tinha no Bombarral a sua “morada fiscal” e alega até “perder dinheiro” com essa escolha em vez de ter fornecido aos serviços o endereço de Lisboa.

Sendo a morada fiscal a única relevante para qualquer efeito administrativo e fiscal, incluindo o direito de voto, entendi que naturalmente era essa a morada que devia colocar no registo da Assembleia da República”, respondeu o secretário-geral do PSD ao Observador.

No entanto, um parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República datado de 1989, feito para clarificar o conceito de uma “residência habitual”, é bastante claro nessa definição — e não dá razão a Barreiras Duarte. A morada que importa, para estes efeitos, não é administrativa, mas o local onde a pessoa efectivamente reside com a família. A definição da PGR é a seguinte: “O local da residência habitual, estável e duradoura de qualquer pessoa, ou seja, a casa em que a mesma vive com estabilidade e em que tem instalada e organizada a sua economia doméstica, envolvendo, assim, necessariamente, fixidez e continuidade e constituindo o centro da respetiva organização doméstica referida”. Feliciano morou, neste período, com a mulher e os filhos em Lisboa.

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"Fustigado" com acusações de todos os lados

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“Tenho sido fustigado nos últimos dias com acusações de todos os lados e de todas as naturezas“, disse Feliciano Barreiras Duarte em declarações escritas ao Observador, a propósito da questão do vencimento dos deputados deslocados.

O secretário-geral do PSD afirma ter “a certeza” de não ter a “importância” que lhe querem atribuir com toda esta atenção. “Assim sendo” — continua — “buscarão não atingir-me pessoalmente, mas ao cargo que ocupo, a direcção do PSD que integro e o líder que apoio; e por isso continuo a trabalhar para bem do Partido Social Democrata e sobretudo em benefício do País.”

 

Vários companheiros de partido e amigos atestam que Barreiras Duarte já residia em Lisboa no período em causa. Nas declarações de rendimentos entregues ao Tribunal Constitucional, o próprio escreve pelo seu punho que, entre 2001 e 2009, só foi proprietário de dois imóveis destinados à habitação: um em Lisboa, na Avenida de Roma, e outro em Vilamoura, em Quarteira. Antes dos anos mencionados, as declarações no Tribunal Constitucional não são públicas. Mas fica claro um ponto: Feliciano Barreiras Duarte nunca foi, neste período proprietário de qualquer casa no Bombarral, onde residem os seus pais.

Na última das declarações que entregou no Tribunal Constitucional relativa ao período em que foi deputado e governante entre 1995 e 2009, Feliciano Barreiras Duarte informou que o imóvel de Lisboa tinha como objetivo a “habitação própria e permanente“. Após confrontado pelo Observador, Feliciano considera que esta é uma prova da sua boa fé, uma vez que “se quisesse usufruir de algum benefício irregularmente, não teria feito o registo dessa forma“, garante. Na folha de rosto das declarações ao Tribunal Constitucional, porém, deu a mesma morada da Assembleia da República: a do Bombarral.

Só quando mudou de casa — da Avenida de Roma para a João XXI, em Lisboa — e tomou posse como deputado em 2011 (e depois como secretário de Estado), é que comunicou pela primeira vez à Assembleia da República que residia na capital. Ao dizer que morava no Bombarral, o deputado beneficiava de abonos de deslocação e ajudas de custo que são superiores aos de quem vive em Lisboa. Mas, nas suas contas, Feliciano alega o contrário. O valor varia mensalmente de acordo com uma série de fatores: os dias de trabalhos parlamentares, a distância entre a residência e a Assembleia da República e os dias contabilizados como trabalho político no círculo eleitoral.

Um deputado da atual legislatura eleito pelo distrito de Leiria explicou ao Observador que, em média, ganha cerca de 900 euros ilíquidos por mês em abonos por viver naquele distrito. Entre 2001 e 2009, confirmou um deputado do mesmo círculo, os valores eram similares aos atuais, embora fossem relativamente mais baixos tendo em conta a inflação. Outro parlamentar, do círculo do Porto — de acordo com um recibo de vencimento de março deste ano consultado pelo Observador — recebeu mais de 1.400 euros para além do vencimento por este tipo de abonos. O valor é, neste caso, superior ao de Leiria por causa da distância.

Na sequência das dúvidas levantadas pelo Observador, Barreiras Duarte diz ainda que vai “solicitar ao Presidente da Assembleia da República que promova a emissão de parecer sobre o regime jurídico de atribuição de ajudas de custo aos deputados eleitos por todos os círculos eleitorais fora de Lisboa, bem como um parecer definitivo sobre que morada deve ser indicada como residência, a fiscal ou outra“.

As regras em vigor, de acordo com o “Estatuto Remuneratório e outros Direitos dos Deputados” são as seguintes:

  • Um deputado que viva em Lisboa (e nos concelhos mais próximos) recebe 23,05 euros de ajudas de custo por cada dia de trabalho parlamentar (plenário e comissões).
  • Um deputado que resida fora de Lisboa recebe 69,19 euros de ajudas de custo por cada dia em que esteja no Parlamento. Ou seja: atualmente são mais 46,14 euros por dia para quem não reside na capital.
  • Além disso, um deputado que more fora de Lisboa tem direito a mais 36 cêntimos por quilómetro desde a Assembleia até à morada que indicou ao Parlamento: podem ser cobradas duas viagens de ida e volta a casa por semana.

