Os bens que foram apreendidos a Amílcar Morais Pires no dia 17 e junho deste ano vão regressar à sua posse, após o Tribunal da Relação de Lisboa ter anulado na última quinta-feria o despacho do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) que ordenou a passagem temporária dos mesmos para a esfera do Estado.

A apreensão foi realizada como medida cautelar do pagamento de eventuais indemnizações que o ex-administrador financeiro venha a ser condenado no âmbito do caso BES/GES, mas a Relação de Lisboa entende que a mesma padece de uma nulidade insanável por contrariar o Código de Processo Penal.

A notícia foi avançada esta tarde pela SIC Notícias e pelo Diário de Notícias.

A questão é simples de explicar: a defesa de Morais Pires argumentou, e os desembargadores Calheiros Gama (relator) e Antero Luís (ex-director do Serviço de Informações e Segurança e ex-secretário-geral de Segurança Interna) concordaram, que o arresto de bens é ilegal por o ex-administrador do BES não ser, na data da apreensão, arguido no caso BES.

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De facto, isso não tinha acontecido. A apreensão dos bens foi promovida pelo Ministério Publico (MP), ordenada pelo juiz Carlos Alexandre, do TCIC no dia 16 de Junho e executada no dia seguinte. Mas Morais Pires só foi constituído arguido no dia 28 de setembro – tendo tal facto chegado ao conhecimento dos desembargadores da Relação de Lisboa no dia 1 de outubro.

A apreensão foi decretada por estarem sob investigação neste processo do caso BES (um dos vários processos que a Procuradoria-Geral da República apelida de Universo Espírito Santo) fortes indícios da prática dos crimes de falsificação de documento, falsidade informática, burla qualificada, infidelidade, abuso de confiança, corrupção no sector privado.

A grande questão reside agora em saber se Ricardo Salgado, ex-presidente executivo do BES, e José Manuel Espírito Santo, ex-administrador do BES, que também foram alvo do mesmo tipo de apreensão cautelar de bens e que também contestaram a decisão do TCIC na Relação de Lisboa, terão idênticas decisões. Se não tiverem sido constituidos arguidos antes das apreensões, é provável que isso se verifique.

Recorde-se que a Procuradoria-Geral da República (PGR) informou a 24 de Julho, aquando da detenção da confirmação que Ricardo Salgado estava a ser interrogado pelo juiz Carlos Alexandre e pelos procuradores titulares dos inquéritos do Universo Espírito Santo, que o ex-líder do BES tinha sido constituído arguido nessa data. Ou seja, pouco mais de um mês após as apreensões acima referidas.

Salgado tinha sido detido para interrogatório, e constituído arguido em Julho de 2014, mas no âmbito da processo Monte Branco onde se investiga uma rede internacional de branqueamento de capitais. Um processo que nada tem a ver com as investigações à gestão do BES e do GES.

Apreensão é legítima desde que exista constituição prévia de arguido

Os argumentos da defesa de Morais Pires, a cargo do advogado Raúl Soares da Veiga, eram simples: “Não tendo o recorrente [Amílcar Morais Pires] sido constituído arguido em momento anterior à aplicação do arresto preventivo, o despacho que decretou esta garantia patrimonial é ilegal, e, consequentemente, deve tal despacho ser revogado e imediatamente levantadoo o arresto ordenado”, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa cujo sumário está disponível no site que tem a base de dados do Tribunal da Relação de Lisboa. O sumário não refere a identidade dos visados pelo recurso mas o Observador sabe que se trata da decisão relativa ao recurso de Morais Pires.

Entendia também a defesa de Morais Pires que “o Ministério Público não tem legitimidade para requerer o arresto preventivo dos bens do ora recorrente [Morais Pires] por o Estado não ser credor de nenhum dos alegados créditos cujo pagamento o arresto se destina a grantir” mas sim eventualmente clientes do BES, sociedades-veículo do Grupo Espirito Santo ou do próprio BES. Queria o Soares da Veiga dizer que apenas estas identidades podiam pedir à Justiça que decretasse o arresto de bens.

Neste último ponto, a Relação de Lisboa não concordou com a defesa pois Portugal alterou nos últimos anos as leis penais e civil para permitir o arresto preventivo de bens de forma acautelar o eventual pagamento futuro de indemnizações ao Estado no âmbito de directivas europeias que visam combater o branqueamento de capitais.  O Gabinete de Recuperação de Ativos, que é gerido pela Polícia Judiciária, e o Gabinete de Administração de Bens, que funciona na esfera do Ministério da Justiça, foram criados em 2011 com esse objetivo.

Foram precisamente essas “obrigações internacionais” que o MP recordou na resposta ao recurso. Além de argumentar que a constituição de arguido não era obrigatória antes do arresto dos bens (no que não foi seguido pelos desembargadores), acrescentou ainda que “o que está em causa é garantir a possibilidade futura de executar a vertente patrimonial da decisão final, que declare perdidas as vantagens decorrentes da prática do crime ou o seu valor”, lê-se na decisão da Relação de Lisboa.

Os desembargadores Calheiros Gama e Antero Luís, contudo, discordaram do MP no essencial dando “inteira razão” a Morais Pires e assim decretaram que “a decisão é nula por ter sido proferida com omissão de ato obrigatório, a saber, a constituição de arguido”.

O despacho está a ser analisado pelo Ministério Público de forma ser ponderado um eventual recurso para o Tribunal Constitucional – última instância de recurso neste caso concreto.

Questionada pelo Observador, fonte oficial da PGR não quis não comentar o teor do acórdão mas confirmou que “Amílcar Morais Pires foi constituído arguido no âmbito das investigações relacionadas com o denominado “Universo Espírito Santo”.