O professor de Literatura Portuguesa e Brasileira estava irrequieto. No outro lado do oceano, tão distante do King’s College, em Londres, a ansiedade leva a manobrar em simultâneo um copo de whisky e um charuto, à medida que respondia aos jornalistas brasileiros, que apresentavam José Cardoso Pires como “o escritor mais famoso em Portugal”. Aos 46 anos, de “cabelos levemente encanecidos”, o professor universitário exilado, no Brasil a lançar O Delfim, podia finalmente refletir em português sincero, longe da censura, sobre o Portugal de 1971.
Os danos, os prejuízos, que o regime de Salazar produziu foram incalculáveis. Mas essa ideia de que os países que têm uma censura muito forte não podem fatalmente produzir obras de arte, é muito errada. Isso é um preconceito, um apriorismo. Acontece que, em certos momentos da História de alguns países, é justamente nos momentos mais duros, mais dramáticos e com menos liberdade de expressão que se consegue, talvez por reação a isso, produzir obras válidas.”
(Correio da Manhã, 1971)
É justamente em reação à censura que José Cardoso Pires escrevia em 1971 uma das suas obras mais válidas, Dinossauro Excelentíssimo, o universo paralelo à beira mar do “Reino do Mexilhão”, paralisado pela mentira, onde as opiniões inconvenientes são devoradas por uma “câmara de torturar palavras”. Há 50 anos, as engrenagens da Secretaria de Estado da Informação e Turismo cumprem um estranho papel no desenvolvimento da cultura portuguesa, e em particular da música popular. Ao mesmo tempo que oprime, mutila e devora palavras, indiretamente suscita a manha, o artificio, e provoca uma singular comunhão da literatura com a melodia, em prol de um nobre desígnio: derrubar a ditadura. É a literatura que reage primeiro contra a “câmara de torturar palavras”, mas é a canção que está na boca do povo.
“A importância é que a canção levou a poesia mais longe. Muita gente que não gostava de poesia começou a interessar-se mais por poesia, aprendeu poemas de cor através da canção, e foi um fenómeno natural, não foi programado”, pondera hoje Manuel Alegre, em Lisboa, que assim como David Mourão-Ferreira, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Natália Correia ou António Gedeão, subitamente tem os seus poemas traduzidos em melodia, a vender milhares de cópias. São estes poetas, capazes de concentrar uma rebelião numa dúzia de linhas, que transfiguram a música portuguesa. “Os poemas não são panfletários, nem sequer políticos, mas têm um certo sentido cultural”, continua Manuel Alegre. “E as pessoas percebiam que os poemas tinham este sentido revolucionário, estava dentro das pessoas que viviam aquela situação”. A “situação” instiga os músicos a procurarem a poesia, forma-se uma coligação sem-par na nossa canção, e o país começa, verso a verso, a mudar por dentro.
Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida
Entre comes e bebes, na Avenida Fontes Pereira de Melo, uma cerimónia exalta um improvável marco histórico: no auge do regime ditatorial de Marcello Caetano, uma editora independente portuguesa vendeu 10 mil cópias de um disco declaradamente contra o Estado Novo, e os autores são um professor de Fisico-químicas e um operador informático. A editora Zip-Zip de Raul Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia, um sucedâneo do célebre programa da RTP que revelou uma nova geração de músicos portugueses, entrega em mãos o “disco de bronze” a Manuel Freire, e o informático metalúrgico de Ovar, cantor nos tempos livres, ainda agradece em nome de António Gedeão, o professor do Liceu Pedro Nunes responsável pelos versos de “Pedra Filosofal”. Em 1971, um ano após o lançamento desta canção imortal — e ainda agora, cinco décadas depois — persevera a verdade absoluta do poema: é o sonho que comanda a vida.
[“Pedra Filosofal”:]
A cerimónia acontece no mesmo palco em que, dois anos antes, Manuel Freire apresentou a canção em público pela primeira vez: o Teatro Villaret. “Levei uma viola muito velha e cantei essa música que tinha acabado de fazer”, confirma-nos Manuel Freire, em Óbidos, que canta “Pedra Filosofal” no “Zip-Zip”, segunda-feira à noite na RTP, e torna-se de imediato um dos rostos mais célebres da nova canção portuguesa. O tema é emblemático de um género que se convencionou denominar de balada: uma melodia submissa, a viola dedilhada, arranjos comedidos e pouco mais, ao serviço de um poema meticulosamente cantado, em alto e bom som. “O mais importante eram as palavras”, sublinha Manuel Freire. As palavras eram, em última análise, um ato de fé que pretendia alterar o tecido sociopolítico português. E a alquimia excecional de “Pedra Filosofal” resulta da voz operística de Manuel Freire, em constante angústia, a servir magistralmente o poema. “Acho que o recado do texto é intemporal, está ali uma pedra filosofal sobre o desenvolvimento humano e explica porque a humanidade evolui: é porque o homem sonha”.
