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ETIENNE LAURENT/EPA

ETIENNE LAURENT/EPA

À esquerda, custa engolir um sapo chamado Emmanuel Macron

Durant diz-se socialista, como Miterrand, mas está desiludido e vai votar em Le Pen. Suzanne sempre votou à esquerda, mas agora hesita perante Macron. “Desde quando os banqueiros são de esquerda?”

Reportagem em Marselha, França

“Já não se pode confiar em ninguém.”

É este o desabafo inicial de Durant — e isto nem tem nada a ver com política. Este homem de 63 anos, mecânico reformado, chegou há cerca de meia hora a este parque de estacionamento no 11º arrondissement de Marselha, um bairro de classe média-baixa. O combinado era mostrar um dos seus três carros a um potencial comprador.

“Combinámos às 12h00 e até agora nada. Uma pessoa está à espera deles e depois…”, lamenta este homem de 63 anos, que acaba por encolher os ombros. Afinal, não é hoje que vai vender o seu Citröen Xantia de 1987. Já se conformou.

O mesmo não se pode dizer quando toca a política. Aí, chegou a depositar todas as suas esperanças em apenas um homem: François Hollande, o Presidente francês, socialista, eleito em 2012.

“Eu até chorei de felicidade”, recorda, falando da noite de 6 de maio de há cinco anos. Naquela altura, Nicolas Sarkozy ficou sem o seu segundo mandato — e isso deixou Durant emocionado. “Finalmente esta merda vai acabar”, disse à mulher, referindo-se ao quinquenato de Sarkozy. “O socialismo está de volta.”

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“Viva Le Pen!”

Hoje, sente-se desiludido. “O nojento do Hollande e os seus amigos? Eles sabem lá o que é socialismo, eu tenho-lhes ódio”, diz, com a voz exaltada, enquanto remexe na bagageira do carro, onde tem as peças que mudou na viatura. Estavam ali todas à mostra para o potencial comprador ver que tinham todas sido substituídas por outras mais novas. É no processo de arrumação, dentro de um saco de supermercado, que diz: “Viva Le Pen!”.

Durant não se chama Durant — é este o nome fictício que pede que escrevamos. “O meu filho é polícia, tem um cargo de chefia, e eu não quero que as pessoas liguem logo uma coisa à outra… Pode ser perigoso para mim e para ele saber-se que eu vou votar na Marine Le Pen”, diz, meio em sussurro. “E o meu filho também vota nela. Ele e todos os polícias. Ele já me disse muitas vezes: ‘Pai, é preciso ter cuidado em quem votamos…’.”

Falar baixo é mais reflexo apreendido do que necessidade, já que o 11º arrondissement é aquele onde Marine Le Pen teve mais votos em toda a cidade de Marselha. Ao todo, foram 32,25% dos votos para a candidata da Frente Nacional; seguindo-se Jean-Luc Mélenchon, da França Insubmissa (extrema-esquerda) com 22,2%; e só depois Emmanuel Macron, o centrista liberal que venceu a primeira volta a nível nacional, com 17,75%.

Durant não votou em nenhum deles. Pela primeira vez, votou na direita. Ou seja, em François Fillon, que aqui conseguiu juntar 17,02% dos votos. “A esquerda lixou-o bem lixado”, diz Durant, referindo-se ao rol de escândalos em que Fillon esteve, e continua a estar, envolvido: desde a alegada aceitação de fatos de luxo ou o emprego fictício da sua mulher e filhos. Tudo isto quando era deputado e, mais tarde, primeiro-ministro.

“Isso é uma conspiração para acabar com ele, é uma conspiração do Hollande e dos jornalistas a quem ele enche o…”, diz, para depois travar o discurso, a tempo de impedir o impropério. “Se um amigo te der um fato, tu não aceitas?! Claro que aceitas. E o que é que os outros deputados fazem? Eles também dão empregos à família. É costume! Pode não ser totalmente aceitável, mas é legal e ele não é o único.”

Durant não está habituado a defender políticos de direita, mas agora é a única coisa que faz. “Os ditos socialistas, que de socialismo não entendem nada, deram cabo disto tudo”, lamenta. “Deram cabo de França, deram cabo de tudo, partiram a Europa toda e agora nós ficámos cá para limpar a porcaria.”

Verdadeiros socialistas? “Jaurès, Mitterrand… e eu!”

Para o mecânico reformado, não há dúvidas de quem são os verdadeiros socialistas: “É Jean Jaurès, é François Mitterrand… e eu! Nós somos socialistas. Agora, este Hollande e os outros… Esses são todos socialistas de domingo”. Durant explica que, no seu dicionário, socialismo significa: “Reduzir a pobreza e juntar a sociedade através da redistribuição dos meios”. Depois de dar a sua definição, ri-se alto, algo artificialmente e, acima de tudo, ironicamente. “Nada disto aconteceu, nada. Estamos mais pobres. E até digo mais: com Hollande, estou a pagar mais 600 euros de impostos do que com Sarkozy”, diz. “Isto tudo, com uma reforma de 800 euros.”