Estes valores a mais foram recebidos em seis anos entre 1999 e 2009, uma vez que houve três anos em que Feliciano Barreiras Duarte esteve no Governo (entre abril de 2002 e fevereiro de 2005).

Perante as questões do Observador, o deputado diz ter pedido esta quinta-feira, aos serviços da Assembleia da República, que indicassem “detalhadamente” os montantes recebidos no período entre 2005 e 2009. “Mas essa informação ainda não me foi entregue”, justificou. E acrescentou: “Quando a receber, tenho todo o gosto em remetê-la ao Observador, com a menção de quanto dinheiro deixei de receber com a indicação da morada fiscal do Bombarral em vez da morada de Lisboa”.

Na resposta enviada ao Observador, Feliciano lembra que, por viver em Lisboa, mas ao ter sido eleito por outro círculo eleitoral (Leiria) teve direito a receber 69,19 euros por cada dia que fez trabalho político no seu distrito (com um máximo de dois dias semanais). Ora, neste caso, o deputado receberia 138,38 euros a mais por semana do que se tivesse dado a morada do Bombarral. Mas para isso era necessário que fosse ao seu círculo duas vezes por semana em trabalho político, o que não acontece sempre aos deputados. Aliás, numa semana parlamentar normal só há um dia reservado ao contacto político com as populações: a segunda-feira. Não podem sair em trabalho político, por sistema, em dias de plenário e comissões.

Feliciano diz que ganhava mais se tivesse dado morada em Lisboa

O argumento de Barreiras Duarte, para além da morada fiscal, é que, ao declarar residência no Bombarral, acabava por ganhar menos dinheiro do que se tivesse colocado o endereço de Lisboa. Na simulação enviada ao Observador, porém, o deputado contabiliza 553 euros a mais, que receberia se fizesse oito idas mensais ao distrito para fazer trabalho político, um valor que dificilmente atingiria todos os meses. O deputado enviou um quadro com contas ao Observador e, pelos seus números, naqueles anos receberia mais 10 euros em média do que se tivesse dado a sua verdadeira morada na capital.

A prova de que essa declaração foi feita de boa-fé e sem qualquer interesse financeiro associado é o facto de perder dinheiro com a indicação da morada no Bombarral em vez de em Lisboa, como demonstra o quadro em anexo”, alegou o secretário-geral do PSD.

Num quadro enviado ao Observador — que parte do princípio de que há pelo menos 12 sessões parlamentares mensais –, o deputado fez as suas contas. E concluiu que, se tivesse declarado a morada em Lisboa, podia ganhar 1.053 euros mensais em abonos. Mais 10 euros do que com a morada no Bombarral. A explicação avançada por Barreiras Duarte baseia-se nestes números. Se tivesse dado a morada de Lisboa receberia os seguintes abonos:

  • 276€ pelas idas à Assembleia da República, a 23,05€ ao dia;
  • 553€ por oito idas ao círculo de Leiria em trabalho político. É um valor máximo, porque só são permitidas duas viagens semanais do deputado ao distrito para fazer trabalho político, a 69,19€ em cada dia;
  • 48,3€ pelas deslocações da casa em Lisboa até ao Parlamento;
  • 175€ em quilómetros pelas idas em trabalho político ao distrito.

Com um endereço no Bombarral, o valor mensal dos abonos aos deputados seria de 1.043 euros segundo a mesma simulação:

  • 830€ pelas idas ao Parlamento, a 69,19€ por cada dia;
  • 213€ em quilómetros entre o Parlamento e o Bombarral;

Para chegar a este resultado, Feliciano Barreiras Duarte parte de um pressuposto que raramente se verifica: teria de fazer oito viagens mensais de Lisboa a Leiria para fazer trabalho político. Esse valor contabiliza 553 euros. A que se somariam 175 euros em quilómetros realizados em deslocações para  os concelhos do círculo eleitoral.

Mas um deputado tanto receberia 533 euros se fizesse o máximo de viagens permitidas, como como zero se não fizesse nenhuma nesses termos.

Ou seja: um deputado com residência fixa em Lisboa mas eleito por Leiria ganharia sensivelmente o mesmo salário que um deputado a viver no Bombarral (mas só se fizesse oito viagens políticas mensais). Pelo patamar mínimo (nenhuma viagem política ao distrito), um deputado que vivesse em Lisboa ganhava menos 500 euros mensais do que outro que vivesse no Bombarral.

A simulação enviada pelo deputado, no entanto, é um exercício teórico. Feliciano Barreiras Duarte não enviou ao Observador qualquer prova através do recibo de vencimento, por exemplo — agora que declara residência em Lisboa — de que realiza toda aquela quantidade de viagens ao seu distrito para fazer trabalho político.

