2022 é apontado como um ano de maior risco para o setor elétrico do que foram os anteriores. Os últimos dois relatórios produzidos pela Direção-Geral de Energia e Geologia admitem que, em determinados cenários, a capacidade de produção pode não ser suficiente para responder aos picos de procura, cumprindo os padrões de segurança, no caso de existir um constrangimento nas interligações a Espanha.
O nível de risco identificado resulta da conjugação do encerramento das duas centrais a carvão, desligadas desde 2021, com o adiamento para 2023 da entrada em operação do complexo hídrico do Alto Tâmega. Neste gap temporal, e apesar da entrada em operação de algumas centrais solares, a capacidade de produção nacional disponível pode não ser suficiente para abastecer picos de procura.
Nos cenários de maior stress avaliados nos relatório de segurança do abastecimento está prevista a adoção de medidas mitigadoras por parte da REN, que opera a rede, para garantir o equilíbrio do sistema, e que passam pela oferta — um pedido de apoio ao operador do sistema espanhol — mas também pela procura com a possibilidade de mini-cortes de fornecimento a grandes consumidores.
Este relatório é um documento anual produzido a partir das previsões e informações remetidas pela REN e aprovado pelo secretário de Estado da Energia, que avalia a capacidade de produção instalada e prevista, bem como das interligações e redes de transporte, e os cenários de procura que variam entre conservadora, ambiciosa e de stress. Quando se calcula a capacidade de produção, não se olha apenas para a potência instalada, mas também para o histórico da disponibilidade de recursos (água, vento e sol) associados a essas capacidades, o que permite incorporar já em parte o efeito de tendências climatéricas dos últimos anos, como a diminuição da chuva ou o aumento de temperatura.
Mas esses modelos não permitem antecipar fenómenos com um impacto potencial no sistema elétrico, como os que restão a acontecer. Em primeiro lugar, a crise energética e o aumento do preço do gás, agravado por incertezas geoestratégicas. Em segundo lugar, e com repercussões mais diretas em Portugal, um janeiro que é o segundo mais seco desde o ano 2000. Esta situação contribuiu para esvaziar as barragens e obrigou a APA (Agência Portuguesa do Ambiente) a impor restrições à produção hidroelétrica em cinco albufeiras desde o início de fevereiro justificadas pela necessidade de garantir o consumo de água para uso humano. A restrição será avaliada no final do mês, podendo ser estendida inclusive a outras centrais hídricas à medida que fevereiro passa sem chuva.
A seca fez cair o contributo da produção hidroelétrica e é, reconhece o Governo, o principal fator do aumento das importações elétricas de Espanha. A par das centrais térmicas, as grandes barragens são a única forma de produção de energia que permite armazenamento, são centrais despacháveis (o que quer dizer que estão disponíveis para produzir quando o sistema mais necessita (ou quando o preço é mais atrativo) e parar quando isso não acontece. Num sistema com cada vez mais energia renovável — e portanto intermitente (não previsível) — as grandes hídricas são fundamentais na gestão da segurança do abastecimento.
A seca é uma condicionante adicional à gestão do sistema elétrico num ano que já era mais desafiante do que os anteriores. A incerteza que rodeia o gás natural por causa da possibilidade de um conflito armado na Ucrânia também pode vir a afetar o funcionamento do sistema elétrico já que este combustível é usado nas centrais térmicas que servem de backup a uma oferta muito exposta a energia renovável.
Eventuais falhas ou os chamados apagões em sistemas onde há muita vigilância e monitorização — como o elétrico — raramente têm uma só causa. Resultam sim de uma combinação de fatores que podem vir do lado da procura, da oferta e até da capacidade das redes que ninguém previu. E o sistema está, neste momento, mais vulnerável do que esteve no passado. Tem mais renováveis e menos capacidade despachável (o carvão, o gás e as grandes hídricas), tem menos potência instalada porque há centrais que estão a demorar mais tempo que o inicialmente previsto a ligarem-se à rede e até o programado reforço da interligação com Espanha — no eixo Minho/Galiza — ainda não tem data oficial para ficar operacional.