Os sonhos de Manuel Freire são encurtados quando lhe anunciam a morte do pai, em 1964. “Eu queria voltar a estudar, mas com a morte do meu pai, estudar era um esforço económico para a minha mãe, uma professora primária, de maneira que resolvi procurar trabalho”. Os estudos ficaram-se por um ano tumultuoso em Coimbra, durante a Crise Académica de 1962, e mais um ano no Porto, até o serviço militar requisitar este aluno mais interessado em rebeliões e cantorias que Engenharia Química. Em Ovar, começa a operar cartões perfurados numa série de máquinas que se diziam informáticas, e inevitavelmente, uma vez por ano, a empresa metalúrgica recebia uma visita da PIDE, a inquirir pelo funcionário das baladas. “Tive sempre os pés bem assentes na terra”, justifica pela sua vida dupla de informático e cantor. “Era muito complicado lutar contra o regime e viver de uma luta, de maneira que usei as cantigas sempre como material de fim de semana, feriados e férias”.
Em 1971, Manuel Freire retorna a António Gedeão em “Poema da Malta das Naus”, uma das quatro canções do EP Dulcineia, com o poema quixotesco de José Gomes Ferreira que dá nome ao disco, e ainda com versos de Eduardo Olimpo e José Saramago, que o músico copiava à mão e aos quais posteriormente acrescentava melodia. “O que me agrada muito na poesia do Gedeão e que o leva a não ser considerado como um grande poeta português é a sua facilidade, ele é tão direto e simples que qualquer pessoa entende os poemas”, considera o informático-cantor.
António Gedeão era outro homem duplicado: o nome de batismo é Rómulo de Carvalho, um professor de Físico-químicas e renomado investigador da História da Ciência em Portugal. O pseudónimo literário António Gedeão é adotado em meados da década de 50, a tempo do seu primeiro livro de poemas, Movimento Perpétuo — no qual se incluia “Pedra Filosofal”. E uma série de anos depois, em 1971, a popularidade da canção de Manuel Freire impele Gedeão a ser o poeta vivo com mais vendas na Feira do Livro, na Avenida da Liberdade. Era evidente a correlação entre as baladas e um certo sucesso literário, sobretudo com os poetas neo-realistas, e esta literatura socialmente comprometida é de forma espontânea um aliado transformador da música popular portuguesa. Analisa o Diário de Lisboa:
E que tem sido a ação de cantores como José Afonso, Correia de Oliveira, Francisco Fanhais, Manuel Freire, além de outros, senão a concretização, à escala musical, das linhas mestras do neo-realismo?”
“Ouvimos uma canção em determinado posto. E arrebitámos a orelha. A música é banal, modesta, mas a letra…”, escreve Isabel da Nóbrega, na Capital, ao recordar o seu primeiro encontro com “Pedra Filosofal”. Além de uma constante da vida, a canção era também uma constante na rádio, e em qualquer gira-discos que se preze, uma inesperada sobre-exposição que quase esgota o conceito da balada. “Em primeiro lugar e por unanimidade, foi decidido sublinhar que a pior canção do ano, ‘Pedra Filosofal’ de Manuel Freire, destacou-se seriamente das outras pelo pretensiosismo lírico-musical apoiado e camuflado por uma hábil e eficaz campanha de promoção publicitária”, ataca a Mundo da Canção, que não aceitava o sucesso de Manuel Freire, depois de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira andarem há mais de dez anos neste caminho. “A maioria dos baladeiros não sabe cantar”, diz o próprio Adriano Correia de Oliveira ao Século Ilustrado, apontando o caminho seguinte da canção portuguesa: “Só quando realmente agarrarem nestas experiências os indivíduos preparados, os músicos, os compositores, é que, na verdade, se atingirá essa fase de se conseguir uma efetiva renovação”.
A música que rema contra a maré
A procedência da balada é de Coimbra, um subgénero de diversas mutações regionais que José Afonso converte numa arma de denúncia social, a seguir o rasto de pioneiros como Edmundo Bettencourt e Fernando Machado Soares. A sucessão de crises académicas encarrega-se de disseminar as baladas ao longo de Portugal, que agita o suficiente a malta estudante para pegar numa viola, meia-dúzia de acordes e pregar a boa nova. Nos corredores de faculdades, teatros universitários e cineclubes, os cantores-estudantes resguardam-se na literatura oposicionista, em metáforas e subentendidos, enquanto as melodias despojadas afastam-se cada vez mais da ebulição musical de Coimbra. O resultado é uma espécie de movimento: os baladeiros.
