O sabonete Patti, a água-de-colónia Lavanda, a pasta dentrífica Superba e o pó-de-arroz Madrigal — hoje, a história da cosmética portuguesa não seria a mesma sem estes rótulos, frutos da visão empreendedora de Achilles de Brito, o primeiro. Em 1918, criava a Ach. Brito, uma marca totalmente nacional. A seu favor tinha a experiência de trabalhar há 15 anos na Claus & Schweder, fábrica fundada pelos alemães Ferdinand Claus e Georges Schweder, em 1887. A Ach. Brito viria a marcar não só o Portugal do século XX, com produtos presentes nas casas de quase todas as famílias, mas sobretudo a história de uma família em particular, os Brito.
Hoje, Aquiles de Brito (já sem “ch” e só com um “l”), bisneto do fundador, dá continuidade ao negócio da família. A marca faz 100 anos, um século de altos — a consolidação da Ach. Brito como fenómeno de vendas durante o Estado Novo — e baixos — a chegada dos anos 90, altura da entrada das grandes cadeias de distribuição em Portugal e em que as grandes indústrias europeias relocalizam as suas produções na Ásia. Mas parece que os Brito deram a volta por cima. Atualmente, a fábrica situa-se em Vila do Conde, enquanto a marca reconquista terreno apelando à nostalgia. Para trás fica a história de quatro gerações e de quatro homens com o mesmo nome. A quinta geração já está garantida, resta saber se gostam tanto de sabonetes como os seus antepassados gostavam.
Achilles de Brito, o visionário
Pouco se sabe de Achilles de Brito, empresário que criou uma marca de sabonetes e águas-de-colónia e a batizou à semelhança do seu próprio nome. “Sei que era um empreendedor e que viveu para trabalhar”, conta o bisneto, Aquiles de Brito, ao Observador. Nunca conheceu o bisavô, ao contrário de um funcionário que morreu há poucos meses e que conseguiu a proeza de conhecer as quatro gerações. Em 1903, com apenas 24 anos, Achilles chega à Claus & Schweder, fábrica erguida pelos dois empresários alemães, no Porto. Assume o cargo de guarda-livros, na mesma altura em que um dos sócios, Georges Schweder, se retira da empresa por razões de saúde.
Na época, a Claus & Schweder somava prémios e distinções — na Exposição Industrial Portuguesa, em 1897, uma medalha de ouro na Exposição Universal de Paris, em 1900, na Exposição Universal de Saint Louis, nos Estados Unidos, e na Exposição Agrícola do Porto, estas últimas já em 1904, e em 1907, na Exposição Internacional de Higiene, Ofícios y Manufacturas, em Madrid. O ano de 1908 foi especial, por vários motivos. A marca cresce em notoriedade com a visita do rei D. Manoel II à fábrica, ao mesmo temo que Achilles de Brito e Willy Thessen, químico e perfumista alemão que tinha assumido o cargo de diretor técnico três anos antes, se tornam acionistas da empresa. Um ano depois, as mudanças são consumadas com uma ligeira alteração no nome da firma. Esta passa a estar registada como Claus & Schweder, Sucessores.
Os anos que se seguiram ao eclodir da I Guerra Mundial foram conturbados. Quando, em 1916, a Alemanha declara guerra a Portugal, Ferdinand Claus e Willy Thessen, dois dos três sócios e diretores da empresa, saíram do país. Um ano depois, a Claus & Schweder, Sucessores foi nacionalizada, à semelhança de todos os bens e propriedades detidos por cidadãos do país com quem Portugal estava em guerra. Até o nome da empresa mudou. Primeiro, Companhia Portugueza de Perfumaria, e só depois a fusão com a Companhia Industrial do Norte.
Em 1918, Achilles de Brito, juntamente com o seu irmão Affonso, funda uma nova marca, totalmente orientada para o mercado nacional e baseada na experiência, nas técnicas e no forte apelo visual que caracterizavam a Claus. Em 1920, terminada a guerra, Willy Thessen regressa a Portugal e torna-se acionista da nova empresa. Quatro anos depois, Achilles protagoniza aquilo a que se pode chamar um golpe de génio. A Ach. Brito compra ativos da antiga Claus & Schweder, mas em vez de fundir as duas sob a chancela que ele própria tinha criado, manteve as duas marcas independentes com segmentos de mercado próprios, apenas a partilharem a mesma fábrica. O edifício, acabado de construir, ficava na Rua D. António Barroso, no Porto, com “Ach. Brito. 1918. Sabonetes” numa ponta da fachada e “Claus. 1887. Perfumarias” na outra ponta.
