Claire Henderson trabalha há mais de vinte anos na promoção a capacitação de pessoas com problemas de saúde mental, quer no Reino Unido, quer em países em vias de desenvolvimento em África e na América do Sul. Psiquiatra, especialista em saúde pública e professora universitária do King’s College, em Londres, tem feito investigação em áreas como autogestão da doença, redução do estigma e literacia em saúde mental.
Criar conhecimento sobre as doenças mentais, nomeadamente as mais graves, sobre as quais as pessoas sabem menos e temem mais (e daí o maior estigma) é, para a especialista, fundamental para criar empatia e garantir a igualdade de tratamento e acesso aos serviços públicos.
Qual a importância de iniciativas públicas para redução do estigma e de literacia em saúde mental, como a “Time to Change” [Tempo de Mudar], a maior campanha deste género no Reino Unido, que se prolongou por mais de dez anos e cuja investigação para a avaliação foi coordenada por si? Quais os principais resultados?
Avaliámos o impacto da campanha, ao longo do período em que decorreu, de 2008 a 2021, ao nível da população em geral, e essa avaliação revelou melhorias nas atitudes em relação a pessoas com problemas de saúde mental. Por exemplo, a noção de que a terapia psicológica pode funcionar, de que a medicação pode funcionar, de que as pessoas podem recuperar. Este tipo de conhecimento é importante para reduzir o estigma.
Outro aspeto que melhorou foi a intenção manifestada de mudança de comportamentos. Perguntámos às pessoas se estariam dispostas a trabalhar, a ter uma relação, a viver ou a ter um vizinho com um problema de saúde mental e mais gente respondeu que sim.
Verificámos também que mais pessoas admitiram aos entrevistadores que tinham um problema de saúde mental, o que pode ser um indicador de que estavam mais dispostas a revelar isso, já que se tratava de entrevistas presenciais. Também foram mais as que se mostraram abertas a revelar o problema a um médico de clínica geral, à família e aos amigos. Ou seja, verificou-se maior abertura das pessoas relativamente a esta questão
Mas uma campanha deste tipo leva o seu tempo a produzir resultados.
Sim, nos primeiros anos, não se registaram mudanças claras. Depois, começámos a ver melhorias. De uma campanha destinada à população em geral não se esperam mudanças de fundo a curto prazo. Mas houve mudanças significativas, até porque a “Time to Change” trabalhou com escolas, empresas, serviços públicos…
E na cobertura da imprensa sobre esses temas? Notaram diferenças?
Sim, sem dúvida. Tínhamos uma série de hipóteses sobre a forma como a cobertura de tópicos de saúde mental poderia mudar e tínhamos uma grelha de análise bastante detalhada que nos permitia avaliar se um artigo era, em geral, mais estigmatizante ou mais anti-estigmatizante. Verificámos, ao longo do tempo, uma mudança. Inicialmente, em 2008, o prato da balança era mais pesado do lado estigmatizante. Dez anos depois, a situação estava invertida, com uma cobertura noticiosa mais anti-estigmatizante.
Pode dizer-se então que o impacto foi positivo?
Sim, mas o que também descobrimos – quando avaliámos se a melhoria era a mesma quer se tratasse de um distúrbio mental comum, como depressão ou ansiedade, ou uma doença mais rara com a qual as pessoas estão menos familiarizadas, como a esquizofrenia — foi que, quando o artigo era sobre um diagnóstico específico, a evolução no sentido de uma menor estigmatização verificou-se mais quanto o assunto era a depressão do que quando era a esquizofrenia. E essa é a minha preocupação: o trabalho que ainda temos pela frente é o de reduzir o estigma contra as doenças menos comuns, com as quais as pessoas estão menos familiarizadas e das quais têm mais medo.
Mas a campanha “Time to Change” não incluía as doenças mentais graves?
Incluía, mas o problema é que o estigma em relação a estas é muito maior. Por isso penso que é preciso ter um maior foco nestas doenças para ter impacto e fazer diferença na vida das pessoas. E talvez seja necessário utilizar métodos diferentes.
Que tipo de métodos?
Temos de falar das organizações e dos serviços públicos. Porque aí ainda há estigma. Nós colocámos questões sobre as experiências de discriminação das pessoas, mais especificamente sobre os 12 meses anteriores, em cada ano. E notámos uma redução nos níveis gerais de discriminação, mas isso foi sobretudo nas relações informais: amigos, família, parceiros. As pessoas referiram menos discriminação no que respeita às relações íntimas. Mas não se registaram muitas mudanças quanto ao que as pessoas responderam sobre a discriminação nos serviços públicos, nos cuidados de saúde mental, primários, na habitação, na polícia… E a verdade é que as pessoas com doença mental grave têm muito contacto com pessoas dos serviços públicos. Por isso, penso que este deveria ser um dos objetivos: trabalhar mais com as organizações. Os hospitais, a assistência social, a polícia, precisam de mudar, precisam de se reformar a partir de dentro.
E que medidas podem ser tomadas para isso?