“Acabou por ser um movimento porque eram várias pessoas a fazerem a mesma coisa, mas não nasceu com essa intenção”, reflete agora Manuel Freire. “Ouvíamo-nos uns aos outros, e as circunstâncias políticas levavam-nos a ter um papel interventivo”. E a balada e o baladeiro passam a designar qualquer indivíduo de viola ao punho com coisas a dizer, idealmente que tenha sido consagrado no palco de iniciação do “Zip-Zip”. “Eu não sei se existiu um movimento organizado ou não, mas chamavam-nos de baladeiros e nós aceitamos a denominação”, acrescenta Francisco Fanhais, em Lisboa, que define a balada como, “uma música que rema contra a maré”. E a maior contracorrente no “Zip-Zip” foi decerto o então padre Francisco Fanhais, a alertar que cortaram as asas e quebraram o bico ao rouxinol — e o rouxinol éramos todos nós. “Alguém ligado à igreja era onde eles menos esperavam que pudesse haver oposição”, nota, sendo que a própria transmissão de “Cantilena” envolve uma série de negociatas de bastidores com a censura. E o preço pelo atrevimento de Francisco Fanhais seria tremendo: em 1971 está suspenso da Igreja Católica, do cargo de professor e praticamente impedido de cantar.
[“Cantilena”, de Francisco Fanhais”:]
O sonho comanda a vida de Francisco Fanhais, no Barreiro. O jovem padre do Entroncamento é ali colocado como coadjutor da paróquia e professor de Religião e Moral, uma região de conflitos sociais latentes, entre os milhares de operários e o patronato de engenheiros. “Aqueles três anos do Barreiro foram fundamentais na minha vida, sendo que eu vinha de um ambiente um bocado fechado”, contextualiza, a relembrar a família profundamente católica, a morte do pai aos 17 anos, a formação em seminários, “sem qualquer razão espiritual profunda”, e o amparo do canto coral e da viola. “E comecei a cantar nas coletividades recreativas da Margem Sul, sempre que cantava denunciava, e cada vez as pessoas achavam mais graça ser um padre a denunciar, e eu dizia que era a minha obrigação, porque sou cristão, e magoa-me ver o silêncio da igreja em relação a toda esta situação. E magoava-me que a igreja fosse o mais forte apoio moral da ditadura”.
A perseguição ao padre Fanhais intensifica-se abruptamente, o próprio Diretor-Geral de Segurança identifica o baladeiro como o principal responsável pelo “clima de exaltação subversiva” na música portuguesa. O Diretor-Geral de Segurança concorda e envia um despacho a todos os poderes locais:
As informações recebidas pela PSP mostram que o Padre Fanhais desenvolve em todo o país uma atividade indesejável, cantando baladas, cujos temas não se compadecem com o clima moral que é preciso manter para assegurar a defesa do Ultramar e garantir a integridade da Pátria. Os senhores governadores civis devem tomar as disposições convenientes para evitar que seja permitido este abuso do direito de reunião por parte das sociedades de recreio e cultura e até por estabelecimentos de educação que o têm convidado e incluído nos seus espetáculos ou reuniões.”
O último prego no caixão é a presença de Francisco Fanhais no casamento do ex-padre José da Felicidade Alves, um dos impulsionadores do clero progressista que se afastava definitivamente da Igreja Católica. E o baladeiro é intimado a responder ao Tribunal Eclesiástico no Palácio do Patriarcado, em Lisboa. “Eu já estava um bocadinho com um pé dentro e outro fora, e disse: ‘vou lhe dar uma resposta muito simples em três pontos: ponto um, estive presente no casamento; ponto dois, concordo com tudo que lá se passou; ponto três, estou solidário com todas as pessoas que lá estiveram’”. É um xeque-mate da subversão, e a Igreja Católica suspende Francisco Fanhais do sacerdócio e do cargo de professor de Religião e Moral. Encurralado, aproveita a boleia do camarada José Afonso, e exila-se em Paris na companhia de José Mário Branco e Luís Cília, enquanto a editora Zip-Zip lança o seu último disco em nome próprio, uma compilação: Corpo Renascido.
O título é o de um poema de Manuel Alegre musicado por Pedro Lobo Antunes, irmão de António Lobo Antunes, resumindo a condição altruísta da cantiga de intervenção: “Cantando é como se dissesse/ Estou aqui/ Na multidão que está dentro de mim”. O crítico de música, Tito Lívio, analisa o derradeiro EP de Francisco Fanhais na Mundo da Canção:
Às letras é dado papel primordial no contexto das canções. Canção que pretende ser aqui, e antes de tudo, forma de participação, de contestação”. Mas o ano de 1971 era de uma viragem repentina das necessidades mais urgentes da canção. Continua Tito Lívio: “Digamos que Francisco Fanhais escolheu uma via perigosamente limitada e limitativa. Já a ser ultrapassada na definição e estado actual da evolução-construção de uma nova canção portuguesa”.