A empresa era agora dirigida por três sócios — Aquilles e Affonso de Brito e o alemão Willy Thessen (os três homens na fotografia de abertura). E depois de atravessada a fase dos grandes negócios e investimentos, o fundador dava, finalmente, largas à sua veia mais criativa. O sabonete Patti é lançado em 1929 em homenagem à cantora de ópera italiana Adelina Patti. O sucesso foi instantâneo. Durante a década de 20 e o início dos anos 30, a marca acumulou vários prémios, não só pela qualidade dos produtos, mas também pela riqueza estética dos rótulos e embalagens. Enquanto a Claus Porto atravessava fronteiras, a Ach. Brito conquistava as famílias portuguesas. Em 1934, o Porto recebia a Exposição Colonial Portuguesa e com ela uma ótima oportunidade para as marcas portuguesas se divulgarem. A Ach. Brito deu tudo. Contratou Heinrich Gleiser, um alemão que caminhava sobre andas, a quatro metros do chão. Além de reproduções de produtos em proporções gigantes, foram atirados sabonetes para quem quisesse apanhar. Hoje, chama-se a isto ativação de marca.
Com a entrada nos anos 40 e 50, a Ach. Brito chega às grandes montras das perfumarias — forradas em tecido, cheias de frascos de vidro e caixas para acomodar os sabonetes. Em algumas, podiam mesmo ver-se fotografias do fundador. Em 1941, empregava 151 pessoa. Em dezembro desse mesmo ano, abriu o Coliseu do Porto. Nas páginas dos jornais anunciava-se o “sarau de gala”, com a Grande Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida por Pedro Freitas Branco, a pianista Helena Moreira de Sá e Costa e a cantora Maria Amélia Duarte de Almeida. Eram dois dias de concerto, o segundo com “preços populares” e “traje à vontade”, o primeiro com um aroma especial no ar. No anúncio da época lê-se: “A sala será perfumada pela casa Ach. Brito”. Anos depois, a mesma “casa” viria a fornecer os produtos utilizados nos voos da TAP. Em 1949, Achilles de Brito morre, com 69 anos.
Aquiles de Brito, o empresário de pulso firme
Achilles de Brito deixou quatro herdeiros: um filho, também Achilles, e três filhas, Lia Graziela, Margarida Estela e Eduarda Graziela. Segundo os arquivos da empresa, após a morte do fundador, os herdeiros criam uma outra empresa, exclusivamente dedicada ao cultivo de plantas aromáticas. Esta filial fornecia óleos essenciais à Ach. Brito acabando por ser integrada na companhia em 1956. Em 1953, a empresa de família voltou a destacar-se e pelas mãos de Achilles José de Brito, o segundo. Dentro da fábrica, o herdeiro criou uma litografia onde passaram a ser feitos todos os rótulos, etiquetas, selos e embalagens das marcas Ach. Brito e Claus Porto, mas não só. O processo de produção passou a realizar-se, por inteiro, dentro das mesmas quatro paredes, e o avanço dos equipamentos litográficos e de impressão fez com que a firma de sabonetes e perfumes começasse também a produzir componentes gráficos para a Tabaqueira, mas sobretudo para companhias de Vinho do Porto, entre elas a Sandman, a Real Vinícola, a Real Companhia Velha, a Porto Calem, a Burmester e a Offley.
“O meu avô foi visionário quando montou a litografia”, afirma hoje Aquiles de Brito. O avô de que fala é Achilles José, que só viria a tomar as rédeas do negócio, pelo menos de forma oficial, em 1963, altura em que Willy Thessen se afasta definitivamente por razões de saúde e morre Affonso de Brito, o seu tio. Achilles, o segundo, acabou por chegar a um acordo com as três irmãs, tendo ficado sozinho à frente do negócio da família. Por sinal, este ia de vento em popa. As restrições do Estado Novo às importações faziam com que os portugueses consumissem em massa os produtos nacionais. Quanto à concorrência, tinha um nome: Confiança. “Sempre foi muito similar. Tínhamos o sabonete Cão e Gato, eles tinham o Gato e Cão. Tínhamos o Malhas e Sedas, eles tinham o Sedas e Nylon. Copiavam-se muito, embora ache que a Confiança copiava muito mais a Ach. Brito do que o contrário”, explica Aquiles.
