Não é o facto de um ciclone ter atingido a costa de Moçambique que torna impressionante a devastação provocada pelo Idai. Aquela região de África costuma ser fustigada por ciclones nesta época do ano, entre janeiro e março, porque a água do mar aquece no verão, alimentando as tempestades. O que foi impressionante foi a destruição que este ciclone provocou. Idai matou centenas (talvez milhares) de pessoas e destruiu também milhares de infraestruturas. Pode mesmo ter sido o fenómeno natural mais destruidor do hemisfério sul. E o motivo é o seu estranho e raro “comportamento errático”, explicou Alfredo Rocha, professor e investigador da Universidade de Aveiro, ao Observador.
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“Os furacões (EUA), tufões (Ásia) e ciclones (África) são o mesmo fenómenos mas recebem nomes diferentes conforme a localização geográfica deles. E todos acompanham com um pouco de atraso o verão do hemisfério onde surgem, porque a água fica mais quente e demora a aquecer”
Alfredo Rocha, professor e investigador da Universidade de Aveiro
Os ciclones formam-se no Oceano Índico. “Todos os anos há um ou outro ciclone a nascer assim”, contabiliza o professor. Depois podem acontecer quatro coisas: a tempestade pode dispersar-se antes de encontrar terra; passar a norte de Madagáscar; aterrar nesse país mas dissipar-se porque perde força; ou então atravessar Madagáscar e entrar no canal de Moçambique. No caso do ciclone Idai, o percurso foi este último. E não foi o primeiro a fazê-lo: “São eventos extremos e pouco frequentes, mas não são anormais”, sublinha Alfredo Rocha.
Anormal mesmo foi o comportamento do Idai. “Errático”, adjetiva o investigador: “Há algum tempo que tenho vindo a seguir a evolução do ciclone Idai e estranhei que as previsões quanto ao seu comportamento se fossem alterando dia após dia. Este ciclone esteve vários dias parado em terra. Uma situação muito pouco comum porque normalmente quando os ciclones entram em terra perdem mais força. Mas o Idai chegou a ventos máximos 200 quilómetros por hora e a sobre-elevação do nível do mar foi entre dois e dois metros e meio”.
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O ciclone Idai fez ainda uma outra coisa rara: um circuito em U, ou seja, entrou duas vezes em terra. A primeira vez foi a 4 de março, quando matou 66 pessoas e feriu outras 111. Nessa altura contabilizaram-se quase seis mil casas destruídas, 15,5 mil edifícios afetados e 168 mil hectares de terras de cultivo inundadas. Depois voltou para dentro do mar, onde se alimentou das altas temperaturas da água. Só regressou 11 dias depois, a 15 de março. E aí estava tão mais poderoso que o governo estimou que tenha causado a morte de “cerca de mil pessoas”.
Idai atingiu a categoria 3, mas o que o tornou particularmente perigoso foi o facto de ter ficado praticamente parado durante “quatro ou cinco dias”. “O ciclone é uma estrutura muito grande. Mesmo quando o centro dele estava em cima do mar, o Idai já estava a produzir muita chuva em terra”, explica Alfredo Rocha. Tudo porque a tempestade estava a levantar a água do oceano e a arrastá-la para dentro de Moçambique. Fê-lo durante todo o tempo em que estagnou em Moçambique. Começou a chover a 9 de março. Só parou a 16. Numa situação normal, tudo já devia estar terminado, no máximo, a 12 de março.
De nada valeu o facto de o ciclone ter enfraquecido quando alcançou terra — algo que costuma acontecer porque, não estando em contacto com água quente, a tempestade perde o motor que a alimenta. “Quando entrou em Moçambique, o Idai transformou-se em tempestade. Mas continuou a chover muito”, descreve Alfredo Rocha. E choveu tanto que, logo que entrou no Zimbabué, a água dos oceanos foi depositada nos rios, que ficaram sobrecarregados.