Hoje, quando olha para a cara angular e polida de Emmanuel Macron, Durant não vê nada mais nada menos do que “a carantonha do Hollande”. “Votar em Macron é dar mais cinco anos de Hollande a França”, resume. “Se for assim, nós morremos.”

O maior problema de Durant é a União Europeia. “As decisões são tomadas em Berlim, são tomadas em Bruxelas, são sempre tomadas lá fora e nós só temos é de pagar e pronto”, aponta. “Querem fazer da França a nova Grécia. Querem deixar-nos todos pobres. Somos pobres, na Europa. Quem é que pode gostar disto?”

No dia de 7 de maio, diz que vai votar em Marine Le Pen “com os dez dedos”. “Não tenho hesitação absolutamente nenhuma quanto a isso”, garante. Ainda assim, admite: “Acima de tudo, isto é um voto contra Macron, contra Hollande. Só depois disso é que é um voto em Marine Le Pen”.

Durant nasceu na Argélia. Só aos 23 anos — ou seja, há 40 certos — é que se mudou para França, para estudar engenharia mecânica. Antes de terminar o curso, casou-se com uma francesa e teve o primeiro filho. Os estudos ficaram para trás. Grande parte da sua herança cultural também. “Vim para França portanto tenho de agir como francês”, explica, como quem diz uma verdade incontestável. Ainda assim, houve uma coisa que manteve: o Islão. Todos os dias, cinco vezes sem falha, Durant vira-se para Meca e reza a Alá.

Nada disto lhe parece incompatível com o seu sentido de voto. “A Le Pen não é nada contra o Islão, isso é patranha dos jornalistas, é só blá-blá-blá dos gajos da BFMTV”, diz, referindo-se a um dos canais de notícias mais vistos em França e que a direita e extrema-direita têm acusado de parcialidade a favor de Macron. “Ela quer é varrer os fanáticos, aqueles tipos que não são muçulmanos”, diz. E, quanto à imigração, o franco-argelino diz: “Não faz sentido estarmos a abrir as portas do país à imigração maciça quando há milhões de desempregados. Lamento, mas é imbecil”.

Hoje, o que ouve dizer da boca de Le Pen é tudo o que lhe tem faltado ouvir da parte de Hollande. “Ele não diz nada sobre a imigração, não diz nada sobre o desemprego, não diz nada sobre a pobreza, não diz nada sobre a Europa”, acusa. “Porque é que agora eu haveria de votar em quem ele me diz para votar? Vou votar num gajo igual a ele? Ora essa!”

Durant está ansioso para a segunda volta das eleições. Tanto que já conta os dias até 7 de maio. Levantando as mãos grandes e calejadas quase à altura da cara, conta: “Um, dois, três, quatro… onze! Faltam onze dias para o Hollande ir à vida”. E quem é que o que o vai substituir? Para este reformado de 63 anos, a resposta é óbvia: “A Marine Le Pen. E sabes porquê? É muito simples. É porque os verdadeiros socialistas, como eu, vão votar nela. Juntos, somos muitos. Até o Mélenchon vai votar nela, vais ver!”.

O sacrifício de votar num “banqueiro” para impedir uma “fascista”

Aquilo que Durant tanto deseja é o que Suzanne Sgarlata, de 80 anos, mais teme. “Como é que é possível, de repente, as pessoas de esquerda irem votar naquela gente?”, pergunta, exasperada, esta secretária reformada. “Mas agora já somos um bairro de ricos, para andarmos a votar na direita, é isso?”, pergunta, apontando para os prédios em volta no 11º arrondissement: altos, brancos, sem sinais de luxo.

Suzanne sempre votou à esquerda. “Sempre, sempre, sempre. Votei sempre nos comunistas ou em quem estivesse mais à esquerda”, diz. Nas segundas voltas, foi sempre no “Partido Socialista, só para evitar que a direita fosse ao poder”. E em 2002, na ausência de um candidato de esquerda, votou em Jacques Chirac, de direita, para evitar a subida ao poder de Jean-Marie Le Pen, de extrema-esquerda.

Agora, em 2017, sente que está a ouvir ecos de 2002. Isto porque, na sua maneira de ver o mundo, Macron está muito longe de ser um homem de esquerda. “Desde quando os banqueiros são de esquerda?”, pergunta, de forma desafiadora.

João de Almeida Dias

Suzanne está longe de ser a única pessoa à esquerda a expor as suas hesitações em relação a Macron. O mais notório de todos os franceses foi Jean-Luc Mélenchon, o quarto mais votado nas eleições, com 19, 5%. Na noite de domingo, recusou apelar ao voto a qualquer candidato — e voltou a fazê-lo esta quarta-feira, mesmo depois de o seu diretor de campanha e também o Partido Comunista Francês, que apoiou a sua candidatura, terem apelado ao voto contra Le Pen.

