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[este especial foi publicado originalmente em junho de 2020 e atualizado a 19 de julho de 2022, a propósito da morte de Maria de Lourdes Modesto]
Professora, gastrónoma, diva e rosto dos primórdios da televisão em Portugal. Há mais de seis décadas, Maria de Lourdes Modesto (que morreu a 19 de julho de 2022, aos 92 anos) disseminou a arte de cozinhar por milhares de lares, mas também lhes serviu numa bandeja as tradições e idiossincrasias da culinária portuguesa. Aos 90 anos, feitos neste primeiro de junho de 2020, continua a ocupar o lugar que é seu por direito — o de figura canónica, respeitada por chefs e críticos.
Em 1982, publicou “A Cozinha Tradicional Portuguesa”, a bíblia da gastronomia regional do país, comparado ao peso do guia de Escoffier em França. Escreveu outros títulos, assinou artigos na imprensa e redigiu críticas gastronómicas, feitas com um rigor transversal a todas as cozinhas, embora sempre tenha sido a tradicional e familiar o seu estandarte.
Há quatro anos, a rainha da gastronomia nacional tornou públicas mais de 1.500 receitas, enviadas por telespetadores da RTP de todo o país. São a prova de uma adesão massiva ao repto lançado pela antiga professora, em 1961. Foi a primeira pessoa a cozinhar na televisão em Portugal. Culinária, o programa que apresentou durante 12 anos, não trouxe apenas pratos e alimentos para o horário nobre. A sua naturalidade foi inédita e marcou um novo tom na forma de comunicar em televisão — “que era só engravatados, muito à séria”, como contou numa entrevista ao Observador, em julho de 2016.
Aos profissionais deixou uma base de trabalho a todos os que têm a pretensão de trabalhar com a tradição ou partir dela para criar novas experiências. Acima de tudo, sempre quis ser útil e um canal de transmissão de conhecimento. De facto, poucos serão os portugueses que, direta ou indiretamente, não terão aprendido com Maria de Lourdes Modesto.
Olhos grandes, eyeliner preto e a caminho da TV
Nasceu a 1 de junho de 1930 e não, nada fazia prever que Maria de Lourdes fosse seguir uma carreira ligada a cozinha. Alentejana de Beja, em pequena, comia o que lhe “punham à frente”, como recordou ao Observador. “Cozinhados era uma coisa que eu não achava graça nenhuma” — mas o mesmo não se podia dizer dos trabalhos manuais, conjunto de labores onde revelou cedo ter uma aptidão extraordinária.
Aos cinco anos, já dominava o complexo ponto ajour, proeza que fazia dela o centro das atenções. A técnica, aprendeu-a com as freiras, mas o jeito era o da mãe, que não era grande cozinheira. Ainda assim, não foi educada para ser uma fada do lar. Chegou a crer ser artistas: umas vezes de teatro, outras vezes de circo. Com o passar do tempo, foi alimentando o desejo de trocar o interior pela cidade grande. Filha de pais separados e com dois irmãos, foi à mãe que pediu permissão para ir estudar para Lisboa.
Com 17 anos, rumou à capital para tirar um dos novos cursos destinados às jovens raparigas, o de Educadora de Economia Doméstica. E é claro que a culinária fazia parte do plano curricular. “Foi aí que eu vi que cozinhar era uma coisa que se aprendia e até podia ser interessante. Não quer dizer que eu tenha sido uma muito boa aluna […] De maneira que eu lavei alguma loiça, decorei alguns pratos mas não se pode dizer que tenha cozinhado muito”, admitiu.
O curso já antecipava a vocação: ensinar. Nessa altura, morava num lar da Mocidade Portuguesa, de onde, todos os dias e em grupo, se dirigia para as aulas, no Liceu Maria Amália. Fora do horário das aulas, as saídas eram vigiadas, sujeitas à hipocrisia da época, como reconheceu mais tarde. Mas na cabeça, a jovem Maria de Lourdes trazia uma lista de prioridades bem definida e no topo estavam o trabalho e a tão desejada segurança material. A visão não demorou a dar frutos e, quatro anos depois de se mudar para a capital, começou a dar aulas no Liceu Francês Charles Lepierre.
A instituição procurava alguém desempoeirado, mas o edifício não era o que hoje se conhece. A escola ocupava o Palácio Braancamp, perto do Largo do Rato, e Maria de Lourdes transmitia alguns dos conhecimentos adquiridos no curso na qualidade de professora de Trabalhos Manuais. “É como eu gostava de ser lembrada, como professora. Porque ainda hoje, se me surge a oportunidade, gosto de ensinar”, recordou ao Observador.
Os oito anos passados no liceu perduraram como um momento feliz de uma longa e profícua carreira. Por ser solteira, as alunas começaram por tratá-la por Mademoiselle Modesto, mas não gostou. Pediu autorização para se tornar exceção e passar passar a ser simplesmente Maria de Lourdes. O nome pegou. “Foi uma revolução, mesmo numa instituição toda para a frente como o Liceu Francês. Nunca nos tinha passado pela cabeça tratar uma professora pelo nome”, partilha Maria João Cortês, uma antiga aluna que se tornou amiga.
Recorda até hoje o trato simpático da professora Maria de Lourdes, mas também as aulas de culinária organizadas pela Mocidade Portuguesa e dadas por ela, onde se inscreveu sem pensar duas vezes. Coq au vin ou quiche lorraine foram as primeiras receitas e, embora não tenha seguido carreira na cozinha, o gosto ficou lá. “Fomos sempre muito próximas. Na televisão, ela quis mostrar num dos programas que era muito fácil fazer massa folhada em casa. Então convidou-me para ajudar, devia ter uns 14 anos”, relembra.
