Enviada especial em Manchester, Inglaterra
Está a chover muito em Manchester. E “muito”, nesta frase, pode ser traduzido por “há vários dias consecutivos que não pára de chover”. Mas Manchester fica em Inglaterra e em Inglaterra, apesar de tudo, a chuva é um contexto muito subjetivo. A uma hora do arranque da receção ao Tottenham, nas imediações do Etihad, os adeptos do Manchester City deslocavam-se sem qualquer tipo de chapéu de chuva à vista, com casacos quentes e a cabeça coberta, enquanto chovia torrencialmente. Aqui, a água escorre dos casacos e ninguém parece estar propriamente preocupado com isso. Afinal, a única coisa que importa é que é dia de jogo.
Um dia de jogo importante. O Manchester City recebia o Tottenham em casa e procurava colocar um ponto final a um ciclo trágico de quatro derrotas consecutivas que começou precisamente contra os spurs, na Taça da Liga, e se prolongou contra Bournemouth, Sporting e Brighton. Pep Guardiola nunca tinha perdido quatro vezes seguidas em toda a carreira – mas talvez por isso tenha decidido, em conjunto com o clube, anunciar a renovação de contrato por mais duas temporadas e garantir que vai continuar ao leme dos atuais tetracampeões ingleses.
As conversas pré-jogo, porém, foram dominadas por outro assunto. Mesmo ao lado do Etihad, já surgem muitas luzes no Co-op Live, o pavilhão de espetáculos que é a maior arena coberta da Europa. A partir das 19h, numa altura em que o jogo ainda estava a decorrer, ia começar o Hits Radio Live, um espetáculo com vários artistas organizado por uma rádio que passa por inúmeras cidades de Inglaterra. Este sábado, enquanto James Maddison bisou ainda durante a primeira parte, Rita Ora esteve a cantar uns metros ao lado. E nenhum adepto do Manchester City estava propriamente contente com a coexistência dos dois eventos.
“Já é tão difícil chegar aqui, tinha de ser hoje?”, explica-nos Ian, que assiste aos jogos dos citizens desde 1978 e não gostou de dividir o espaço no tram com os milhares que vão assistir ao concerto no Co-op Live. “Já há tantas estradas cortadas por causa do jogo, tanto trânsito, tanta gente nos transportes. Ainda por cima um jogo destes, contra os spurs. Não havia mesmo outra data, tinha de ser hoje?”, questiona o duradouro adepto, que se protegia do frio com um cachecol azul e branco bem apertado à volta do pescoço.
Ian apoia o Manchester City há muito tempo. Apanhamo-lo à porta do Maine Road Cafe, um dos pequenos pubs que existem à volta do Etihad – e mesmo ao lado de um outro que tem uma enorme imagem de Noel Gallagher, elemento dos Oasis que é um conhecido adepto citizen, a ocupar toda a fachada. Enquanto mordisca uma sanduíche, Ian deixa-nos uma certeza: só as gerações mais novas é que estão demasiado preocupadas com as quatro derrotas seguidas.
“Eles habituaram-se a ganhar! Claro que não gosto de perder, mas a minha vida toda foi mais parecida com isto do que com o que aconteceu nos últimos anos. Perder uns jogos seguidos é algo que já vi, já passei por isso. Custa, mas passa”, garante. Tentamos contrariar: sim, a realidade do City nem sempre foi a de um tetracampeão, mas é impossível não ficar preocupado com quatro derrotas consecutivas em várias competições. Mas Ian recorda-nos o motivo de ter tanta fé.
“O Pep tornou-se a nossa religião, a nossa fé. Para mim, a notícia da semana foi ele ter ficado, não foram derrotas ou o jogo com o Tottenham. Enquanto ele cá estiver, vamos ficar bem”, sublinha. Uma deixa que abre a porta a outra pergunta, entre e uma outra dentada na sanduíche e um pedido para nos abrigarmos da chuva que não dá tréguas – um pedido português, claro, porque Ian não está mesmo preocupado com a água que escorre do casaco.