Do avô, Aquiles guarda algumas memórias. “Lembro-me dele sempre contente quando os netos o iam visitar. Levava-nos a passear pela fábrica e a ver a produção. Trazíamos sempre molhinho de sabonetes pequeninos, uns de 12 gramas que já não fazemos”, relembra. Recorda-o também como um bon vivant, embora a fábrica viesse sempre primeiro. “Ele tinha um feitio à antiga — quero, posso e mando”, conclui. Sabe-se também que foi casado com a violoncelista Maria Alice Ferreira, filha do Conde de Riba d’Ave, um dos industriais portugueses mais abastados da história do século XX. O divórcio resumiu o matrimónio a cerca de cinco anos, segundo recorda Aquiles.
Os seus dois filhos tornaram-se cedo acionistas da empresa. Quando assumiu a direção da Ach. Brito, Achilles José deu 10% a cada um — Delfim de Brito e Aquiles Delfim de Brito, pai do atual herdeiro e o primeiro da família a escrever o nome com um “q”. Mais tarde, volta a reforçar as quotas dos dois herdeiros com mais 10% a cada um. Em 1968, a marca completou 50 anos. O momento foi assinalado com pompa a circunstância e com a presença de Américo Tomás. Achilles José recebeu o Presidente da República e conduziu-o numa vista pela fábrica.
Mas o herdeiro do império Ach. Brito tinha outra paixão: os carros. Em 1953, Achilles e quatro amigos conduziram ininterruptamente durante 62 horas para chegar até ao rali de Monte Carlo. Hoje, o neto recorda o feito, mas também a coleção de automóveis do avô. O Ferrari era o mais conhecido, até porque enchia páginas de jornal, se bem que o Jaguar e o Lotus também tenham feito um brilharete nas décadas seguintes. Aquiles, o terceiro, herdou o gosto do pai.
Aquiles de Brito, o automobilista
Do circuito de Lordelo do Ouro ao de Montes Claros, passando pela Rampa da Pena, pelo Circuito de Vila do Conde, pela Volta ao Minho e, por fim, pelo Grande Prémio de Portugal, Aquiles Delfim acumulou prémios e classificações notáveis. Desde novo e antes de assumir um papel ativo na Ach. Brito, foi um dos nomes sonantes do automobilismo português dos anos 60 e 70. Recentemente, Aquiles, o quarto, descobriu o paradeiro de um dos carros mais icónicos do pai, um Lotus Elite, o primeiro automóvel produzido em série pela marca britânica. A família tinha-lhe perdido o rasto há 38, até que o encontrou fechado num garagem na Bélgica. Aquiles trouxe-o de volta para Portugal e está agora a restaurá-lo.
Quase sempre aprumado, de gravata e sapatos, Aquiles Delfim era conhecido como o gentleman driver. Contudo, nos negócios da família, nunca viria a aplicar-se a fundo. “O meu pai tinha visão, era empreendedor e uma pessoa de família. Se tivesse vivido mais anos, talvez as coisas tivessem tido outro desenvolvimento”, admite Aquiles. O terceiro Aquiles da família morreu em 1981, com 39 anos. Aquiles, o filho mais novo, tinha 10 anos. O avô, Achilles José, faleceu em 1988, com 73 anos, ficando Delfim de Brito, o único filho vivo, como herdeiro. Ainda assim, a passagem da terceira geração pelo comando da empresa foi muito rápida. Ao fim de cinco anos, Aquiles de Brito foi desafiado pelo tio a ficar com a fábrica. Estávamos no início dos anos 90, aquela que seria a década mais adversa da história da Ach. Brito.
Aquiles de Brito, o herdeiro
Vinte e dois anos, capacete debaixo do braço e casaco de couro cheio de mosquitos — foi assim que Aquiles entrou no escritório do tio no dia em que este lhe propôs ficar com a fábrica da Ach. Brito. Em 1993, o negócio não corria de feição. As grandes cadeias de distribuição tinham chegado em força e a Comunidade Económica Europeia possibilitava a entrada de novas marcas, multinacionais de produção em escala capazes de praticar preços ainda mais competitivos (ainda mais a partir do momento em que recorrem à mão-de-obra barata do Oriente). Como se não bastasse, os líquidos estavam na moda, enquanto a empresa continuava a produzir sobretudo sabonetes.
Aquiles e a irmã, Sónia de Brito, eram sócios passivos. O tio queria vender a sua parte, mas não sem dar aos sobrinhos a primeira opção de compra. “Não sei o que lhe diga”, balbuciou na altura, perante a proposta do tio. Em cima da mesa estava uma fábrica com cerca de 120 trabalhadores, mas também um estudo de 1991 que confirmava as suspeitas: ou compravam máquinas capazes de produzir milhões de sabonetes ou fechavam. “As máquinas custavam balúrdios, não tinha dinheiro, e também não ia fechar”, explica. Aquiles comprou a fábrica (pagou-a durante três anos) e tomou o caminho mais difícil, o de não aceitar nenhuma das duas opções.