Numa inusitada estreia em palco, foi como parte do elenco de Monsieur de Pourceaugnac, peça de Molière, que deu nas vistas da RTP. O papel era “muito interessante”, a produção não era profissional. Fazia parte da disciplina de Literatura Francesa — “eu era a única portuguesa em cena e a peça era representada em francês. O papel que eu tinha era um papel que me dava muita possibilidade […] era uma mulher um bocado regateira e assim”, recordou.
Maria de Lourdes Modesto. “Cozinhados era uma coisa a que eu não achava graça nenhuma”
Na plateia estavam elementos da estação pública de televisão, acabada de nascer. Convidaram-na, mas ela não aceitou logo. “Isto passou-se em 1958. A televisão tinha começado em 1957 e eu tinha a minha vida muito bem arranjada. E não se sabia muito bem o que é que era a televisão e como é que iria ser aceite uma professora estar na televisão. Resisti 15 dias e durante esses 15 dias houve uma insistência grande da RTP para eu ir trabalhar para lá”, relatou.
O impulso de ensinar e de chegar a uma audiência maior falou mais alto que o preconceito da altura em relação quem trabalhasse no meio artístico e a televisão estava incluída. Aceitou o convite, mas limitou a exposição a “uma coisa para as mulheres”. Dito e feito. Depois de ter visitado os estúdios, onde viu uma emissão televisiva pela primeira vez, começou com uma rubrica de culinária dentro de um programa feminino. A estreia pode ter sido tímida, mas a ascensão seria meteórica. A rapariga alta, magra, de cabelo curto e olhos grandes, com eyeliner preto, não demoraria muito até cair nas graças do público português.
Culinária: a naturalidade em televisão
Sem nenhuma relação com a cozinha, a não ser uma sensibilidade especial para empratar, Maria de Lourdes era a nova menina bonita da televisão. Mais do que um rosto empático, foi o à vontade à frente da câmara que, depois do entorpecimento inicial, mais brilhou. A 15 de maio de 1958, uma Mademoiselle Modesto de 27 anos estreou-se numa emissão em direto, momento que mais tarde chegou a descrever como “uma coisa terrível”, numa entrevista feita por Anabela Mota Ribeiro para a revista DNa, do Diário de Notícias.
Nós as mulheres era o nome do programa, reflexo de uma sociedade que dirigia os procedimentos culinários, entre muitos outros ligados à vida do lar, em exclusivo ao público feminino. A prática para estar, agir e falar em frente a uma câmara era nula. “Eu tive uma branca porque me disseram que não olhasse para o monitor […] Mas eu não resisti. Olhei para lá e não percebi, na prática, o que é que estava ali a fazer. E saí de campo”, revelou.
Num ápice, foram várias as imagens que lhe passaram pela mente — os pais das alunas a assistir ao programa e a própria mãe, que tinha ido de propósito para um café depois de ter recebido um telegrama da filha que dizia: “Veja televisão hoje nove horas”. O assistente de serviço tinha assistido ao ensaio e sabia bem qual o passo seguinte — “Pegue no ovo, pegue no ovo”, disse-lhe. “Peguei no ovo […] Então disse: posso não saber representar, mas vou mostrar que sei arranjar as alcachofras”.
Sim, alcachofras. As intrigantes alcachofras nas quais, no Portugal de há 60 anos, a maioria das pessoas nunca tinha ouvido falar. Razão de sobra para que Maria de Lourdes Modesto fizesse delas o seu ingrediente de estreia — “[…] isso contemplava aquela única justificação que eu encontrava para ir para a televisão que era a difusão de conhecimentos”, segundo explicou ao Observador, em 2016.
Quando pegou uma pétala da alcachofra, a passou pelo molho e provou, soltou um espontâneo “hmm, é bom”. A naturalidade com que quebrou a regra da encenação televisiva foi uma lufada de ar fresco num universo de “engravatados”. A cozinha estava na televisão, mas não com a solenidade do Telejornal. No dia seguinte, o jornalista Mário Castrim fazia referência a “uma rapariga de olhos esbugalhados”. Sem lhe mencionar o nome, no texto ressaltou o agrado e a surpresa perante “alguém que mostrava como se devia fazer televisão”, segundo recordou mais tarde a própria em 1985.
Domingos Mascarenhas era, na época, o diretor de programas da estação pública de televisão. Atento ao episódio das alcachofras, quis saber quem era a figura. Disseram-lhe que a nova rapariga não tinha vindo apenas para cozinhar, mas que iria fazer outras coisas. A resposta foi imediata: “Não vai fazer, não. Ela só vai cozinhar”.
Da cozinha francesa à descoberta do receituário português
Na memória, ficaram as ânsias do pessoal técnico para, terminado o programa, poderem provar a iguarias preparadas. O nome da rapariga sensação da RTP pode ter escapado ao crítico, mas tornou-se rapidamente num dos mais sonantes da primeira e única estação de televisão portuguesa, juntamente com João Villaret, com o também recém-chegado José de Sousa Veloso e com José Fialho Gouveia.
Este último, segundo confidenciou a própria ao Público em 2002, era um dos maiores apreciadores dos seus cozinhados. Certo dia, ficou rendido a uma lebre à Bulhão Pato acabada de fazer. “Como, no final do programa, quem conseguisse chegar mais depressa ao prato é que o levava, o Zé Fialho foi de uma rapidez incrível mas, por pouco, não deixou a mão ser apanhada pela câmara”, recordou na altura.
Culinária, o programa próprio, chegou nesse mesmo ano, em 1958. Havia quem achasse que era um desperdício tê-la numa mera rubrica e a jogada foi passá-la diretamente para o horário nobre e tê-la a partilhar uma receita durante 20 minutos. O ordenado era de 400 escudos (chegou aos 1.500, em 1970) e o programa que começou por ser quinzenal acabou por se tornar diário. Se Maria Helena Varela Santos era tida a cara mais bonita do canal, Maria de Lourdes Modesto era a graciosa e cativante comunicadora. Porém, também ingénua.