Já mais protegidos, é hora de falar sobre Hugo Viana. “Quem?”, responde Ian, e percebemos desde logo qual será o destino da conversa. Explicamos que é o substituto de Txiki Begiristain, o novo diretor de futebol, que vem do Sporting e que até foi jogador do Newcastle há uns anos. Faz-se luz. Mas Ian explica que a contratação do antigo internacional português não foi “big news” e que, na verdade, o assunto foi visto ao contrário: até que ponto é que a saída de Begiristain, amigo próximo de Pep Guardiola e antigo companheiro do treinador no Barcelona, poderia também significar a saída do espanhol? Não aconteceu e Ian mantém a fé.
O Etihad é apenas o sétimo maior estádio de Inglaterra, atrás de Wembley, Old Trafford ou Anfield, mas não deixa de ser menos espetacular. Todo o recinto congrega a ideia de um dia de jogo, com dezenas de roulotes de todo o tipo de comida e até uma banda a tocar ao vivo as músicas que se cantam nas bancadas, enquanto que dois ecrãs gigantes mostram os momentos mais importantes da atual temporada e transmitem a emissão em direto da televisão do clube. As bases das estátuas de Vincent Kompany, Sergio Agüero e David Silva servem para copos e nem quando um grupo de adeptos do Tottenham passa a cantar, claramente em tom de provocação, os adeptos da casa escolhem retirar o olhar do lanche-ajantarado.
Numa das roulotes, esta de comida indiana, está Sarah. Trabalha ali mesmo, ao balcão, mas aceita conversar durante os minutos da pausa para o cigarro – ou para o vape, já que não se vê ninguém a fumar um cigarro normal em Inglaterra, mas é mais do que comum ver um fumador de vape. Diz muito rapidamente que não é a pessoa indicada porque só começou a gostar de futebol e a apoiar o Manchester City há uns dois anos, quando passou a trabalhar de forma mais regular nas imediações do Etihad em dia de jogo, mas é a primeira a confirmar o que Ian tinha dito.
“Acho que ninguém sabe bem o que dizer, na verdade. Uma coisa é empatar uns jogos, uns deslizes, outra coisa é perder quatro vezes. E perder com o Bournemouth e o Brighton, nem sequer foram jogos grandes”, explica, ainda que mantenha a confiança de que o pentacampeonato não vai escapar. “O Liverpool só conseguiu com o Klopp. Estão muito bem agora, mas faltam muitos jogos e vão acabar por cometer erros”, acrescenta.
E se Sarah partilha a ideia de Ian na hora de defender que tudo está bem enquanto o “boss” estiver em Manchester, também não se esquece de lembrar que chegou outro treinador à cidade. Sorri assim que falamos em Ruben Amorim e tudo o que tem a dizer, na verdade, está longe de ser sobre futebol. Pelo menos sobre o futebol que se joga dentro de campo.
“Foram buscar o fashion icon deles, não foi? Nós tínhamos o Pep e as golas altas, eles foram buscar um tipo giro também. Chegou de sapatos Prada e uma sweater Valentino, as minhas amigas disseram-me”, diz, entre gargalhadas tímidas que são um pretexto ótimo para voltar ao trabalho. Na verdade, a opinião não é surpreendente: nas últimas horas, o Manchester United anunciou que as vendas do casaco verde que Ruben Amorim usou no vídeo de apresentação, no relvado de Old Trafford, explodiram. “Ele é ouro em marketing. Não se esforça, é autêntico e as pessoas respondem a isso”, disse uma fonte da Adidas à Sky Sports.
Horas depois da conversa com Ian e Sarah, o Manchester City foi goleado pelo Tottenham em pleno Etihad e somou a quinta derrota consecutiva – algo que não acontecia a um campeão em título em Inglaterra desde 1956. Os citizens correm o risco de ficar a oito pontos da liderança do Liverpool, se os reds vencerem o Southampton este domingo, e já têm Chelsea, Arsenal e Brighton a apenas um ponto.
Se já é certo que Pep Guardiola vai trabalhar com Hugo Viana, já que renovou por mais duas temporadas, também é certo que o City nunca esteve tão perto de ver o reinado terminar. Resta saber se a simples continuidade do rei que o criou é suficiente para evitar o fim do império.