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Ora, numa situação normal, o facto de a água ter entrado dentro dos rios seria bom sinal porque ela seria encaminhada novamente para o oceano. Só que, no caso do ciclone Idai, a quantidade de água despejada do mar para dentro de terra foi tão grande que as margens do rio colapsaram e o fluxo alargou. A consequência é a que mostram as imagens vindas de Moçambique: centenas de milhares de hectares de terra, de cultivo e urbanas, completamente submersas. Uma área que já corresponde a metade do território de Portugal.
A piorar ainda mais o cenário está o facto de a costa de Moçambique ser curva: “Os ciclones empurram a água do mar em direção à costa, fazendo com que o nível aumente em entre três e quatro metros. Chama-se a isso ‘sobre-elevação do nível da água do mar de origem meteorológica’. No caso de Moçambique, como a costa tem forma de concha, a água acumula-se lá durante mais tempo. E impede que á agua dos rios escoe para o mar”, descreveu Alfredo Rocha. Moçambique ficou assim transformado num verdadeiro lago, como mostram as imagens de satélite.
Idai estava a ser vigiado há duas semanas
Há três condições fundamentais para que um ciclone tropical se desenvolva, explica Alfredo Rocha ao Observador.
Primeira: o oceano tem de estar quente. A água tem de atingir temperaturas mínimas na ordem dos 26,5ºC ao longo de uma profundidade que não pode ser inferior aos 50 metros. De acordo com Chris Landsea, climatologista do Centro Nacional de Furacões — responsável por vigiar os furacões nascidos no norte do Oceano Atlântico — esse calor é “o motor dos ciclones tropicais” como o Idai. “O que as temperaturas dos oceanos fazem é aumentar a evaporação da água, que depois sobe na atmosfera e condensa, passa a nuvens e liberta muito calor”, acrescenta Alfredo Rocha.
Segunda: não pode haver muito vento. Os ventos fortes registados entre a superfície do planeta e as partes mais superiores da troposfera “interrompem o ciclone tropical e podem prevenir a formação dele”: “Se um ciclone tropical já se tiver formado, correntes de ar verticais muito fortes podem enfraquecê-lo ou destrui-lo”, explica o Centro Nacional de Furacões. Ou seja, os ventos têm de ser manter fracos, caso contrário as nuvens que compõem o ciclone dispersam, destruindo a estrutura vertical deles, esclarece Alfredo Rocha.
Terceira: tem de estar a uma distância mínima de pelo menos 500 quilómetros do equador. E é assim, explica o professor da Universidade de Aveiro, por causa de um fenómeno chamado Força de Coriolis. Segundo o glossário do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, esse é um efeito que “desvia as partículas de ar para a direita no hemisfério norte e para a esquerda no hemisfério no sul” e que “é máxima nos polos e praticamente nula no equador”. Sem a força de Coriolis, a baixa pressão atmosférica que está na origem dos ciclones não pode ser mantida porque o ar tende a movimentar-se para dentro dessa zona de modo a compensar a falta de partículas atmosféricas.
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Essas três condições alinharam-se pela primeira vez a 1 de março. Foi o instituto meteorológico francês que reparou na tempestade pela primeira vez, provam os registos publicados no “Boletim para a Atividade Ciclónica e Tempo Tropical Significativo no Sudoeste do Oceano Pacífico”. À época, Idai ainda não tinha nome. Nem tirava o sono a ninguém: o documento dizia que “nos próximos cinco dias, não há risco de desenvolvimento de uma tempestade tropical moderada no norte do Canal de Moçambique”. Mas tudo iria mudar ao fim desses três dias.
Só a 4 de março, no dia da primeira aterragem que o Idai fez em Moçambique, é que os alertas soaram. Em vez de um mero boletim, os franceses decidiram lançar o primeiro aviso de uma depressão tropical: “A depressão tropical 11 deve aterrar rapidamente na costa moçambicana durante o dia de segunda-feira”, escreveram os meteorologistas. Mas continuaram pouco preocupados: a circulação da depressão era “tímida”, adjetivaram. “A implementação relativamente tardia da circulação no sentido do ponteiro dos relógios não permitirá que o sistema intensifique significativamente, apesar do potencial significativo de energia do oceano”, concluíram então.