Fenómeno de popularidade, recebia “caixotes de correspondência”, com direito a algumas “cartas desagradáveis”. Em alguns casos, a aparente inocência da prosa escondia o resultado mais perverso da visibilidade pública. Como quando um telespectador discorreu sobre o “bom uso do espeto”, tradição mantida por avô e pai. A leitura foi interrompida por gritos vindos da régie: “Calem-me essa mulher. Ela é louca. Ainda não se apercebeu do que está a ler”.
A par com o sucesso, as críticas. Se por um lado, Modesto era um figura acarinhada, que além de correspondência recebia aventais costurados pelas telespectadoras de todo o país, por outro era apontada pela sua cozinha elitista de origem francesa. Na realidade, não tendo sido criada para ser uma fada do lar, era a ementa que dominava. As receitas francesas podiam aguçar a curiosidade das donas de casa, mas os ingredientes eram caros para a maioria da população portuguesa. Num congresso da especialidade, chegou mesmo a ser apelidada de “inimiga número um da cozinha portuguesa”.
Coincidentemente, pouco tempo depois da estreia em televisão, Maria de Lourdes recebeu uma bolsa para estudar Literatura Contemporânea Francesa, na Sorbonne, em Paris. Aceitou-a e andou de avião pela primeira vez. Por cá, além da viagem ter sido notícia nos jornais, a RTP colocou um cozinheiro em substituição da nova locutora. Não pegou e a estrela acabou por voltar, terminados os estudos, para apresentar o programa.
A família e a vida em casa
Foi depois de regressar que, nos bastidores da televisão, conheceu Carlos Assis de Brito, o homem com quem haveria de casar. Era um cavalheiro de pés bem assentes na terra, responsável pela compra dos direitos de algumas das séries internacionais mais populares das décadas seguintes, de Bonanza a Casei com uma Feiticeira. No refeitório da RTP, lá estava ele — sentado à mesa e a comer de garfo e faca, imagem que impressionava a jovem locutora.
Uma “figurinha gentil”, nas palavras de Carlos, durante uma entrevista à RTP, em 2011. Passaram-se semanas até que chegassem à fala um com o outro. Ele, segundo disse, “não tinha graça nenhuma”. Ela, que a princípio era só mais uma, acabou por lhe chamar a atenção. O namoro começou ao fim de alguns meses e, para Assis de Brito, resultou numa nova alcunha. Na RTP começou a ser conhecido como “petisco” — “era pequenino e ligava com a culinária”. Maria de Lourdes Modesta ficou viúva em 2013.
“O pai era muito educado e ela começou a achar-lhe graça”, conta Nucha, a única filha do casal, ao Observador. Nasceu em 1961, três anos depois do primeiro encontro, e definiu cedo aquele que seria o seu canto atrás das câmaras. Nunca se deixou fascinar, nem pela televisão, nem pela cozinha, mas no que toca a esta segunda foi lhe ganhando o gosto.
“Para mim não era a Maria de Lourdes Modesto, era a mãe”, afirma. Ainda assim, não escapou ao destino de ser um dos vários braços direitos da já então reputada apresentadora. Primeiro na televisão, mais tarde para os livros, todas as receitas eram experimentadas em casa ou na cozinha que depois veio a ter à disposição. Nucha, como Maria Manuela Assis de Brito gosta de ser tratada, fez parte de inúmeros testes.
“A mãe sempre teve empregadas, mas mesmo assim cozinhava bastante em casa e eu tinha de ajudar, não havia hipótese. Era muito rigorosa, não havia cá invenções, tudo era feito com conta, peso e medida. Há pessoas que fazem as coisas a olho, lá em casa nunca foi assim, era tudo pesado”, conta, recordando uma mulher “zangadíssima”, sempre que vê alguém cortar um queijo pela parte de cima. Os fins de semana eram de casa cheia e com a mesa posta à altura. Recebiam-se amigos, por vezes atores estrangeiros das séries que o pai negociava.
Ver a mãe sair de manhã para trabalhar e chegar ao final do dia era normal para Nucha, mas era este o retrato da típica família portuguesa na década de 60. As mães das amigas, por exemplo, eram todas donas de casa, contudo, só no escritório da mãe, trabalhavam mais cinco ou seis senhoras.
Nucha sempre permaneceu nos bastidores da grande maioria das produções. Ia às compras e levava sempre duas listas — a dos ingredientes para as receitas e a dos produtos para se fotografarem. Segundo conta, foram apenas três os livros de Maria de Lourdes Modesto que não foram fotografados em casa: “Cozinha Tradicional Portuguesa”, “Festas e Comeres do Povo Português” (este por terem sido feitos de forma itinerante, por todo o país) e “Receitas Escolhidas”, feito num estúdio.
“Quando crescemos naquele contexto e com aquela rotina, às tantas, é natural”, adiciona. Seguir as pisadas da mãe envolvia muita visibilidade pública, demasiada para a rapariga (mais tarde mulher) que desejava seguir uma carreira que a pusesse a lidar com crianças. Ao fim de anos a ajudá-la, Nucha foi atrás do sonho, “já tarde”, como admite hoje. Tirou um curso e ainda trabalho como auxiliar de educação infantil.
Francine Dupré e o fantasma das margarinas
O ano de 1958 marca a reviravolta na vida de Maria de Lourdes Modesto. Não foi apenas a data de estreia na televisão e da saída do Liceu Francês. A ida para Paris acentuou a imagem sofisticada que tinha perante o grande público e fez dela uma figura cobiçada. Ainda durante a estadia fora do país, caiu nas graças de um grupo de generosos empresários. Dos jantares mais exclusivos aos chefs e gastrónomos da altura, conheceu a nata cozinha francesa.
