A mediatização que envolveu a partida para Madrid, onde a obra do pintor português esteve para ser vendida antes de viajar para Maastricht, cidade que, por sua vez, acolheu a feira de arte onde acabou por ser comprada a 10 de março, pautou um caminho que só podia ser mais badalado com uma apresentação pública do comprador ainda mais invulgar. Toda a comunicação social foi esta quarta-feira receber o anúncio ao Palácio da Ajuda, em Lisboa, pela boca do ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, na véspera de abandonar o cargo para o próximo Governo. O aparato e a pompa serviam para assinar um memorando de entendimento vago (não foi revelado o preço, não se sabe qual o primeiro museu nacional a acolher a obra e não foi garantida a classificação) que promete estudar as formas de exposição pública da obra-prima trazida para casa com surpresa e admiração pela Fundação Livraria Lello, de Avelino Pedro Pinto, empresário sediado em Leça do Balio, almejando também o prestígio que o mecenato costuma oferecer a quem o pratica a tão alto nível.
A notícia, avançada em primeira-mão pelo jornal Expresso, caiu com estrondo no meio das artes em Portugal. “Quem?”, foi a pergunta que percorreu museus, galerias e associações de antiquários, especialistas em arte antiga, críticos e historiadores de arte. A família Pedro Pinto, que desde 2015 detém a célebre Livraria Lello, no Porto, não era nada familiar a ninguém. A razão é óbvia: esta foi a sua primeira aquisição nestas andanças e não é “normal” começar-se com um negócio tão avolumado. A área de interesse do empresário e administrador do Centro Empresarial Lionesa é o imobiliário, detentor de vários prédios na Rua do Loureiro, no Porto, bem como, entre muitos outros, do Teatro Sá da Bandeira e do Mosteiro de Leça do Balio, um edifício do século XIV agora remodelado pela mão do arquiteto Siza Vieira, precisamente o local onde o quadro resgatado ficará depositado. E a área de interesse da Fundação ainda é vagamente “ajudar as pessoas a ler o mundo” e “fomentar o pensamento crítico”, nas palavras de Rita Marques, a presidente do seu conselho de administração.
A mesma responsável que, em declarações ao Observador, durante a apresentação pública de Descida da Cruz, não garante a continuidade de uma coleção de arte que podia então iniciar-se com esta primeira aquisição, preferindo apenas dizer que “as prioridades da Fundação serão geridas de forma ágil e criativa”. De resto, a compra, anunciada neste 20 de março, oficialmente e com pompa e circunstância, foi o resultado de uma “ação articulada com o Governo desde a primeira hora”, como esclareceu ao Observador no final da apresentação pública no Palácio da Ajuda o presidente da Museus e Monumentos de Portugal, Pedro Sobrado. Quando questionado, o ex-administrador do teatro São João, no Porto, só não explicou de quem partiu a ideia ou iniciativa para efetuar a transação: “Não revelo. Esta atuação pautou-se pela discrição e reserva”, disse Pedro Sobrado.
Mas não parece falar da mesma discrição que costuma caracterizar negócios deste tipo. “Estes negócios são normalmente muito discretos e sem o glamour que parece querer enredar este”, diz ao Observador Francisco Pereira Coutinho, vice-presidente da Associação Portuguesa de Antiquários. “As galerias que têm à venda este tipo de obras de arte sabem de antemão qual é a procura para elas e têm por hábito contactar de forma direta um conjunto de clientes potencialmente interessados”, explica ainda. “Os compradores de arte antiga são por norma gente que gosta de arte, que já tem esse gosto e que o fomenta com alguma regularidade. A arte antiga não é fácil”, garante Francisco Pereira Coutinho, que afiança que a mediatização do negócio costuma estar ausente destas transações por “questões de segurança”, mas também porque “Portugal é o país das invejas, onde se diz mal de tudo, e onde quem tem dinheiro é visto quase como um malfeitor”, tão diferente dos Estados Unidos “onde toda a gente apregoaria isto”.
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O antiquário, experiente neste tipo de transações, também sabe que a aquisição da peça de Domingos Sequeira teve um nível de exigência inferior para a galeria do que seria de esperar com outro comprador. “A galeria vendeu a este comprador porque foi provavelmente o que lhe exigiu o menor tipo de desconto. Nunca se paga o ‘asking price’, exige-se sempre um desconto.” De resto, o Observador sabe que, além do Estado português, cuja oferta de 850 mil euros foi recusada pela galeria espanhola Colnaghi, houve outra oferta da parte de um colecionador nacional, que garantia também o regresso da Descida da Cruz ao país, e que não foi tida em conta apesar de superar a do Governo.