O que haveria de mudar em poucas horas. O segundo aviso chegou seis horas depois do primeiro, ao meio-dia de Portugal Continental, mais duas horas em Maputo: “A depressão tropical 11 deve chegar a terra nas próximas horas na costa moçambicana. A convecção associada com o sistema continua bastante forte, trazendo uma quantidade notável de chega na região da aterragem, perto da cidade de Quelimane”. Idai ainda não tinha sido batizado nesta altura. Mas mataria mais de 60 pessoas logo nessa altura.
Idai enfraquecia e fortalecia sem dar aviso. Tanto que no primeiro relatório apresentado a 15 de março, na segunda vez que entraria em terra, dizia-se que deveria “enfraquecer rapidamente”. Só depois é que França voltou a dar um novo alerta: “Idai continua a ser um ciclone tropical extremamente perigoso”. Sim, devia enfraquecer, mas “mesmo que os ventos diminuam significativamente, continuará a trazer chuva forte ao Zimbabué e à área da frente com Moçambique até ao início da próxima semana”. Mais tarde, as previsões seriam atualizadas: a chuva só deve dar tréguas no domingo, dia 24 de março.
????⚠️ #IdaiCyclone
Está prestes a atingir #Moçambique, o ciclone tropical #IDAI o sétimo da temporada no Oceano Índico. Com rajadas de vento próximas a 200 km/h, chuvas torrenciais e ondas até 10 metros de altura. ????⚠️ pic.twitter.com/eqiIdwuST9— Meteored | Tempo.pt (@MeteoredPT) March 14, 2019
Ciclones podem ser mais destrutivos por causa das alterações climáticas
A comunidade científica divide-se sobre até que ponto é que as alterações climáticas estão a ter alguma influência no número e no potencial de destruição dos ciclones. O Laboratório de Dinâmicas de Fluidos Geofísicos, uma instituição inserida na Administração Oceânica e Atmosférica Nacional, afirma que “é prematuro concluir que as atividades humanas – e particularmente as emissões de gases de efeito estufa que causam o aquecimento global – já têm um impacto detetável na atividade de ciclones tropicais a nível global”.
Se tiverem é fácil entender porquê. As alterações climáticas a que estamos a assistir são sobretudo de aquecimento global: a temperatura média do planeta subiu 1ºC em relação às medições anteriores à última Revolução Industrial. E isso pode influenciar o comportamentos dos ciclones tropicais por causa do aumento da temperatura da água dos oceanos, que acontece porque a energia térmica acumulada na atmosfera é transferida para o mar. “Não há nenhum estudo conclusivo nesta região do planeta, mas a intensidade dos ciclones tem vindo a aumentar e espera-se que continue com as alterações climáticas”.
Ora, uma das condições para a formação de ciclones é a tal temperatura a que a água do oceano tem de estar. Para que nasça um ciclone como o Idai é preciso que o oceano atinja temperaturas mínimas na ordem dos 26,5ºC ao longo de uma profundidade que não pode ser inferior aos 50 metros. Quanto mais alta for essa temperatura, mais potente é “o motor” que alimenta as tempestades. Portanto, se essa temperatura aumentar, o potencial de destruição dos ciclones aumenta com ela.
É isso que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas avança num estudo de 2013 sobre esse assunto. E é isso que Friederike Otto, investigador do Instituto de Mudança Ambiental da Universidade de Oxford, sublinha em entrevista ao The Guardian: “Há três fatores a ter em conta em tempestades como esta: chuva, tempestade e vento. Os níveis de precipitação estão a aumentar devido às alterações climáticas e os surtos de tempestades são mais graves devido ao aumento do nível do mar”, afirma.