Quando regressou, o convite veio para cima da mesa e, ao aceitá-lo, Maria de Lourdes tornava-se na mais recente funcionária da Fima-Lever, a atual Jerónimo Martins. Depois da televisão, entrava no mundo do marketing e da publicidade, dos estudos de mercado e das relações, já não apenas com o telespectador, mas com o consumidor. A grande empresa montou-lhe uma estrutura que perdurou muito para além do programa de televisão.
Culinária era um sucesso, contudo Modesto desencantou-se com a televisão no final dos anos 60. Deixou-a ao fim de 12 anos a conduzir emissões em direto e tudo por causa dos programas gravados. “Assim que começaram os enlatados [programas gravados] estraguei-me completamente porque me podia ver. Eu só encontrava defeitos. Fazia aquilo com um sacrifício enorme e obrigavam-me a fazer três programas por seguida, portanto não dava tempo para respirar, pensar no que ia dizer”, recordou ao Observador. O momento desembocou numa depressão “de uma certa importância” e numa ausência definitiva no grande ecrã.
Mas fora dos estúdios, na Fima-Lever, Modesto liderava a sua própria equipa. Chegou a ter um clube de culinária, com aulas e pequenas publicações de receitas, tendo sempre em vista a promoção dos artigos da companhia. Contudo, nunca quis assinar estas publicações com o seu próprio nome. Para isso, nasceu Francine Dupré, a especialista que ainda aproveitava o fascínio do público pela cozinha francesa, mas que não passava de um pseudónimo da mais portuguesa das gastrónomas.
Ainda assim, o nom de plume não foi um escudo forte o suficiente para a proteger daquela que, para muitos, foi a grande mancha no currículo de Maria de Lourdes Modesto. Durante os anos 60, a margarina vegetal foi o produto estrela nas cozinhas portuguesas. Em panfletos distribuídos com as próprias barras Vaqueiro, que chegaram a uma tiragem de 100 mil exemplares, ou em fascículos colecionáveis, ao serviço dos interesses do negócio, na época a consolidar-se como monopólio, Modesto terá adaptado dezenas, senão mesmo centenas, de receitas para incluir o ingrediente da modernidade.
Dupré e margarina foram uma combinação explosiva e os ingredientes principais de uma das mais agressivas operações de marketing e publicidade a que o país já tinha assistido, levada a cabo pela Lintas, agência integrada na própria empresa. À medida que a concorrência surgia, caso da Margarina Chefe, produzida pela Fábrica Nacional de Sabões, era Maria de Lourdes a carta na manga da Fima-Lever. Além de conceber livros exclusivos para clientes, correspondia-se diretamente com as consumidoras, cartas que que começavam, invariavelmente, com um íntimo “cara amiga”.
Era mais barata do que a manteiga e apresentada como uma alternativa saudável para os cozinhados domésticos. Cientificamente legitimada e um trunfo comercial, a explosão a margarina vegetal continua associada ao nome de Maria de Lourdes Modesto. O passar do tempo acabou por tornar claras as consequências das gorduras hidrogenadas para a saúde. Em décadas de declarações e entrevistas, o tema tem permanecido um tabu.
Paulo Amado, diretor da Inter, a única revista dedicada à gastronomia portuguesa, fala num “desconforto no setor”. “Há uma geração que não a perdoa por ter alterado o gosto da culinária com as margarinas. Mas também há muitas pessoas que continuam a reconhecer o grande papel que ela teve na definição da nossa identidade culinária”, diz ao Observador.
No início do ano, determinado a resolver o que considera ser uma injustiça, Paulo juntou-se ao realizador Tiago Pereira para produzir um documentário sobre Maria de Lourdes Modesto. Antes da pandemia, entraram-lhe em casa e, com o à-vontade próprio das caras conhecidas, puseram-se à conversa com ela. Em declarações inéditas, o velho e ingrato tema foi o primeiro a vir à baila e por iniciativa própria. “Dizem que sou a mulher da margarina mas eu sou a mulher do azeite. Eu sei que trabalhei com a Lever — era nova, eles ajudaram-me com o meu livro. Mas sempre fui a mulher do azeite”, respondeu, palavras partilhadas por Paulo com o Observador.
“O grande receio das pessoas que a colavam a este gesto de um determinado tempo da sua vida era que esse ato tivesse interferido negativamente na definição do que é a nossa identidade”, completa o jornalista e empresário, responsável por algumas das mais recentes homenagens públicas a Maria de Lourdes Modesto.
“Não é algo que ela queira corrigir”, indica Virgílio Nogueiro Gomes, gastrónomo e um dos amigos mais chegados, ao referir-se às várias receitas da época assinadas por Francine Dupré. Fala numa influência da época que não denuncia nada, além da natural evolução da ciência e dos gostos.
Afinal, a mesma Maria de Lourdes acabou por encontrar uma forma de reconciliar cozinha e saúde. Na primeira metade dos anos 70, formou uma dupla com o cardiologista de Harvard Fernando de Pádua, acabado de chegar dos Estados Unidos. Além de um regresso à televisão com a rubrica O seu motor, passaram três anos a percorrer o país, incentivando os portugueses a cozinhar com menos sal, sem no entanto perder de vista o sabor do que se leva à mesa. Na Fima-Lever, trabalho durante 31 anos.
