A coluna de veículos militares russos que serpenteia ao longo de 64 quilómetros às portas da capital ucraniana não deverá permanecer quase estacionária durante muito mais tempo. Dentro de três a cinco dias, os militares que ali estão pelo menos desde o fim de fevereiro devem avançar para o interior da cidade na tentativa de a dominar. Essa é, pelo menos, a crença de quem está em Kiev neste momento.
Move-se pé ante pé, mas move-se: às 19h30 de terça-feira, quando o Observador trocou mensagens com o analista político e especialista em conflitos armados ucraniano Kostyantyn Batozsky, a linha da frente da coluna estava a 15 quilómetros de Kiev — menos 10 que apenas cinco horas antes. E parecia estar a dispersar-se. A coluna “já era” na quarta-feira de manhã: “Agora estão a dispersar-se em todas as direções”. A última monitorização com imagens de satélite confirmou na madrugada desta sexta-feira que as unidades continuam a avançar e a dispersar-se nas proximidades do aeroporto de Antonov.
NEW: More elements of Russia's convoy NW of Kyiv are on the move, @Maxar says after compiling new imagery thanks for reduced cloud cover. pic.twitter.com/w9jZID5c43
— Ben Watson (@bwatsonsocial) March 10, 2022
A presença da enigmática coluna foi captada pela primeira vez a 28 de fevereiro pelo satélite WorldView-3, a cerca de 600 quilómetros de altitude; e comunicada às autoridades norte-americanas pela Maxar Technologies, a empresa que tinha na sua posse 1.400 quilómetros quadrados de imagens dos arredores de Kiev e da presença militar russa na região.
Moscovo nunca explicou por que escolheu paralisar centenas de tanques, veículos armados, obus, morteiros e artilharia na fronteira da capital da Ucrânia. Nas redes sociais, o Ministério da Defesa, liderado por Sergey Shoygu, limitou-se a publicar no domingo um vídeo das forças armadas russas em movimento “na região de Kiev” para a “promoção” de uma “operação militar especial”, mas em momento nenhum esclarece porque é que esses progressos têm sido tão vagarosos.
A falta de respostas deu espaço à teorização. Estratégia militar? Uma mera estrutura logística para abastecer outras forças? Para Kostyantyn Batozsky, é apenas um sintoma do erro mais crasso de Vladimir Putin: ter subestimado a capacidade de reação ucraniana.
“Parece que os russos calcularam mal a totalidade da campanha militar”, partilhou o analista político com o Observador: “Pensavam que a população ucraniana iria recebê-los com flores e que não iriam resistir, quando na verdade os ucranianos lutam como tigres e não se rendem”. A convição do lado ucraniano é que a coluna avançaria se, nas outras grandes cidades ucranianas, as forças da Rússia não encontrassem resistência significativa dos civis e dos soldados de Volodomyr Zelensky.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre o real poderia militar russo.
Mas não só encontraram como, ainda por cima, as tropas russas estão cansadas, esfomeadas e sem combustível. Por isso, o plano para invadir Kiev tinha sido suspenso, interpreta Kostyantyn Batozsky: “Só prova que o Putin não compreende a Ucrânia e rejeita a ideia de que a Ucrânia é um Estado efetivo com uma população pronta para resistir a invasores”. Na quarta-feira de manhã, no entanto, a realidade já tinha mudado, aponta o analista: a coluna está a dispersar, em preparação para uma entrada em Kiev por várias frentes.
Antigo consultor da administração regional de Donetsk na altura da anexação da Crimeia em 2014, Kostyantyn Batozsky nasceu neste estado separatista pró-Rússia e mudou-se depois para Mariupol, cidade que está “transformada noutra Aleppo” — não há rede, não há internet, não há gás nem água. “Já me tiraram a minha cidade natal, destruíram a cidade querida cidade de Mariupol e anexaram a Crimeia, onde tinha um apartamento”, lamenta.