Entre os especialistas no mercado de arte antiga, acredita-se hoje que Avelino Pedro Pinto protagonizou um negócio “fora da caixa” com um objetivo diferente. O prestígio aparece no topo da lista de interesses, mas também “a promoção” e a “promoção de uma região”, a sua, o que aliás este nunca escondeu nas entrevistas, poucas, que tem dado, onde confessa ter como objetivo “transformar o Porto e o Norte no local mais feliz para se viver” (Human Resources, 31 de maio de 2023), e para aí captar o maior número de talentos possível. “Manobra de promoção”, pois então, ou “jogada de marketing”, como intitulam em off, a ação mecenática de Avelino Pedro Pinto levada a cabo através da compra por mais de um milhão de euros do quadro de Domingos Sequeira não é alheia ao seu passado recente. Entre 1997 e 2001, este empresário, que agora “oferece” ao país a fruição de uma das suas maiores obras de arte, com o depósito do quadro no Mosteiro de Leça do Balio, foi proprietário com a mulher, Aurora Pinto, da Sociedade Nacional de Leilões, alvo de um processo judicial que juntou leiloeiras e liquidatários, e que levou o Ministério Público a imputar-lhes centenas de crimes de corrupção ativa e peculato, tendo sido condenados pelo Tribunal de São João Novo, em janeiro de 2009, a uma pena de 17 e 14 anos de prisão efetiva respetivamente, da qual foram ambos posteriormente ilibados.
Um investimento também, obviamente, Descida da Cruz vai juntar-se ao rol de investimentos avaliados em milhões de euros que o casal, a que se aliam os dois filhos, António e Francisca Pedro Pinto, têm vindo a realizar no Porto desde 2016. No Porto, de resto, brinda-se ao novo “colecionador” com “chapeau”, dizem vários outros colecionadores ao Observador pelo telefone. “É bom ter comprado o quadro e melhor ainda pô-lo em depósito”, sussurram galeristas também em off. A associação aos comentários em torno de Pedro Pinto ainda não é desejável.
Sem papas na língua só quem do mercado da arte tem uma visão alargada e, a partir de fora, há muito trabalha em prol da arte portuguesa: “O que aconteceu representa um falhanço para os portugueses e um enorme falhanço carregado de vergonha para a arte portuguesa. Nós não ganhámos, nós perdemos! E todo este fogo de artifício ainda é mais vergonhoso”, afirma Philippe Mendes, o galerista que trabalha a partir de Paris e o primeiro a oferecer ao Museu do Louvre uma pintura de Josefa de Óbidos (1630-1684). O luso-descendente considera que a forma como Portugal e o Estado português lidaram com a saída do país e consequente venda da obra de Domingos Sequeira “veio estragar completamente o trabalho de internacionalização da arte portuguesa que começava a dar frutos. A imagem da arte nacional caiu por terra”.
Philippe Mendes dá conta ao Observador das mensagens escritas e telefonemas que recebeu de muitos curadores internacionais que se querem afastar do contacto com a arte portuguesa precisamente por perceberem que daí podem advir “problemas de política externa e acidentes diplomáticos tristes, perigosos e tendenciais”. Uma consciência que se cria a partir da “tensão e da cristalização mediática e política” gerada com a polémica “falha dos serviços”. O galerista parisiense fala abertamente do interesse do Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque, pela pintura portuguesa. “O MET considerou muito a aquisição da obra. Falei com eles até março, até que me disseram ‘vamos deixar cair’. Era impossível negociar debaixo de tanta atenção mediática e de declarações oficiais atrás de declarações oficiais. Ninguém negoceia assim. O Louvre também estava interessado e desistiu. Isto só é uma grande jogada para a Fundação que comprou a obra.”
O galerista vai mais longe: “Depois do erro ter permitido a saída do quadro, o lugar certo de Domingos Sequeira não é no Norte de Portugal. Bom para a nossa arte era o ministro da Cultura tem anunciado hoje que a Descida da Cruz entrava nas galerias de um grande museu internacional. É assim que se deve pensar a Cultura associada à Economia e ao Turismo. Que uma obra-prima portuguesa no MET permita trazer gente ao país para ver outra obra-prima do mesmo autor no Museu Nacional de Arte Antiga.”
Philippe Mendes põe o dedo na ferida de um “país que trabalha a pensar curto”. “A Cultura não tem prazo, o que tem prazo curto é a política. Mas continua a pensar-se a Cultura como forma de servir a política. E isso desespera-me!” O proprietário da Galerie Philippe Mendes questiona o futuro, pergunta pela Sala de Pintura Portuguesa no Museu do Louvre, que vê ser adiada por questões como esta e pergunta pelos empréstimos que muitas instituições de renome deixarão de pedir aos museus portugueses com receio de se meterem em polémicas ou escândalos com a saída das peças. “Dou os parabéns apenas à entidade compradora da peça, que investiu bem e vai valorizar esse investimento. O único que pode cantar vitória!”, conclui Philippe Mendes.