“Éramos todos muito inocentes do ponto de vista musical, tocávamos todos muito mal, de maneira que as cantigas não podiam ser muito elaboradas, eram melodias simples que serviam um poema que queríamos que levasse um recado às pessoas”, defende Manuel Freire. Nem o sucesso estrondoso de “Pedra Filosofal” salvaguarda Manuel Freire, a sua carreira começa a ser descrita na imprensa como “estagnada”, e o palavreado hermético das baladas é uma anedota na voz de Ludgero Clodoaldo, personagem de Raul Solnado. Em 1971, a supremacia da literatura na canção é destronada, as transformações culturais reivindicam uma obra de arte completa, dos pés à cabeça, da melodia aos versos. A reação surgiria em Paris, a 1500 km de Portugal, encabeçada pelo produtor José Mário Branco, que se apresenta como a antítese do cinzentismo das baladas, o maestro da cor quente e audácia de Cantigas do Maio, Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades e Os Sobreviventes. E o mundo pula e avança.
Poemas de carne e vísceras a passar de mão em mão
Em Oliveira de Azeméis, Manuel Freire aguarda pelas ordens do sargento da GNR, incumbido de assegurar que o repertório no Salão dos Bombeiros está conforme as exigências da Direção do Serviço dos Espetáculos. A instrução é clara: Manuel Freire pode cantar somente a “Pedra Filosofal” e o rapazola ao lado, um miúdo de 20 anos de Cascais, está absolutamente proibido de interpretar qualquer cantiga. “O nosso dia a dia era marcado pela coragem, sabíamos que podíamos ser espancados ou presos, mas íamos arriscando”, conta-nos o tal miúdo, José Jorge Letria, mais uma revelação do “Zip Zip”, entretanto Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores. E de seguida, revela-se a fina malandrice de Letria: “Então disse, se não podemos cantar, podemos falar”. E não só declama as canções, como ainda abre uma sessão de debate livre, com aval da GNR — digam o que disserem, o certo é que ninguém cantou.
“Os PIDEs estavam em todo lado, nas sessões académicas, nas sessões das coletividades, nos liceus”, recorda Letria, “o jovem subversivo de origem clandestina” — palavras da polícia política — que corre os centros de resistência de Portugal, das associações aos sindicatos. “Fiz intensamente esse circuito e ainda vivia com a minha mãe, em Cascais, uma atividade absolutamente absorvente, chegava a fazer canções à tarde para cantar à noite, e todas as canções tinham um compromisso com a realidade política”. Aos 20 anos, era ainda redator do Diário de Lisboa, poeta e contista no suplemento juvenil do mesmo jornal, e convém não esquecer, havia uma licenciatura na Faculdade de Direito por terminar. “Às vezes penso que não me formarei”, desabafa à Flama, com a atenuante que, após a morte inesperada do pai, dependia do subsídio de estudante para sobreviver. “Foi um grande abalo na minha vida, mas logo depois da morte do meu pai entrei na Faculdade de Direito e integro-me numa dinâmica de transformação”. É na faculdade, envolta das crises académicas, da literatura, e uma viola, que mais um precoce órfão de pai converte o desgosto em cantiga justa.
José Jorge Letria em 1971 é um homem renascido. O cartão de visita são três palavras: “Pare, Escute e Olhe”. O disco de estreia, lançado no ano anterior, deixou algum azedume, apesar das melhores intenções do Quarteto 1111, os produtores de História do José Sem Esperança. “Pois, gravei um EP, que mesmo assim constituiu uma experiência falhada”, desabafa à Mundo da Canção, enquanto apresenta o seu renascimento, “Pare, Escute e Olhe”, sublinhando que, “é um grande equívoco” identificá-lo como baladeiro. “A necessidade de classificar e rotular experiências precipitou-nos num construir de equívocos, que espero bem que o tempo os desfaça.” E 50 anos depois, o tempo desfez o engano, Letria estava precisamente na encruzilhada das baladas e da nova canção portuguesa, a equilibrar os versos com aprumo musical. Em 1972, nos estúdios do Château d’Hérouville, em Paris, “Para Escute e Olhe” é recalibrado por José Mário Branco para uma encenação ameaçadora de hard-rock, a condizer com a denúncia da canção:
“Suor frio ou sangue quente
água mole ou vinho novo
é tão escassa a diferença
é sempre o sangue do povo”
[“Pare, Escute e Olhe”:]
“Por isso eu digo: está quase tudo por fazer”, defende José Jorge Letria no Diário de Lisboa, diante da transformação musical de 1971. “É esse talvez o nosso maior trunfo. A nossa grande vantagem”. À revista Flama detalha o ponto transformador, uma certa desinibição musical: “o elemento dinamizador não é só a palavra”, explica, para atingir “determinado tipo de ação” é necessário “um dinamismo emocional — uma espécie de choque que a música provoca em nós”. O choque emocional é redobrado em “Arte Poética”, o lado B de “Para Escute e Olhe”, que Tito Lívio considerou ser, “uma das canções mais importantes, senão a mais importante do ano de 71”. E o poema de Hélia Correia sintetiza o propósito desta história, da literatura enturmada com a melodia:
“Que o poema tenha carne
ossos vísceras destino
que seja pedra e alarme
ou mãos sujas de menino.