“A Cozinha Tradicional Portuguesa” ou a bíblia da gastronomia regional
Ainda nos anos 60, o primeiro livro. A “Grande Enciclopédia da Cozinha” era, na verdade, um conjunto de fascículos ricamente encadernado em dois volumes. “[…] não pretende ser um livro de receitas. Procura, antes, para a dona de casa ser um guia útil onde encontrará um sem-número de artifícios da técnica da arte culinária, para a jovem mais ou menos inexperiente um professor incansável e para o amador de bons pratos um excitante para o apetite […] Simplificámos principalmente, porque hoje, em cozinha, simplicidade é sinónimo de bom gosto”, escrevia Maria de Lourdes Modesto na altura.
Feitas as contas, a obra completa custava uma pequena fortuna — cerca 900 escudos. Foi publicada pela Verbo, nome recém-chegado ao mercado editorial e com o qual Modesto publicaria a maior parte da sua bibliografia. “Ela era diferente. Podia estar a fazer o cozinhado mais banal, mas só a sua presença, como falava e como se dirigia às pessoas, era outra coisa”, recordou Fernando Guedes, fundador da editora, em 2011. Aos olhos da própria autoria, apesar de representar três anos de trabalho árduo, o livro foi ainda fruto de uma Maria de Lourdes inexperiente, razão pela qual nunca quis reeditá-lo.
Em 1967, o segundo livro. “Receitas da TV” apanhava boleia do sucesso anterior, contudo mais pequeno e com um preço mais acessível ao grande público. Ainda no início dessa mesma década, havia despertado o interesse pela gastronomia regional portuguesa — não tanto por parte do país, mas da curiosa locutora que cedo começou a interagir com os telespectadores.
“Eu era completamente indiferente à arte culinária”, expôs Maria de Lurdes Modesto em 2011, ao em que a RTP rodou uma pequena retrospetiva sobre a sua carreira. “Depois, fui-me apercebendo de que a cozinha portuguesa era de facto uma coisa muito importante, que tinha muito a ver connosco e com as terras. Portanto, passou a ser uma paixão”.
Entre 1960 e 1961, confrontada com as especificidades de cada região, por vezes de cada família, decidiu fazer um repto aos portugueses e percorrer o país, com a ajuda do programa, com base nas receitas enviadas. Estas chegaram, de facto, aos milhares e ocuparam a emissão durante meses a fio. “Sei que no Secretariado Nacional de Informação queriam publicar o livro. Só que eu vi que era extraordinariamente difícil fazer aquele livro com aquele material. Porque sempre que eu procurava o fundamento das receitas, a carga emocional que as pessoas me transmitiam era de tal ordem que eu ganhei pavor de fazer aquele livro, de não ser capaz de o fazer”, explicou mais tarde.
Quase 20 anos depois, a empreitada arrancou, impulsionada por um erro num diagnóstico médico. O problema de audição que a afeta até hoje foi confundido com um tumor e Maria de Lurdes não se achou no direito de “ir embora” sem deixar o livro. Fazer o livro que muitos consideram até hoje a bíblia da gastronomia nacional, levou-a para a estrada, com o reputado fotógrafo Augusto Cabrita, que ainda se fez acompanhar de António Homem Cardoso. Com sentimento de missão, por um lado, assustada pela carga emotiva posta em cada receita, por outro, percorreu o país aos 50 anos. “A Cozinha Tradicional Portuguesa” foi publicado em 1982, com direito a festa no Salão Nobre do Ritz. No dia, Modesto teve de dar um salto à cozinha do hotel, já que a equipa da casa não estava a dar conta das filhós de flor.
“A Cozinha Tradicional Portuguesa”, uma traição da classe
“É como se a Audrey Hepburn também fosse antropóloga, uma combinação que acontece uma vez em dois mil anos”, exclama Miguel Esteves Cardoso. Tinha 19 anos quando recebeu o primeiro exemplar de “A Cozinha Tradicional Portuguesa”, oferecido pelo pai. Não havia como prever que seria ele, um dia, a colocar as últimas pedras num altar justamente erguido, tão pouco era possível antecipar a fase feliz em que trabalhariam juntos. Miguel, ainda assim, nunca precisou que esse momento chegasse para ganhar consciência de que Maria de Lourdes Modesto era um nome maior e que em muito extravasava o âmbito da cozinha.
“Ela tem uma conjugação magnífica — é alentejana e é altamente sofisticada”, recorda ao Observador. O rigor e a pesquisa são, na opinião no cronista, as premissas para começar a desmontar a mulher fenómeno, cujas façanhas se devem, em primeiro lugar, ao estudo e à curiosidade. Fala numa pessoas “com mundo”, que também aprofundou conhecimentos sobre as cozinhas francesa, italiana e espanhola. “Ela não é uma cozinheira, ela é uma estudiosa”, adiciona, com um entusiasmo que não esmorece ao longo de quase uma hora de conversa.
“Ela fez o que só alguns antropólogos tinham feito — foi até cada região perceber como é que as coisas eram feitas. Estamos a falar de um cozinha burguesa, em que tudo era feito de cima para baixo. Nunca ninguém se tinha dado ao trabalho de ir a todos os cantinhos falar com as cozinheiras. Muitas daquelas pessoas não sabiam escrever, eram receitas que se iam perder”, reflete.
Região a região, Maria de Lourdes mapeou as diferentes cozinhas portuguesas, praticamente todas elas marcadas por um país pobre, ou pelo menos remediado, pelo engenho e pelo aproveitamento máximo de todos os recursos ao dispor. No final, era essa a riqueza que chegava à mesa, numa diversidade em muito superior à dimensão do próprio território. Como exemplo disso, Miguel Esteves Cardoso fala da caldeirada até hoje. “Uma pessoa menor teria ficado contente com a caldeirada do Norte, com a da Nazaré e com a algarvia. Ela não. Juntou todas as receitas, umas trinta e tal”, recorda.