“Quando entrámos, a via mais fácil era fechar e voltar a abrir ao lado, levar as máquinas e pôr o pessoal todo no fundo de desemprego. Escolhi a via mais difícil”, conta. Ainda assim, a necessidade de uma reestruturação impôs-se. Era preciso reduzir o número de trabalhadores e chegar a acordo com pessoas que trabalhavam na empresa há vários anos. “Todos saíram a bem”, afirma. Agora, era Aquiles de Brito, o quarto, quem dirigia a fábrica. O mesmo Aquiles que, em pequeno, ia visitar a fábrica e de quem os trabalhadores diziam: “Um dia ainda vai ser ele o nosso patrão”. O cargo, assumido anos depois, obrigou-o a tomar outras decisões difíceis, como a de encerrar a litografia criada pelo avô. “Se fosse hoje, não fechava”, confessa. Em 1999, o emblemático edifício do Porto é vendido e a fábrica muda-se para Vila do Conde, onde continua atualmente.
Depois da Ach. Brito, Aquiles acumulou outros negócios de família, mas para perceber quais são é preciso voltar a retroceder na árvore genealógica, a outro bisavô, Delfim Ferreira, Conde de Riba d’Ave. Na lista dos grandes empresários do século XX, o seu património estendia-se de Norte a Sul, das indústrias têxteis de Mindelo e Arcozelo e da CHENOP (a Companhia Hidroelétrica do Norte de Portugal acabou por ser nacionalizada em 1975 e integrada na EDP) às propriedades no Douro a uma quinta em Carcavelos, também com produção vitivinícola. Tinha o título de comendador e era amigo de Salazar. Em 1987, os seus herdeiros venderam Serralves ao Estado. Em 1951, Delfim Ferreira inaugurou o primeiro hotel de cinco estrelas do Porto. O Infante Sagres permaneceu na família até 2008.
Foi nesse ano que a Ach. Brito comprou a Saboaria e Perfumaria Confiança SA. Além de ser a principal concorrente, era também o segundo fabricante de sabonetes mais antigo do país, fundado em 1894, em Braga. Na mesma fábrica, passam a estar reunidas as duas marcas de sabonetes mais antigas da Península Ibérica. “Costumo dizer que temos aqui mais de 300 anos de história num único século — 124 da Confiança, 100 da Ach Brito e 130 da Claus Porto”, exclama Aquiles. Ainda nos anos 90, foi precisamente a terceira marca a catapultar a empresa de volta para o sucesso, ao entrar no mercado norte-americano. Em 2007, chegou o grande passaporte para o outro lado do Atlântico: os sabonetes da Claus Porto eram os favoritos de Oprah Winfrey. Enquanto isso, a estratégia redesenhada para a Ach. Brito mantinha o mercado nacional debaixo de olho.
Há 25 anos à frente da empresa, Aquiles nem sempre teve facilidade em tocar o negócio. “Não fui preparado para isso, não passei por aquelas etapas todas de estar no armazém, depois na fábrica… Entrei logo para cima e isso tem as suas vantagens, mas também tem muitas desvantagens”, afirma. O gosto pelos carros não passou da terceira geração. Hoje, só guarda os recortes de imprensa com os feitos do avô e do pai (que morreu quando tinha apenas dez anos).
Em 2015, outra decisão importante. Aquiles opta por alienar parte da empresa, vendendo uma fatia maioritária das ações à Menlo Capital, uma sociedade de capitais de risco portuguesa. Três anos depois, faz questão de manter uma relação próxima com a fábrica. Quanto à próxima geração, a quinta, não há certeza de que vá querer estar ligada à empresa centenária, fundado pelo trisavô. Pelo menos, a linhagem está assegurada: Aquiles de Brito tem dois filhos, ambos com o primeiro nome que os une aos seus antepassados.
Para assinalar o centenário, a Ach. Brito lançou uma coleção de edição limitada. Dela fazem parte duas caixas especiais, uma, com dois sabonetes, com fotografias de arquivo da antiga fábrica e a outra, com três sabonetes, recupera rótulos originais da marca. A coleção comemorativa fica completa com uma edição inédita da água-de-colónia Lavanda, pela primeira vez vendida em frascos de 100 ml, e com um novo sabonete, cuja fragrância foi especialmente concebida para o centenário. Todos os produtos estão à venda n’A Vida Portuguesa.