Que venha corpo e amante
e de amante seja irmão
que seja urgente e instante
como um instante de pão.
Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.”
[“Arte Poética”:]
O poema mais destemido de José Jorge Letria em 1971, de carne e vísceras, é proferido em palco, no Teatro Experimental de Cascais, fantasiado de Jesus Cristo a percorrer um estrado de madeira pela plateia. “Numa altura em que havia uma censura feroz, estava ali um indivíduo de cabelo comprido e um bocado desequilibrado, com uma viola na mão a cantar ‘soltem os encarcerados’, era um happening cultural e político”, relembra o ator de “Breve Sumário da História de Deus”, o texto de Gil Vicente convertido em musical pelo encenador Carlos Avilez. Na peça, Letria compõe e canta “Hino dos Encarcerados”, e mais dois baladeiros completam as composições: Pedro Barroso, um estudante de Educação Física de voz portentosa; e António Macedo, autor do hino de resistência “Ergue a Voz e Cantar”, também conhecido como “Canta, Amigo, Canta”:
A audácia de “Breve Sumário da História de Deus” ecoa subtilmente pela imprensa — “um Hair para português ver” — e a editora Zip Zip lança o musical em disco, que é imediatamente apreendido e escondido nos calabouços da PIDE. Hoje, ao percorrer o elenco deste álbum proibido, sobressai um nome que, ao contrário dos restantes baladeiros, a nossa música popular não guarda qualquer memória: Lídia Rita. A atriz que representava Eva em “Breve Sumário da História de Deus”, membro do Grupo Cénico da Faculdade de Direito, era ainda parte do elenco de “Nojo aos Cães”, o filme clandestino de António Macedo que também é impedido de qualquer transmissão em Portugal. Em 1971, às custas da PIDE, Lídia Rita permanece duplamente incógnita. Nas gravações do seu único disco, Pois É, P’ra Quê, conhece o futuro marido, o guitarrista Pedro Caldeira Cabral, e enfim, abandona por completo qualquer carreira artística. O percurso singular de Lídia Rita integra-se numa história maior que está por contar, um combate simultâneo contra um regime e uma ditadura de costumes: as mulheres do canto de intervenção.
A história desconhecida das mulheres do canto de intervenção
“Deve ou não a mulher trabalhar?”, questiona-se o Diário de Lisboa, a demonstrar à partida uma noção retrógrada do que seria um debate de igualdade de género em 1971. Em resposta à sondagem do jornal, a transeunte Alice Maria Soares considera que, “devemos trabalhar por uma questão social”. Evangelina Joaquina Tomás, doméstica, admite ressentimento pela vida não lhe ter aberto outra janela – “não tenho curso e não se proporcionou”. E a caminho do hospital, certamente com mais coisas que se preocupar, a enfermeira Maria Cândida arruma o jornalista a um canto: “Essa coisa da mulher ficar em casa… A mulher realiza-se no trabalho”.
E ainda havia mulheres, imagine-se, que não se realizavam somente em casa e no trabalho. À hora de saída, a secretária Rita Olivaes bate o ponto e segue pela noite fora em cantigas de intervenção, uma prática que adota como estudante da Faculdade de Letras. “Quando acabei o curso fui logo trabalhar, o meu pai morreu muito cedo e tinha que me sustentar”, revela-nos Rita Olivaes, em Carcavelos, notando que eram somente “duas ou três mulheres nas baladas”. “Se calhar havia pessoas que deviam achar que não era uma coisa muito própria, mas nunca fiz nada de mal, só gostava de cantar e andar nessa atividade”. A atividade decorria pelas associações e cooperativas, invariavelmente acompanhada por Adriano Correia de Oliveira. “O Adriano era de um grupo mais intervencionista, eu não era tão intervencionista, mas gostava de dizer as coisas que achava mal”.
E o mal manifestou-se em dia marcado: 25 de julho de 1970. José Pedro Pinto Leite, um dos deputados da Ala Liberal — a oposição legal ao Estado Novo dentro da Assembleia Nacional — desaparece após um inexplicável acidente em Guiné-Bissau, a bordo de um helicóptero que se despenha no rio Mansôa. José Pedro Pinto Leite era irmão de Rita Olivaes. “Ele queria que tratássemos de África de uma forma civilizada e humana, fez discursos um bocado provocatórios na assembleia, e começou a receber ameaças”, conta Rita, até hoje com suspeitas de um ato de sabotagem. “Os meus outros irmãos foram pedir ao Marcello Caetano para fazer uma investigação, nunca se soube de nada”. A viola amolece as mágoas e Rita Olivaes exprime a sua revolta em “Águas do Rio Mansôa”, uma canção exemplar do canto de intervenção, de igual media particular e universal — “Águas do Rio Mansôa” está indisponível em qualquer formato desde o seu lançamento.