Destaca um método quase científico aplicado à cozinha, o mesmo método e rigor que muitos outros testemunharam ao longo de décadas. Ao mesmo tempo, o livro, dirigido a um público não profissional, antecipava as questões do mais inexperiente dos cozinheiros. Uma pretensão — “linda, talvez um pouco utópica” — de tornar aquelas receitas reproduzíveis em qualquer outra parte do país.
“O que ela faz nos anos 80 é uma compilação do que é o pais e apresenta, de mão beijada, um livro que vale muito mais do que se paga pela capa. Para os que não gostavam da conversa, ainda pior. Era o país real”, completa Paulo Amado.
Já Isabel Drumond Braga, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, salienta o ineditismo da obra. “Pela primeira vez, temos uma recolha itinerante acompanhada por fotografias”, esclarece ao Observador. “Para a esmagadora maioria da população, a cozinha era essencialmente familiar e a tradição tinha, nesta época, sobretudo um toque francês […] A obra de Maria de Lourdes Modesto constituiu um marco, pela sua abrangência territorial e pelo cuidado com que foi feita”, salientando o relevo assumido por obras anteriores à de Modesto, nomeadamente “Culinária Portuguesa”, de Olleboma (pseudónimo de António Maria de Oliveira Bello), ainda que sem o mesmo êxito.
Mas para Miguel Esteves Cardoso, Maria de Lourdes Modesto também é uma mulher desconcertantemente crítica, na mesma dose do rigor que sempre impôs a si própria. “É muito desobediente, subversiva, como se tivesse 13 ou 14 anos”, ressalva. A ousadia foi determinante na hora de “enfrentar a cultura machista e burguesa” do país. Quando fala em “transpor barreiras”, o cronista fala numa cozinha que não era valorizada. Paris era a referência, “tudo tinha manteiga”.
Como boa alentejana, Maria de Lourdes conhecia bem uma realidade em que, com muito pouco, se fazia uma cozinha deliciosa. “E ela era vítima desse snobismo, era quase um insulto considerar a comida de camponeses e pescadores. Que nojo. Que traidora de classe”, ironiza, recordando, anos mais tarde, o “momento histórico” em que a tasca passou a ser alvo de curiosidade — “tornou-se moda ir às tascas, ver como o povo come”. Modesto arregaçou as mangas e foi descobrir o património. Ele já existia, mas ninguém sabia. “Ela era chiquíssima e, de repente, estava interessada em ver quanto alho é que os camponeses punham na açorda”, remata.
Um livro “estranho para os americanos” e as mulheres na cozinha
“Da peça de Molière para o programa de cozinha na televisão” — foi este o título escolhido pelo The New York Times para apresentar Maria de Lourdes Modesto aos seus leitores. O livro acabou por ter uma versão em inglês, embora o primeiro contacto da autora com uma editora norte-americana não tenha sido propriamente animadores. “Era um livro estranho para os americanos. Ela disse-me que nenhuma editora ia querer publicar o livro. Tinha lá um porco a ser aberto, umas cabeças de vitela no Mercado do Bolhão”, recordou a própria em 2011.
Em tempos, descreveu a cozinha portuguesa como viril, de mulheres para homens. Mas Maria de Lourdes também se revelou consciente das desigualdades de género, especialmente na cozinha e sobretudo na divisão entre as dimensões profissional e doméstica. “Quando é feito por homens é intelectual, é arte. Ao passo que quando sou eu que faço, ou as mulheres, é uma coisa menor”, admitiu numa entrevista.
“Ela sempre achou que as mulheres tinham de ter as suas carreiras e também sempre foi um exemplo disso”, explica Duarte Calvão, crítico gastronómico a amigo próximo de Maria de Lourdes Modesto. “Na fase final da televisão, ela própria se ressentiu um bocado por acharem que ela estava a contribuir para essa imagem da mulher a cozinhar para a família. Nunca foi o que ela quis. Acho que terá sido uma das razões que a levou a sair, ela não queria ter esse papel”, completa, em conversa com o Observador.
Antropologia e cozinha molecular: a bibliografia
“A Cozinha Tradicional Portuguesa”, cuja edição em português já vendeu mais de 400 mil exemplares, não foi o único livro que levou Maria de Lourdes Modesto a percorrer o país. Em 1999, lança, em dois volumes, “Festas e Comeres do Povo Português”, mais uma abordagem quase antropológica da gastronomia nacional, dessa vez ligada às festividades e comemorações do calendário e com a colaboração do jornalista Afonso Praça e do fotógrafo Nuno Calvet.
“As Receitas Escolhidas de Maria de Lourdes Modesto” tinha saído pouco tempo antes. A partir dos anos 2000, os livros temáticos tomaram conta da bibliografia da veterana da cozinha portuguesa, com edições dedicadas a receitas gregas, italianas, japonesas e até caribenhas. Encontra-se ainda uma série de livros dedicada a ingredientes chave — “Cozinhar com vegetais” (2005), “Queijos Portugueses” (2007) e “Cogumelos – Do Campo até à Mesa” (2010).
“Ela adoraria ter feito um livro só sobre o tomate”, admite Virgílio Nogueiro Gomes, um dos poucos amigos que continua a visitá-la frequente, sempre com dois dedos de conversa. A energia e a inquietude mantiveram-na ativa e relevante nas primeiras duas décadas no novo século, aprendeu inclusive a dominar as ferramentas informáticas e explorou a cozinha molecular. A estudar, testar, escrever e fotografar. Depois de publicar, é sempre hora de voltar ao início. “Tenho experiências de rigor com ela. Numa tarde que passei com ela, fizemos sete quilos de marmelada branca de Odivelas. Ao todo, ficámos com 300 fotografias do passo a passo. Ela olha para tudo do ponto de vista da pedagogia, é uma pessoa constantemente preocupada com a partilha de conhecimento”, recorda ao Observador.