Quando era vereador no Bombarral declarava que vivia em Lisboa

Feliciano Barreiras Duarte, refira-se, já tinha tido problemas relacionados com moradas e subsídios nos anos 90, quando foi vereador do PSD na câmara do Bombarral (que tinha gestão socialista). A situação era a inversa. Barreiras Duarte era estudante universitário nessa época e declarava ter a sua residência fixa em Lisboa. Chegou a receber dinheiro de quilómetros, mesmo sem ter carta de condução. Isso permitia-lhe receber as respetivas ajudas de custo para ir às reuniões de câmara no Bombarral.

Já lá vão mais de 27 anos. Em fevereiro de 1992, uma notícia do jornal Público dava conta de que Feliciano estava a ser acusado de “recebimentos indevidos”. A situação tinha sido denunciada por um comunicado atribuído ao CDS, que, afinal, não tinha sido o CDS a emitir. De acordo com esse artigo do Público, o comunicado dizia que Feliciano Barreiras Duarte, como vereador da câmara municipal do Bombarral, tinha declarado aos serviços do município, durante 10 meses, que possuía automóvel próprio, com o fim de receber o respetivo subsídio de transporte, o que teria rendido “algumas centenas de contos”. O próprio vereador Feliciano considerou na altura que o facto de não ter carta era um “pormenor”, sem negar ter recebido o dinheiro. A câmara (liderada por socialistas e opositora do vereador do PSD) dizia que o próprio tinha escrito os quilómetros à mão, mesmo sem ter carta.

O caso das moradas da deputada Fertuzinhos e as polémicas nos Governos

A deputada Sónia Fertuzinhos também foi envolvida numa polémica com deslocações, noticiada pela RTP em dezembro, que revelava que a deputada recebia como se morasse em Guimarães quando, na verdade, vivia em Lisboa. De acordo com a RTP, além do salário de deputada, Sónia Fertuzinhos recebia 1.054 euros por mês a mais em deslocações, inflacionados por morar em Guimarães. Na resposta, Fertuzinhos justificou-se da seguinte forma: “Por estar entre o círculo eleitoral e Lisboa, tenho a necessidade de ter uma morada/alojamento em Lisboa, para além da minha residência permanente em Guimarães. A minha residência no cartão do cidadão é e sempre foi em Guimarães, é aí que estou recenseada e que sempre votei e voto, e pelas razões que expus é natural que a minha residência permanente seja a de Guimarães.”

A RTP lembrou, na altura, que a própria deputada tinha declarado que morava na Avenida de Roma, numa declaração entregue ao Tribunal Constitucional em 2002. Sobre isso não foi clara: “Não me recordo de ter indicado como minha morada a Avenida de Roma, mas se alguma vez o fiz em alguma circunstância específica, em nada afeta o que acabo de explicar e que a minha residência permanente seja a de Guimarães, como sempre foi”. Segunda a RTP, a deputada vivia desde 2009 em Lisboa na casa do seu companheiro e agora ministro António Vieira da Silva.

Tem havido outros casos controversos ao longo dos anos em relação ao problema das moradas e dos subsídios de alojamento, também em relação a membros do Governo — cujo estatuto não é igual ao dos deputados. No Executivo de Passos Coelho, por exemplo, foram detetadas várias situações de governantes que tendo casa em Lisboa declararam moradas noutras regiões do país. Foram os casos de Miguel Macedo, então ministro da Administração Interna, que vivia numa casa própria em Miraflores, mas que recebia ajudas por ter residência efetiva em Braga. Em finais de 2011, Macedo renunciava ao subsídio e era acompanhado por outros colegas de Governo como José Pedro Aguiar-Branco, que vive no Porto, e por José Cesário, então secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, com residência em Viseu.

No Governo de José Sócrates surgiram as mesmas dúvidas em relação a ministros e secretários de Estado como Laurentino Dias, Luís Amado ou Maria Manuel Leitão Marques.

Polémica começou com alegado estatuto de “visiting scholar”

A polémica em que se viu envolvido o secretário-geral de Rui Rio rebentou no último fim-de-semana, depois de o semanário Sol ter revelado o caso. Apesar de Barreiras Duarte ter afirmado e reafirmado em várias notas biográficas que era, de facto, investigador convidado (“visiting scholar“) na Universidade da Califórnia, em Berkeley, a universidade e a professora responsável pelo processo desmentiram que Barreiras Duarte tivesse esse estatuto — e entretanto o próprio retificou o currículo. A professora em causa chegou a acusar Feliciano Barreiras Duarte de forjar um documento, mas depois admitiu ter emitido um em que certificava a inscrição. Isto apesar de continuar a reiterar, que jamais o deputado do PSD poderia entender esse documento como uma garantia de que era detentor desse estatuto. Na sequência deste caso, Feliciano Barreiras Duarte, que já está também a ser investigado pelo Ministério Público.

Ministério Público investiga Feliciano. Secretário-geral do PSD não se demite

Além disso, Feliciano terá agora também de enfrentar uma reavaliação da Universidade Autónoma de Lisboa referente doutoramento que está a frequentar naquela universidade.

Doutoramento. Universidade vai avaliar se Feliciano terá de voltar às aulas