Segundo explicação oficial da Redes Energéticas Nacionais (REN), o “estudo de impacte ambiental sobre Estudo Prévio da linha dupla Ponte de Lima-Fontefría a 400kV (troço português) encontra-se em avaliação pela Agência Portuguesa do Ambiente desde março de 2019, tendo decorrido de 15 de junho a 8 de agosto de 2020 o período de consulta pública em Portugal”.
Outros fenómenos que podem trazer mais stress ao sistema elétrico são a indisponibilidade imprevista de longa duração de centrais elétricas (por exemplo nucleares em Espanha ou até França), para além das já referidas limitações na interligação. Do lado da procura, um aumento do consumo induzido por uma onda de frio também poderia ter impacto, sobretudo se fosse associado a outros fatores. Para já, o tempo ameno que tem acompanhado a seca alivia o consumo.
APA diz que aposta nas renováveis conduz a novos equilíbrios no uso da água
Apesar de não ser inédita, a restrição imposta a cinco centrais hidroelétricas da EDP nunca tinha sido adotada com esta dimensão pela APA. A Agência Portuguesa do Ambiente representa o Estado nas concessões do domínio hídrico atribuídas aos produtores de eletricidade a partir de água. E cabe à APA monitorizar o nível das albufeiras e propor limitações. Ao Observador, a Agência do Ambiente refere que os títulos de utilização da água asseguram reserva de volumes necessários para usos prioritários, bem como um regime para situações excecionais como secas, cheias ou acidentes que permitem suspender os usos atribuídos, sem que daí advenha qualquer direito de indemnização, ficando ainda os seus detentores obrigados a respeitar as determinações da Comissão de Gestão de Albufeiras ou de outras autoridades.
Quando anunciou a medida, o ministro do Ambiente indicou que o objetivo era preservar água para o consumo humano para dois anos, mas Matos Fernandes reconheceu que a determinação foi por uma regra fixada pelo Governo e que não está escrita em qualquer lei.
O Observador questionou a APA sobre o número de vezes que esta restrição foi adotada no passado, nomeadamente em outras secas. Sem dar números, a Agência do Ambiente respondeu que “cada seca tem a sua magnitude e efeito e as situações são diferentes. Já houve restrições no passado à produção de energia, por exemplo em 2005 e 2017.”
Quanto aos critérios ou regras usadas pera definir os limites à exploração de água para produzir eletricidade, a APA assumiu uma ligação entre a aposta de Portugal na energia renovável e a necessidade de “novos equilíbrios” entre a necessidade de mitigar impactos da seca e conciliar outras utilizações.
Importa salientar que Portugal apostou nas energias renováveis e, por isso, novos equilíbrios de manutenção dos usos em ano de seca estão a ser adaptados para minimizar os efeitos da seca no ambiente e nos restantes setores utilizadores. O que podemos garantir é que o abastecimento humano é sempre prioritário a qualquer outro uso.”
Aliás, mesmo com as restrições impostas a cinco centrais hidroelétricas desde fevereiro pela APA, o operador do sistema pode reativar a exploração hidrolétrica se estiver em causa a segurança do fornecimento.
Para vários responsáveis locais, nomeadamente autarcas, o travão chega já tarde e culpam a produção hidroelétrica pela descida acelerada do nível das bacias a partir de janeiro. Este quadro teve um efeito especialmente dramático na barragem do Alto Lindoso, a primeira albufeira onde o queda abrupta do nível de água assustou as populações locais até do outro lado da fronteira quando reemergiu (imitando a ficção reproduzida na série Verdades Ocultas em exibição na RTP) uma aldeia inundada há décadas na altura do enchimento.