Conheceram-se em 1981, mas só em 2013 é que a razão pela qual caíram nas graças um do outro veio ao de cima. “Pela primeira vez, alguém conversou comigo sem me pedir receitas”, escreveu no prefácio do livro do gastrónomo “Tratado do Petisco”. Podem passar dias, semanas, até meses, a testar e pesquisar receitas e ingredientes. Como aconteceu “há meia dúzia de anos”, quando Maria de Lourdes lhe ligou com uma pergunta inesperada: porque é que os cuscos de Trás-os-Montes são iguais aos de Israel?
A prosa e a crítica de Maria de Lourdes Modesto
A primeira experiência de Maria de Lourdes como crítica gastronómica foi numa revista chamada Observador, criada pela Verbo em 1971. Porém, nem o projeto editorial teve grande longevidade, tendo terminado pouco mais de três anos depois, nem Modesto demonstrou especial entusiasmo pelo formato. “Chegou a dizer-me que as pessoas eram tão simpáticas e tratavam-na tão bem que depois lhe custava dizer mal”, confidencia Duarte Calvão, que mais tarde viria a trabalhar diretamente com ela. “Ela era o cânone”, adiciona.
Conhecida por ser uma rigorosa avaliadora e pela frontalidade por vezes desconcertante, fascículos e livros, depois da passagem pela televisão, sempre foram o seu principal meio de transmissão de conhecimento para o mundo. Contudo, em meados dos anos 70, a ideia de criar uma nova publicação de culinária bateu-lhe à porta. Telmo Protásio, que havia deixado a Lintas para criar a sua própria editora, a Meribérica, tentou convencer Maria de Lourdes a escrever para uma nova revista de receitas. Esta seria vendida em banca, tal como já acontecia com a concorrente Banquete, que apenas pecava pelo fraco apelo visual.
Modesto não cedeu, mas apresentou-lhe António da Silva — homem versado em cozinhas de hotel, mais conhecido como Chefe Silva –, que à época já aparecia na televisão e que, por sua vez, havia pedido ajuda à antiga locutora da RTP para lançar um livro de receitas. “Juntou-se a fome à vontade de comer”, como descreveu ao Observador, em 2016. O primeiro número da revista saiu a 4 de outubro de 1976, chamava-se TeleCulinária.
Preguiça e Boa Vida: a colaboração com a imprensa
Diva. Miguel Esteves Cardoso nunca colocou Maria de Lourdes Modesto abaixo desta categoria. Pouco tempo depois de ter assumido a direção d’O Independente, nascia Preguiça, a revista de gastronomia que passaria a vir com o semanário. O passo seguinte foi dirigir o convite à “mais deliciosa” das colaboradoras. Ela, que nunca foi de tomar decisões na hora, esperou que o primeiro número fosse para as bancas e só depois aceitou. “Nunca pensei que estivesse disponível. Era como ir pedir à Amália para gravar”, recorda.
Paulo Pinto Mascarenhas, o editor do novo suplemento, e Inês Gonçalves, a fotógrafa, visitavam-na todas as semanas. “Vinham de lá extasiados. Ela é generosa, bem educada e fez sempre o contrário de despachar as pessoas. A revista já tinha nascido influenciada pelo trabalho dela, mas sem ela lá não havia Preguiça”. Histórias, receitas, produtos sazonais e um saber transversal que, conciliado com uma prosa fluida e cativante, ia muito além da mera lista de ingredientes seguida do habitual modo de preparação. O projeto durou menos de dois anos, tempo suficiente para ficar na memória de todos — “Foi a época em que mais me diverti”, admitiu Modesto mais tarde.
40 anos de TeleCulinária: uma pitada de história e 5 curiosidades
Mas não só a passagem pela imprensa estava longe do fim, como haveria de voltar a vestir o papel de crítica. “Ela escreve muito bem e era muito diferente do que se fazia na altura e naquela área. Era muito informada e útil, mas ao mesmo tempo com humor, graça e vivacidade. Quando soube que já não estava na Preguiça, decidi convidá-la para escrever para o Diário de Notícias”, conta Duarte Calvão, na altura responsável por uma secção chamada Boa Vida.
Embora não fosse a tarefa em que se sentisse mais confortável, razão pela qual não quis assinar os textos com o próprio nome, Modesto sempre soube que os restaurantes ganhavam com o olhar crítico, sobretudo com o seu. Ao mesmo tempo que se reiniciou nas crónicas, começou, em dupla com Duarte, a visitar restaurantes e a dar o veredito sob o pseudónimo Guardanapus. “Apesar de ela ser reconhecida em público, nunca ninguém descobriu. Algumas pessoas achavam que era o José Bento dos Santos, outras achavam que era só eu”, recorda Calvão.
São vários os episódios memoráveis, como o dia em que foram almoçar ao Gambrinus, onde “ela era uma deusa na terra”. Mal se sentaram, foram rodeados de empregados, serviço empenhado para a melhor das clientes. “Ó Duarte, a gente não pode escrever sobre isto”, concluiu no final da refeição.
Calvão recorda igualmente as notas espontâneas e pertinentes. “Ela vinha da cozinha clássica, tradicional, familiar, e eu achava muito interessante que, mesmo com toda a explosão da cozinha moderna naquela altura, ela fazia observações muito claras e que faziam sentido para qualquer cozinheiro — sobre a comida, mas às vezes sobre o ambiente do próprio restaurante”, explica.
Lembra-se especialmente do dia em que, num restaurante famoso pelas empadas de perdiz, deu por um pequeno osso. O detalhe teria sido, em parte, relevado, não fosse a indicação instantânea da mentora — “Isto é um prato que devemos comer sem receio”.