Agora está em Kiev e é um dos fundadores de um grupo de voluntários que compra material como coletes anti-balas, capacetes, walkie talkies, óculos de visão noturna e câmaras de imagem térmica — coisas que o Estado não comprou, resume o consultor — para ceder aos soldados ucranianos. Um dos membros mais célebres do grupo de voluntários é Serhiy Prytula, um famoso apresentador de televisão ucraniano que se candidatou nas eleições presidenciais em 2019 e para a presidência da Câmara de Kiev em 2020.
É “extremamente simples” para eles arranjarem este tipo de material, descreve Kostyantyn Batozsky, porque já o fazem desde que a Rússia ganhou controlo sobre a Crimeia: publicam no Facebook os produtos de que necessitam e “as pessoas simplesmente trazem-nos de alguma forma”; ou então são adquiridos através de uma rede de fornecedores espalhados pelo mundo.
O dia-a-dia “parece o filme Feitiço do Tempo”, compara Kostyantyn Batozsky, referindo-se à comédia clássica de 1993 em que o protagonista revive o mesmo dia uma e outra vez, mas “mantém a mente ocupada” do perigo iminente de uma invasão: “Carregamos camiões, recolhemos bens de primeira necessidade, distribuímo-los e fazemos comentários nos intervalos”.
Faz tudo isto pelos filhos, que estão num lugar seguro, porque quer que os filhos tenham orgulho nele, que saibam que “no pior momento o pai fez o seu melhor para proteger o país para eles”. Mas também por vingança aos invasores: “Eles estão a levar tudo o que é valioso para mim aos poucos. Não tenho para onde fugir. Vou ficar até ser eficaz e só sairei se houver uma ameaça direta à minha vida”.
Do outro lado da barricada, descreve o residente em Kiev, os militares russos sobrevivem dos mantimentos que recebem da aliada Bielorrússia e dos bens que saqueiam nas localidades vizinhas à coluna, nas lojas e estações de serviço mais próximas. É que a comida dos bielorrusos já não basta e o combustível também não.
No último ponto de situação, Kostyantyn Batozsky apontava que os militares russos estariam a dispersar-se na fronteira de Kiev para tentar uma invasão na direção norte-oeste, através das cidades de Gostomel, Bucha, Irpin e Stoyanka. Nas últimas investidas, no entanto, as forças russas nestas localizações terão sido repelidas pelo exército ucraniano e voltaram a recuar.
As armas de que dispõem, acredita, não são altamente modernas, nem tecnologicamente muito avançadas: são todas produtos da era soviética. Mas nada disso descansa os ucranianos que resumem todos aqueles equipamentos como armas de destruição em massa, desenhadas para criar tanto dano quanto possível. “São um perigo real para os civis”, adianta Kostyantyn Batozsky.
Às portas de Kiev, na região por onde a coluna de veículos militares russos está colocada, os ucranianos montaram barricadas com comboios e autocarros para dificultar a passagem das tropas de Vladimir Putin; e montaram postos de controlo onde pedem a identificação de transeuntes na tentativa de travar qualquer russo que se tenha infiltrado na cidade. Vitali Klitschko, autarca da capital da Ucrânia (e antigo campeão de boxe na categoria de peso pesado, desporto em que conquistou o apelido “Senhor Punho de Ferro”) chamou a estes obstáculos “presentes para os russos”. Mas “não dos doces, vão ser dolorosos”, prometeu.
Numa conferência de imprensa protagonizada pelo assessor de imprensa norte-americano John F. Kirby, o Pentágono sugere outra função para a misteriosa coluna retida nas proximidades de Kiev: embora não descarte que possa efetivamente ter funções bélicas, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos aposta neste momento que os veículos militares servem para reabastecimento porque “não parecem tanto veículos blindados, mas sim camiões de reabastecimento” para as tropas russas na Ucrânia.