Paulo Ceppi, do Instituto Grantham do Imperial College London, é ainda mais peremptório: “Existe uma ligação direta entre o aquecimento global e a intensidade do ciclone. Precisamos fazer todos os esforços para seguir as metas do acordo de Paris de permanecer abaixo de 1,5ºC de aquecimento global, a fim de minimizar futuros aumentos na severidade das tempestades tropicais”, avisa.
Mas nem toda a comunidade científica concorda, sobretudo no que toca à quantidade de ciclones. Um estudo publicado em 2014 pelo International Journal of Climatology sugere não haver provas de que o aumento das temperaturas possa levar ao aumento da frequência de tempestades tropicais. Mais: depois de analisar 66 anos de ciclones no sudeste africano, os cientistas até dizem ter percebido que o número de ciclones que chegou a terra até diminuiu.
No entanto, os dois lados da barricada concordam que são precisas mais investigações para chegar a conclusões mais fundamentadas.
Também por isso há poucas certezas sobre Portugal e da possível repetição de tempestades como a Leslie que no ano passado devastou a zona centro.
O que o futuro tem reservado para Moçambique?
As contas mais recentes, anunciadas esta quarta-feira pelo Instituto Nacional de Gestão de Calamidades, responsável pela assistência em desastres de Moçambique e depois partilhadas pela UNICEF, dizem que a passagem do ciclone Idai já fez 202 mortos, 1.416 feridos e que afetou um total de 92.561 pessoas.
Mesmo assim, ainda há mais de 76 mil pessoas em risco. A cidade da Beira, província de Sofala, é uma das mais afetadas. Mas o caso mais crítico está um pouco mais a norte, em Dondo, onde 10.710 pessoas foram afetadas pela catástrofe. Os 10 centros montados na cidade para abrigar quem perdeu a casa — mais de 11 mil foram totalmente destruídas e 274 mil hectares de cultivo foram perdidos — já recebeu 4.357 pessoas.
O pesadelo está longe de acabar. A subida do volume de água está a contribuir para que as barragens fiquem sobrecarregadas e as comportas podem ser abertas em breve para evitar inundações a montante. “O grande drama é haver barragens que não resistem à quantidade de água. Portanto pode ser preciso abrir as barragens. Ou então as barragens podem rebentar por não terem sido abertas”, sublinhou, em declarações à TSF, o professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Pedro Miranda, doutorado em meteorologia.
E acrescenta: “Se houve um período de chuvas em que se acumulou muita água e se encheram as barragens já não há capacidade de reserva. A situação depende também do azar. As barragens têm um limite e isto pode ter acontecido já com o sistema sobrecarregado, o que obriga a aberturas e descargas. Agora, fazer descargas num sistema já saturado e com torrentes de lama é muito perigoso”.
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— Paulo GF (@_heim01) March 20, 2019
Outro problema são as doenças. João Antunes, responsável pelos Médicos Sem Fronteiras (MSF), explicou ao Observador que o facto de as chuvas continuarem depois da destruição de casas faz com que a população esteja mais exposta ao frio, levantando a possibilidade do aparecimento de casos de pneumonia. Além disso, “a falta de condições sanitárias e a ausência de água potável vai certamente potenciar diarreias e a proliferação de cólera“, disse.
O Instituto Nacional de Meteorologia (INAM) em Moçambique emitiu um aviso laranja para quatro províncias — Sofala, Manica, Zambézia e Niassa — por previsões de chuvas fortes ou muito fortes até à meia-noite de quarta-feira. E, pelo menos até sexta-feira, podem registar-se rajadas de vento muito fortes e trovoadas severas. É que o perigo ainda não se dissipou. É certo que Idai enfraqueceu e passou de um poderoso ciclone de categoria 3 — o maior a atingir Moçambique desde o Idowa em 2008 — para uma tempestade tropical. Mas ainda está vivo. E já provou ser imprevisível.
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