É uma questão, por exemplo, de pensar que as pessoas que são afetadas por problemas graves de saúde mental estão abrangidas pela nossa Equality Act, aprovada em 2010 [lei que protege contra a discriminação e o tratamento injusto com base em características pessoais, como a incapacidade]. Temos de pensar em dar-lhes um melhor acesso aos serviços, porque é um direito que têm. Assim, por exemplo, se as pessoas têm dificuldade em deslocar-se a um hospital para uma consulta externa, temos de pensar em como facilitar essa deslocação. Não são só as pessoas que usam cadeira de rodas que precisam de rampa. Por exemplo: se alguém não pode sair de casa por causa de uma deficiência física, um enfermeiro vai vê-lo em casa. Mas se alguém está incapacitado por uma doença mental, os serviços consideram que pode deslocar-se. Só que algumas pessoas não podem mesmo, porque a doença mental as impede e, por isso, é uma questão de sensibilização para os direitos das pessoas, ao abrigo da Equality Act.
Foi também por isso que desenvolveu o programa de formação READ (Responding to Experienced and Antecipated Discrimination)? Para aumentar as competências, além das atitudes e conhecimento sobre saúde mental? Para dar formação aos profissionais de saúde, da ação social e das forças de segurança na área da saúde mental.
Sim. Criámos um programa de formação para estudantes de medicina — temos uma rede muito boa de pessoas interessadas neste tema, até a nível internacional. Mas não se trata apenas de reduzir o estigma, trata-se de refletir sobre qual é o seu papel profissional em relação às pessoas com doença mental e como podem ser defensores ou aliados destas. Faz parte do nosso papel profissional ajudar as pessoas a reduzir o impacto do estigma e da discriminação. Trata-se, portanto, de identificar o estigma nos próprios formandos e de desconstruir e responder a isso.
Esta formação pode ser aplicada noutros contextos? Acha que pode ser eficaz para a mudança?
Eu gostaria de tentar. Comecei no meu próprio território, com estudantes de medicina e profissionais de saúde mental, mas seria interessante alargar. Além disso, toda a gente tem de aprender sobre igualdade e diversidade e sobre a Equality Act, porque as pessoas associam a lei à igualdade racial ou de género, mas também tem a ver com incapacidade. Se alargarmos este conceito às doenças mentais, a questão passa a ser de aplicar a lei, nomeadamente nos serviços públicos.
O trabalho é um dos contextos em que a discriminação e o estigma pode afetar mais a vida das pessoas com problemas de saúde mental. Como é que se pode intervir nesse contexto?
A “Time to Change” trabalhou muito essa área. Pediram aos empregadores que assinassem um “compromisso ‘Time to Change'”que incluía uma reflexão sobre a forma como tratam os empregados com problemas de saúde mental e como os apoiam. Há uma série de guias sobre esta matéria para os gestores que incidem na forma como devem apoiar alguém com um problema de saúde mental. A ênfase é colocada na necessidade de tratar as pessoas da mesma forma que se trataria se alguém tivesse um problema de saúde física. Este é um dos aspetos em relação ao qual verificámos uma evolução no inquérito que fizemos sobre menos discriminação relacionada com o emprego. Mas, dito isto, continua a ser um grande problema. E varia muito entre diferentes organizações e diferentes empresas, porque tem realmente a ver com a liderança e a cultura organizacional.
Como assim?
É muito mais fácil para as grandes empresas fazerem o que é correto, porque têm o seu próprio serviço de saúde ocupacional e têm advogados, sabem o que têm de fazer para cumprir a legislação. Além disso, podem ser mais flexíveis relativamente ao tipo de adaptações de que as pessoas podem necessitar, porque têm uma maior força de trabalho. Se alguém tem dificuldade em chegar mais cedo devido à medicação, pode haver outra pessoa para quem seja conveniente começar mais cedo e acabar mais cedo, porque quer ir buscar os filhos à escola, por exemplo. Portanto, há mais flexibilidade. Numa pequena empresa, que é onde a maioria das pessoas trabalha, há menos flexibilidade e menos conhecimento sobre a legislação e os deveres como empregador.
E como combater o estigma que as próprias pessoas com problemas de saúde mental carregam?
Muitas vezes, as pessoas não se consideram incapacitadas, nos termos definidos pela Equality Act, e por isso não consideram ter esse tipo de proteção, porque a doença vai e vem. No entanto, a lei abrange-as. Se estiver doente há mais de 12 meses ou se for provável que venha a estar doente, mesmo que a medicação lhe permita funcionar corretamente, continua a estar protegido ao abrigo da lei porque continua a ser vulnerável à discriminação, se o diagnóstico for conhecido. Muitas vezes as pessoas não pensam em si próprias dessa forma, por isso não se apercebem dos seus direitos. Esta é uma questão essencial no combate ao estigma e à discriminação: a promoção da literacia em saúde mental para o empoderamento dos doentes.
Em que medida é que esta campanha e a investigação que fez tiveram impacto nas políticas públicas ou na legislação mais recentes sobre esta matéria no Reino Unido?
É difícil traçar as linhas, mas está em curso uma revisão da nossa legislação sobre saúde mental. A sensação é a de que precisamos de avançar para um tipo de legislação mais compassiva, mais baseada nos direitos e mais capacitadora. Isso deve-se, em parte, como é aliás reconhecido no relatório, ao facto de as atitudes das pessoas relativamente à saúde mental terem mudado.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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