As imagens contrastam com o resultado da gestão que a EDP fez da mesma barragem na seca de 2017 onde, segundo informação da própria empresa houve a preocupação de evitar uma descida do nível das águas. “Ainda que fosse possível turbinar nestas alturas, a EDP Produção optou por manter a água acima dos níveis mínimos definidos nos contratos de concessão, tendo mesmo limitado a produção de eletricidade nalguns casos. Dessa forma, foi possível garantir que havia água nas albufeiras para dar resposta a usos prioritários: o consumo diário das populações e o regadio”.
O Alto Lindoso é uma das barragens com maior capacidade de produção da EDP e a grande profundidade a que estão instaladas as turbinas permite que a exploração hidroelétrica mesmo com um nível de água relativamente baixo. É também a menos usada para outros fins como o regadio ou o consumo humano, o que pode ajudar a perceber porque terá sido mais usada para gerar eletricidade.
Foi o fim do carvão ou preços muito altos que esvaziaram as barragens?
Num artigo de opinião publicado no Observador, o antigo diretor-geral da Energia defendeu que a maior exploração hídrica do que seria normal em períodos de seca era uma consequência da desativação das centrais a carvão. Segundo Mário Guedes, o fecho, que qualifica de “precipitado”, das centrais de Sines e Pego provocou uma subida das importações de energia elétrica, a partir de Espanha, mas também um maior recurso às barragens para compensar a saída do sistema de duas grandes centrais.
O artigo levou o Ministério do Ambiente a emitir um comunicado para contrariar o argumento dos milhões de euros que o aumento da importação de eletricidade estavam a custar ao país, sublinhando que a produção elétrica a partir do carvão também recorre a importações. O atual diretor-geral de Energia, que sucedeu a Mário Guedes (afastado por João Galamba quando este assumiu a secretaria de Estado da Energia em 2018), respondeu ao seu antecessor com uma opinião publicada no Observador.
Contestando a ligação entre o fim do carvão e as importações de Espanha, João Correia Bernardo cruza o histórico de importações de eletricidade e anos de seca para concluir. “Cai por terra, assim, o argumento de que as importações resultam do encerramento das centrais de carvão, quando é evidente a sua ligação com a seca e a reduzida pluviosidade”. Sublinha ainda que o país continua a ter centrais de ciclo combinado (gás natural) para garantir a potência despachável, mas a sua utilização é “ponderada em termos de custos para o sistema e para os consumidores, por comparação com o custo da eletricidade importada”.
O diretor-geral de energia reconhece “uma única vantagem” no carvão e que é “a capacidade de colocar potência na rede para responder a desequilíbrios de oferta e procura, nomeadamente nas pontas do diagrama de carga (no pico da procura). Esta situação está neste momento a ser compensada com importações de energia, enquanto as hídricas e as outras renováveis não conseguem responder”. E lembra a nova potência solar que será ligada em breve em resultado dos leilões realizados em 2019 e 2020 — embora a entrada destas centrais, tal como o Alto Tâmega, também tem sido adiada devido a circunstâncias atribuídas à pandemia.
Mas se a falta de carvão não é a culpada pelo esvaziamento súbito de algumas barragens, o sistema elétrico tem responsabilidades em aumentar a pressão sobre a produção hidroelétrica e por causa de outro fenómeno que tem vindo a agitar o setor desde o verão passado: o recorde de preços puxado pelo gás natural. Fontes do setor ouvidas pelo Observador apontam todas no mesmo sentido. Foram os altos preços do Mibel que puxaram pela produção hídrica mesmo quando já havia previsões para ausência de chuva anormal para a época do ano, contribuindo para o esvaziamento rápido das barragens em janeiro.
O gás natural é a tecnologia que marca o preço final de venda de toda a eletricidade e é também, depois de desligado o carvão, o grande backup de um sistema elétrico exposto à intermitência renovável, a par das já referidas importações de Espanha e da água armazenada nas barragens (que está em queda pela seca).