Amores e desamores na cozinha
“A opinião dela foi sempre muito importante na minha vida”. Vítor Sobral diz que não há escapatória possível — quem quiser conhecer a cozinha regional portuguesa e iniciar uma carreira tem de passar obrigatoriamente pela obra de Maria de Lourdes Modesto. A mentora escolheu-o e não o contrário. “Conheci-a quando estava a fazer o meu teste de cozinha na Escola de Hotelaria, tinha sido convidada para assistir. Estava tão nervoso que nem tenho muitas memórias desse momento. Fez-me algumas perguntas e depois disso nunca deixou de me acompanhar”, esclarece o chef, à conversa com o Observador.
Para Maria de Lourdes, Sobral é o profissional que “tem evoluído sem estragar”. Acompanham-se há mais de 30 anos, tempo suficiente para que o chef consiga desmontar o fenómeno — afinal, como é que uma mulher que nunca foi uma cozinheira profissional exerce tanta influência sobre os grandes nomes do setor em Portugal? “Está tudo na pesquisa que ela fez. Sem ela, hoje teríamos muito mais trabalho. Depois, numa altura em que a cozinha familiar era feita por mulheres e a profissional era dominada pela imagem dos chefs franceses, a capacidade que ela teve de explicar tudo para todos — para autodidatas em casa, tanto mulheres como homens, pessoas que tinham os seus restaurantes e, mais tarde, aos cozinheiros profissionais — é notável”, explica.
Recorda o tempo em que não fazia assados sem consultar a “bíblia” e as dezenas que receitas que julgava prontas, mas às quais ela acrescentava sempre alguma coisa. O escabeche de bacalhau, esse sim, há anos que está no ponto. De todas as especialidades do chef, é a favorita de Maria de Lourdes.
Todas as oportunidades para apaparicar a diva são poucas. Por estes dias, também Justa Nobre planeia fazer farófias para assinalar o 90º aniversário. Sem a agenda preenchida como antes, porque a energia também já não o permite, são as poucas e cuidadosas visitas que lhe permitem fazer pequenos intervalos na solidão. “Não sei se uma pessoa sozinha pode dizer que tem uma vida boa”, admitiu, durante uma entrevista em abril do ano passado à Notícias Magazine. “No inverno, chegando a hora a que o meu marido regressava a casa, sete, oito da noite, há sempre qualquer coisa que me emociona”, rematou.
Amêijoas à Bulhão Pato com vinho? Chamem-lhe outra coisa
Maria de Lourdes Modesto criou uma base de trabalho transversal e consensualmente reconhecida que lhe vale o título de guardiã da cozinha tradicional portuguesa, um posto especialmente propício a irritações e mal-estares variados. Foi o que aconteceu em junho de 2015, quando classificou de “obscenidade” o pastel de bacalhau com recheio de Queijo da Serra inventado pelo Museu da Cerveja. “Duas das mais queridas e conseguidas especificidades da nossa gastronomia, numa pornográfica e ridícula figura!”, contestou na altura.
A polémica foi conhecida, mas outras nunca chegaram a vir a público. “Ela acha que os cozinheiros deviam ler mais”, exclama Virgílio. Sem medo de ferir suscetibilidades, sempre educadamente e a pensar no bem do património gastronómico em primeiro lugar, o desagrado acaba por ser tão natural como a agradável surpresa. O amigo é, por estes dias, a melhor pessoa para elencar alguns exemplos.
“Está furiosa com a imagem dela no programa do Sá Pessoa”, deixa escapar. Em causa estão umas amêijoas à Bulhão Pato feitas com vinho branco e uma chanfana com carne de borrego. Nada contra experiências e adaptações culinárias, explica o gastrónomo, porém, nesse caso, o melhor é dar outro nome ao prato, sob pena de desvirtuar a receita original.
“E ninguém lhe fale no Ljubomir”, continua. A convite da RTP, o chef revisitou uma receita de tripas de João Ribeiro, o primeiro chef português a receber uma estrela Michelin, sob o olhar atento de Modesto. O desfecho foi imprevisível. O prato estava mais doce do que esperava, Maria de Lourdes não hesitou e despejou meia garrafa de aguardente para dentro do tacho.
O leite-creme que soube pela vida
O olho para detetar talento terá ajudado a criar as afinidades que mantém hoje. À semelhança de Vítor Sobral, também Joaquim Figueiredo foi desde cedo um protégée. José Avillez, prodígio da nova cozinha portuguesa, mantém uma relação quase umbilical, acentuada por relações familiares. “Foi a primeira pessoa a quem disse que queria ser cozinheiro”, confessou já o chef. Esta foi sua tutora, quando ia estudava Comunicação Empresarial e iniciou uma inusitada aproximação à cozinha.
Em junho de 2004, foi condecorada por Jorge Sampaio, ganhando o título de Comendadora da Ordem de Mérito. Em outubro de 2018, o Congresso dos Cozinheiros, organizado por Paulo Amado, homenageou Maria de Lourdes Modesto e o seu contributo para um país consciente e conhecedor do seu património gastronómico. O aplauso foi arrepiante e apanhou desprevenida a própria homenageada.
Virgílio Nogueiro Gomes estava lá, mas prefere falar dos mais recentes episódios de amizade vividos a dois. Nesse ano, o mesmo em que delirou com o Feitoria de João Rodrigues, insistiu para visitar O Poleiro, estabelecimento lisboeta de cozinha tradicional com toque caseiro. As saudades mataram-se à mesa, com poucas quantidades para poder provar de tudo um pouco. Para sobremesa, leite-creme. De repente, o dono do restaurante foi chamado à mesa e num tom um tanto ou quanto altivo. A mulher estava na cozinha e tinha sido ela a confecionar a executar a receita. “Era só para dizer que este foi o melhor leite-creme da minha vida”. Disto isto, entre cumprimentos e fotografias, a tarde foi passada na cozinha.