“Águas do Rio Mansôa” abre A Poesia e a Música de Rita Olivaes, o EP que é um desabrochar confiante da cantautora em “Mulher flor” — “Cresce flor/ Cresce e rasga a terra com as tuas raízes/ E o céu com a flor do teu cal/ À procura do sol” — e uma afirmação de consciência social em “João Dos Jornais” — “João indefeso/ João dos jornais/ Nascido no beco/ Do beco não sais”. “Não me interessava fazer um disco, confesso, assim-assim. Quis fazer algo muito bom”, fundamenta à Mundo da Canção. “Gostava de escrever poesia e havia assuntos que me inspiravam, como os ardinas, e isso às vezes trazia-me problemas, queriam passar a ideia que não havia pobreza”, recorda, a confirmar que estava em boa companhia nos dossiês da PIDE.
[“Mulher Flor”:]
No final de 1971, Rita Olivaes convida o amigo Adriano Correia de Oliveira para interpretar uma canção da sua autoria, “Amor de Raiz”, no Festival RTP da Canção do ano seguinte. “Na reunião que houve com os autores e os manda-chuvas da RTP tínhamos de dizer quem queríamos como intérpretes e quando chegou a minha vez disse: ‘Adriano Correia de Oliveira’. Não pode imaginar o que foi a cara das pessoas”. A escolha é logo travada pela organização do festival e João Braga encarrega-se de socorrer Rita Olivaes. Os próximos anos seriam de um progressivo afastamento dos palcos e de uma série de composições para outros, desde o Duo Ouro Negro a Simone de Oliveira. “Depois da fase dos primeiros baladeiros, entretanto começou a aparecer mais gente a cantar, e eu achava que a minha voz era afinada e bonitinha, mas não tinha um vozeirão para fazer uma carreira”, confessa. “Só tenho pena de não ter continuado. Teria sido uma alegria para mim. Mas na altura as coisas não eram fáceis, era preciso ganhar a vida”.
Neste ano fundamental para o cânone da música popular portuguesa, Rita Olivaes não é o único caso de uma cantautora portuguesa ao abandono da história. O único lançamento discográfico de Ana Maria Teodósio é de 1971 — Ana — a contragosto do pai, um trombonista de orquestra. “Eu tinha canto coral no liceu e a professora achava que eu cantava muito bem e devia seguir o canto, e um dia chamou o meu pai. O meu pai não deixou prosseguir, achava que era perigoso e um ambiente muito mau, que as mulheres tinham de fazer cedências”, conta-nos Ana Maria Teodósio, em Lisboa, professora reformada que mantém um podcast dedicado à poesia. “A certa altura o meu pai ofereceu-me uma viola, e ensinou-me música, mas quando percebeu que eu queria seguir música, cortou-me as asas”.
Nas profundidades do Casal Ventoso, a assistente social Manuela Portas, irmã do arquiteto Nuno Portas, convida a amiga Ana Maria Teodósio, uma cantadeira pelos cotovelos desde miúda, a participar numa sessão de alento aos desafortunados. Entre a plateia estava outro baladeiro, Carlos Alberto Moniz, que decide apresentar esta cantautora a José Afonso. “Chegámos a Setúbal para conhecer o José Afonso e ele estava doente, deitado na sala, em cima de um colchão no chão”, recorda; e canta para um José Afonso combalido, que sugere à editora Orfeu uma sessão de gravação com Ana Maria Teodósio. E os minutos de glória de Ana Maria Teodósio seriam no palco do “Zip Zip”, ao lado de Carlos Alberto Moniz. A sua primeira escolha para o programa, uma composição de delicada sensualidade feminina, é descrita como obscena e vetada pela censura. Seguia assim: “Vem com tuas mãos serenas/ contornar os meus silêncios/ minhas pernas longas, lisas,/ são abóbadas são templos”. A segunda escolha é aceite, “Meninos”, uma canção de furtiva denúncia social – não existe qualquer registo gravado das duas canções.