Não é esta a interpretação que o major-general João Vieira Borges, presidente da Comissão Portuguesa de História Militar, faz das imagens da coluna russa que têm circulado: ela deve ter função dupla, de combate e de apoio logístico, e concentrar 14 mil a 20 mil soldados russos. O especialista em estratégia e segurança militar identificou já mais 300 carros de combate blindados, como os T-15 Armata que normalmente desfilam nas festividades nacionais em Moscovo, lança-foguetes, artilharia, unidades anti-aéreas, unidades de comando e controlo do espaço cibernético, grupos de helicópteros e equipas de engenharia. É uma unidade de combate.
Mas também há veículos que parecem funcionar como uma unidade de apoio logístico ao cerco de Kiev — não só das forças localizadas a norte da cidade, mas também das que possam rodear a cidade pelo sul e por leste e que encontram naquela coluna uma espécie de porto de abrigo a três ou cinco dias de distância. A própria localização da coluna dá corpo a esta interpretação do major-general português: está perto da fronteira com a Bielorrússia, aliada da Rússia, e está parada precisamente para haver reabastecimento e para esperar pelo momento certo para avançar com o cerco de Kiev.
Esta não é uma estratégia comum da Rússia: não havia colunas desta natureza aquando do conflito na Chechénia, nem na guerra com a Geórgia, porque são regiões mais pequenas do que a Ucrânia — não havia tanta necessidade de criar centros de reabastecimento no palco das operações. Mas também não é inédita: a Rússia levou colunas como esta para o Afeganistão no conflito dos anos 70 e 80, só que eram mais facilmente destruídas pelos afegãos porque o terreno era mais montanhoso, menos explorado do que o ucraniano.
Para os Estados Unidos, estacionar uma coluna russa com 64 quilómetros junto a Kiev é como a Rússia oferecer à Ucrânia um alvo fácil. Foi o que considerou o republicano Jason Crow, veterano da guerra no Afeganistão, quando disse ao The Washington Post que em conflitos como este “não se atingem unidades de combate, não se atingem tanques”: “Atacam-se os camiões de combustível e de munições. Cortam-se os suprimentos e tenta-se infundir o terror na mente dos inimigos”. E foi também o que sugeriu James Stavridis, antigo almirante da Marinha norte-americana que chegou a comandar as forças da NATO da Europa: “Aquela coluna com 40 milhas é o maior alvo da Ucrânia. Deem caças aos ucranianos e vejam aquilo a explodir”.
Não é que isso já não esteja a acontecer, mesmo sem os caças que a Polónia está disponível para ceder à Ucrânia, tal como anunciou na terça-feira passada. Kostyantyn Batozsky confirma que muitos veículos desta coluna foram atingidos por militares ucranianos, mas que não se estão a contar essas investidas porque as batalhas por Kiev continuam. A questão é que a Rússia sabe que estes ataques não são suficientes para minar o propósito da coluna, seja ele qual for. Afinal, falta à Ucrânia a supremacia russa que o regime de Vladimir Putin tem, considerou Borges Vieira: “Se os ucranianos tivessem armas anti-carro ou drones em número suficiente era a destruição total”.
Não o têm e os Estados Unidos estão a travar as ofertas polacas à Ucrânia. A administração de Joe Biden justificou que não acreditava que “a proposta da Polónia” fosse “possível de sustentar”, nem estava a “ver uma fundamentação substantiva e clara” para ela. John F. Kirby, o porta-voz do Pentágono, assumiu que a última palavra era mesmo da Polónia, mas avisou também que “levantaria problemas sérios para toda a aliança da NATO”. Foi o que o major-general português também explicou ao Observador: um ataque da Ucrânia à Rússia com aviões de um membro da NATO podia ser recebida como um ataque da aliança como um todo. No pior dos cenários, seria como abrir portas à III Guerra Mundial.
Artigo atualizado às 10h39 de sexta-feira, 11 de março, com informações sobre a mobilização das trupas russas durante a madrugada.