Este silêncio de Mélenchon acentuou ainda mais as linhas que já vinham a ser traçadas na primeira volta das eleições presidenciais francesas: muito para lá da esquerda contra a direita, agora estão em confronto duas ideias igualmente antagónicas. Por um lado, Macron defende a permanência de França na UE e apela a uma maior integração europeia, ao mesmo tempo que, dentro de fronteiras, pretende diminuir impostos às empresas e liberalizar o mercado de trabalho. Por outro, Le Pen defende uma política soberanista, implicando uma saída da UE e do euro, e renega o liberalismo económico outrora defendido pelo seu pai, fazendo antes a apologia daquilo a que chama de “protecionismo inteligente”.

Suzanne ainda não conseguiu habituar-se a esta dicotomia. “No meu tempo, a direita era dos empresários, dos ricos, das pessoas com mais posses, e a esquerda era do povo”, simplifica. “Agora isto anda tudo trocado”, queixa-se. Tudo isto a deixa cheia de interrogações. Afinal de contas, nenhum dos seus amigos de longa data e que são de esquerda lhe disse que agora votava na Frente Nacional. À exceção de um: “É um amigo que era maquinista nos comboios e que era sindicalizado e tudo. Era comunista, mas comunista a sério. Mas depois a mulher dele fugiu com um árabe e ele passou-se para a Frente Nacional”. Quanto aos outros, Suzanne não soube de nenhuma mudança. “Ou se calhar houve e eles não me querem dizer…”

No domingo passado, Suzanne votou em Jean-Luc Mélenchon. No domingo de 7 de maio, ainda não sabe bem. Mas tem uma inclinação: “Acho que o meu coração me vai dizer para me levantar e para ir votar no Macron. Mas vai custar-me tanto…”. Quando diz estas palavras, Suzanne faz uma cara de dor. “Nunca pensei, na minha vida, alguma vez vir a votar num banqueiro que quer cortar nos apoios sociais”, diz. “Nunca pensei votar, mesmo na segunda volta, numa pessoa que deu cabo do PS, que traiu uma série e de pessoas e a partir daí foi só subir, subir subir… Tudo isto para acabar com o socialismo!”

“Le Pen… Só de ouvir o nome tremo”

Ainda assim, a perspetiva de uma presidência de Macron não lhe é tão difícil de digerir como uma presidência Le Pen. “Le Pen… Só de ouvir o nome tremo logo, começando no pai, passando pela filha e acabando na sobrinha!”, diz. “No dia em que Marine Le Pen for Presidente, isto fica uma balbúrdia. A começar pelos árabes, de quem eu gosto e que acho que são na maioria boa gente, que vão revoltar-se. E com razão, porque ela é uma fascista!”, diz. “O dia em que ela for Presidente vai ser uma vergonha. Uma vergonha mundial!”

Existe, porém, uma coisa que liga Suzanne a Marine Le Pen: o sentimento anti-UE. “A UE era uma ideia muito boa, mas depois foi caindo tudo por terra”, lamenta. “A partir do momento em que, em 2005, aqui em França, votámos “Não” [ao que viria a ser o Tratado de Lisboa] e depois a Europa fez que não viu e continuou em frente, ficámos logo esclarecidos da maneira como as coisas são”, recorda.

Uma das coisas que mais a chateia na UE é o comércio. Para esta reformada de 80 anos, a integração europeia teve um resultado que considera “peculiar” mas também “irrefutável”: a fruta já não sabe ao mesmo. “Antigamente, quando não havia estas regras todas, a fruta era uma coisa natural, era como se fosse do nosso quintal, sabia sempre bem, era verdadeiramente da natureza”, diz, nostálgica. “Hoje, está tudo feito para as grandes superfícies, porque os pequenos agricultores já não conseguem fazer contas à vida. E qual é o resultado disso? A fruta é praticamente feita em fábricas. Não presta!”

Os morangos sabem a “água suja”, os pêssegos são “duros como pedras”, as maçãs mais parecem ser feitas de “cartão”. “Por causa disto, já nem como muita fruta hoje em dia”, diz, para depois sublinhar: “Eu sei que estou a desviar-me do assunto, mas isto também é política. A comida também é política!”.

Recentemente, fez exames ao sangue. O médico disse-lhe que estava tudo bem. “Minha senhora, com a sua idade e com estes níveis, você não tem de se preocupar com nada”, disse-lhe o médico. “Vai durar uns bons anos, com certeza.” Isso é coisa que lhe agrada do ponto de vista pessoal, já que é sinónimo de mais tempo com o marido, filhos e netos. Mas, agora que fala de política, começa a preocupar-se — mesmo que o faça com um riso. “É que se eu viver mais anos isso também quer dizer que vou ser governada pelo Macron ou pela maluca da Le Pen”, diz. “Isso não me convém nada… Vou começar a comer porcarias todos os dias. De qualquer modo, a fruta não presta. E assim é da maneira que não vejo o fim disto!”.

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