Ana Maria Teodósio desperta socialmente em Gândara, durante os períodos de interrupção de aulas. “Era uma zona muito pobre”, explica, a ilustrar a morte corriqueira de crianças, “vestidas de anjinho com uma coroa na cabeça”, “pessoas a trabalhar de manhã à noite, sem condições nenhumas”, “casas sem eletricidade com chão de terra-batida”. A sua indignação manifesta-se no salão de baile de Gândara, em cantigas de protesto, até um bufo queixar-se à PIDE, que surpreende a cantora com uma rusga a meio da noite. Em Lisboa, no teatro universitário da Faculdade de Letras, contracena com Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo, e uma jovem recatada, que certo dia lhe revela que também fazia canções. Essa jovem, Ermelinda Duarte, mais tarde eternizada como a voz de “Somos Livres”, entrega-lhe em primeira mão “Manuel”, uma cantiga de versos demolidores para os dez anos de Guerra Colonial: “Manuel partiu para a guerra/ Leva a paz no coração/ Manuel parte chorando/ Manuel parte rezando/ Não matarei o meu irmão”. Esta é a primeira gravação de uma das canções de protesto mais emblemáticas da época, mas a história nunca rezou o nome da intérprete: Ana Maria Teodósio:
O epicentro da balada desce para sul
Ao fim de tarde, em conferência de imprensa, a editora Orfeu apresenta as novidades: o disco de estreia de Ana Maria Teodósio e o último de Denis Cintra, um dos baladeiros mais requisitados em 1971. Segundo o Ministério do Interior, Denis Cintra está “entre os mais extremistas” “na utilização de temáticas anti-sociais e pacifistas”. O novo disco é Canção de Ódio e Raiva, uma sublime comunhão da balada e rock’n’roll, e uma regeneração do músico até então aclamado pela toada irónica — “sarcástico, implacável, ele é outra louça no panorama da canção portuguesa”, escreve a Mundo da Canção. No entanto, o filho do professor Lindley Cintra, irmão de Luís Miguel Cintra, desaparece sem deixar rasto dos meandros da balada e nunca mais gravaria um disco. Outra assombração da música popular portuguesa é José Almada, um baladeiro de curioso sotaque viseense, compositor de canções de uma solidão avassaladora que hoje são, passo a passo, redescobertas pela nova geração de cantautores portugueses.
[“Vento Irado”, de José Almada:]
O sucesso incontornável das baladas, e as módicas sessões de gravação, convencem as editoras portuguesas a gravar baladeiros em série: Nuno Filipe; Vieira da Silva; o ex-ministro José Lello; o irreverente Fausto; um tal de José Matildes — “não sou um Dylan nem um Bocage, mas canto a vida como os demais”; o alentejano Francisco Naia, funcionário dos Caminhos-de-Ferro do Barreiro; ou José Barata Moura, um agitador das associações recreativas revelado no “Zip Zip”, que tenta uma carreira académica e é travado pela PIDE. O refúgio de José Barata Moura seria o mais inusitado: “Olha a Bola, Manuel”. “É o primeiro disco de canções que conhecemos feito com as crianças. Fruto de um trabalho coletivo, de uma vivência profunda e intensa com crianças”, analisa a Mundo da Canção. “Podemos dizer que este disco é um ato de festa, de alegria, de compreensão do mundo maravilhoso da criança.”
O mercado das baladas permanecia em alta, a responder ao progresso económico, a uma juventude de outra capacidade financeira, com dinheiro no bolso para gastar no Apolo 70 — “a maior drugstore da Europa” — ou até numa bica, que escândalo, a dois escudos e noventa centavos. A seu tempo, em 1971, os baladeiros consideram que é um erro estratégico cantar para esta gente aburguesada, incapaz de transformar as canções em atos. “Inicialmente, colhi grande entusiasmo desses espectáculos estudantis. Os estudantes efetivamente embandeiravam em arco com as atuações”, diz Adriano Correia de Oliveira à Mundo da Canção. “Hoje estou autorizado a dizer que não era recetividade. Porque vi que em muitos casos a possível ação do que cantava junto das pessoas não era correspondida depois na prática.” Naquele momento de guerrilha era impensável, para não dizer ofensivo, que uma plateia estivesse somente a apreciar a música. Denis Cintra: “Os convívios desse género foram bons e úteis no seu tempo, quando faziam parte integrante do movimento estudantil. Agora são tristemente irrelevantes.”
Ao longo da década de setenta, as plateias universitárias, de “origem perfeitamente burguesa, privilegiados desta sociedade”, segundo Adriano Correia de Oliveira, são intensamente substituídas pelas associações recreativas, centros paroquiais, sindicatos, clubes de campismo, onde pretendiam encontrar — e influenciar — a génese do povo português. O epicentro da balada move-se drasticamente de Lisboa para a Margem Sul, em espaços com décadas de tradição oposicionista: a Cooperativa Piedense; a Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense; a Sociedade Filarmónica Unitária; a Incrível Almadense; entre tantos outros. “Sempre que alguém era convidado passava a palavra aos outros”, explica Francisco Fanhais, sendo que o soberano da intervenção, José Afonso, estava em Setúbal. “As dificuldades tecnológicas eram enormes, os microfones eram fracos, as colunas dos PAs eram fracas”, recorda José Jorge Letria, dando-nos um retrato habitual da plateia: “eram pessoas de todas as procedências e origens, da vida associativa da terra, alguns estudantes, e trabalhadores que estavam muito politizados, de forma geral alinhados com o Partido Comunista”.