Mas ao contrário do que seria de esperar as centrais a gás natural produziram menos nos últimos meses do que em igual período do ano passado. Ou seja, em tese (e não estando indisponíveis por razões técnicas ou de manutenção) poderiam ter produzido mais para colmatar a falta do carvão e poupar a hídrica. Mas não o fizeram por uma razão de mercado. Não seriam competitivas com outras formas de produção, sobretudo com as grande hídricas. Sem ter de suportar os custos com combustível ou CO2, a produção hídrica é muito mais rentável e as elétricas aproveitam o preço anormalmente elevado no Mibel na casa dos 200 euros por MW para despachar a maior quantidade de energia, enquanto as cotações estão elevadas e existem recursos hídricos.
O que mudou em 2020?
Os últimos dois relatórios de segurança do abastecimento — de 2020 e 2021 — sinalizam que o potencial risco para a segurança de abastecimento identificado para este ano é pontual e resulta no essencial da desativação de duas centrais térmicas (a carvão) de grande capacidade, Sines e Pego, em 2021, e do atraso da entrada em operação da totalidade do complexo hídrico do Alto Tâmega que só deverá acontecer em 2023.
Já o relatório de 2019 concluía que, mesmo no cenário de maior procura (descrito como o cenário de stress), a evolução prevista para o ICP (índice de cobertura probabilística da ponta) estaria sempre acima do 1, já considerando o encerramento das centrais a carvão. Só que nesse cenário de stress, a entrada em exploração do Alto Tâmega estava prevista para 2021.
Para além de ser a maior barragem construída em 25 anos na Europa — com 1.158 megawatts de potência, quase tanto como a central de Sines e que aumentará em 6% a capacidade nacional — a produção hídrica no Alto Tâmega é também mais resiliente a situações de seca porque tem uma central reversível que, através da bombagem da água de Daivões para Gouvães, permite armazenar água quando a produção for maior e produzir eletricidade quando for menor.
Em 2020, este resultado muda por causa do atraso já então conhecido das barragens da Iberdrola. Apesar da primeira barragem já estar ligada à rede e à subestação, como anunciou a Iberdrola, neste momento a produção está em regime de testes e a total capacidade deste empreendimento não deverá estar disponível antes do próximo ano.
O relatório mais recente de 2021 conclui que, mesmo numa trajetória conservadora de procura, pode ser necessário ativar medidas mitigadoras, nomeadamente no caso de existirem limitações na interligação com Espanha. “Verifica-se que em 2022,o ICP com probabilidade de excedência de 99% é inferior a 1 (essencialmente consequência da desclassificação, em 2021, das centrais térmicas de Sines e do Pego), podendo ser necessária a aplicação de medidas mitigadoras para o cumprimento dos padrões de segurança de abastecimento”.
O ICP avalia a adequação da potência do sistema produtor para cobrir a ponta da procura de eletricidade. O ICP, com probabilidade de excedência entre 95% (uma ocorrência a cada 20 anos) e 99% (uma ocorrência a cada 100 anos), não deve ser inferior a uma (ocorrência) de forma a garantir a segurança de abastecimento.
Este cenário coloca-se no caso de existirem restrições nos mecanismos de mercado ou na capacidade de importação e no qual a “disponibilidade dos meios nacionais é essencial para a garantia de abastecimento de consumos”. Assim, até à entrada em serviço de capacidade adicional (as novas centrais solares em licenciamento, mas sobretudo o Alto Tâmega) poderá ser necessário recorrer a medidas do lado da oferta:
- Ativação de um programa de apoio ao operador de sistema espanhol
E do lado da procura:
- Redução do consumo de clientes industriais elegíveis. É uma referência às grandes empresas que beneficiavam do regime da interruptibilidade e cuja ativação foi fundamental para evitar um apagão em julho do ano passado. Mas este regime foi suspenso em outubro e ainda não se conhece a adesão e eficácia dos mecanismos sucessores;
- Deslastres (desligar) pontuais de consumos não prioritários como previsto nos protocolos entre operadores de rede e a distribuição, no caso de incumprimento das instruções de corte a grandes clientes referida no ponto anterior.