Uma destas sessões em 1971 seria profética. Em Santarém, a Escola Prática de Cavalaria convida a fina-flor da balada, desde José Jorge Letria, Denis Cintra, António Macedo a Fausto, conforme relata a PIDE em documentos revelados pelo historiador brasileiro Alexandre Felipe Fiuza. Na plateia está a força armada em peso, capitães, coronéis, tenentes, e soldados rasos, entusiasmados com as canções afrontosamente críticas à guerra em África, que idealmente, julgava-se, o exército combatia de boa-vontade. “Vocês sabem muito bem que há baladas que se não pode cantar, e como tal não cantarei”, responde Denis Cintra às provocações dos soldados na plateia. Fausto não é de meias-medidas, e aperta na ginga subversiva de “Comboio malandro”. “A balada Comboio de Angola, que foi cantada pelo Fausto, é de carácter racial dos maus tratos do branco para com os pretos”, escreve o PIDE de serviço, que ainda grava os concertos em cassete. E, cantiga a cantiga, de mão em mão, é armado o terreno para a Revolução de Abril, que além dos cravos, também foi de canções.
[“Comboio Malandro”, por Fausto:]
“Acabou o inimigo comum e deu cabo da intervenção”
No terreno, a competência da Direção do Serviço dos Espetáculos estava permanentemente em cheque, com as orelhas a ferver de tanta contestação interna. A Direção do Serviço dos Espetáculos, braço da Secretaria de Estado e da Informação e Turismo, era responsável por aprovar os ajuntamentos e os respetivos alinhamentos de concertos. Uma diretriz da Secretaria comprova o descontentamento com, “a realização de espectáculos — algumas vezes até clandestinos”, canções que “não foram submetidas à apreciação da Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos”, “baladas” que “traduzem ideias de contestação, de pacifismo, de reivindicações sociais”, “sobretudo contra a posição portuguesa no Ultramar.”
As advertências recorrentes entre 1970 e 1971 não resolvem a peste da contestação cantada, e o regime de Marcello Caetano decreta linha-dura para 1972: a Direcção dos Serviços de Censura é renomeada de Direcção Geral da Informação e, pela primeira vez, é imposto o “Exame Prévio”, ou seja, uma censura prévia à gravação de qualquer disco. Em fevereiro de 1972, o diretor Direcção Geral da Informação, Geraldes Cardoso, começa por enviar cartas de intimidação às editoras portuguesas, a arrancar o mal pela raiz: “Compete, em princípio, às casas editoriais tomar as medidas convenientes para o cumprimento da lei”, anuncia, e tirem o cavalinho da chuva: “Foram transmitidas superiormente instruções às autoridades competentes para perseguir criminalmente os infratores”. Um exemplo prático é, neste início de 1972, a apreensão do LP de estreia de José Jorge Letria – Até ao Pescoço — e os versos riscados de “Para Escute e Olhe” e “Arte Poética” — “não é de divulgar”, escreve o censor, ou com sorte, “é de publicar à exceção da sexta estrofe”.
As singularidades que fizeram de 1971 um ano de intenso progresso musical não aconteceriam novamente, cada mês seguinte é mais repressivo, e simultaneamente, mais próximo da libertação. E no fervor pós-revolucionário, os renovadores da música popular portuguesa retraem-se para uma canção mais despida, próxima das baladas, e distribuem versos passageiros, panfletários, distantes da harmonia poética e musical da canção, ao fim e ao cabo, a pedra filosofal da música popular.
“Depois do 25 de abril, que trouxe a liberdade e trouxe a democracia, por um ponto de vista as coisas já não eram como antes, começou haver interesses, começou haver divisões”, concorda Manuel Alegre. A revolução abre repentinamente os diques da liberdade de pensamento, que inundam a canção de ideologia política, a desunir por completo a música popular. “Na prática cada um começou a cantar para o seu público especializado”, recorda Francisco Fanhais. “Antes estávamos todos de acordo contra a Guerra Colonial, contra a censura, os presos políticos, o inimigo era aquele. Acabou o inimigo comum e deu cabo da intervenção”. “Estávamos unidos porque tínhamos o mesmo instrumento de combate, uma viola transportada num saco. E o objetivo estratégico era o mesmo: derrubar um regime”, acrescenta José Jorge Letria. “Estávamos sempre à espera do tal 25 de Abril que nos libertaria. Por outro lado, quando se dá o 25 de Abril, é uma grande contradição do ponto de vista filosófico e histórico, o que nos uniu foi o que nos separou”.
Mas esta história da canção popular não se escreve de amargura, o que se perdeu pelo caminho – uma comunhão da literatura com a música, uma camaradagem sem reservas em defesa da liberdade — é uma nota de rodapé para o que foi conquistado: a capacidade de sonhar.