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A Garota Não e Luca Argel juntaram-se e gravaram uma "desgarrada poética"

Tijolo por tijolo, dedos na guitarra e acento na poesia: eis “Países”, canção escrita e composta a quatro mãos. Falámos com os dois músicos para conhecer a origem e o fruto deste encontro.

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Dois poetas e músicos conhecem-se por causa de Chico Buarque. Uma história que começa assim não tem como dar errado. Mesmo que o Chico, em pessoa, não estivesse de facto presente no momento em que Luca Argel e Cátia Mazari Oliveira (que assina com o nome artístico A Garota Não) trocaram o primeiro olá. “Conhecemo-nos num evento literário com concertos de tributo ao Chico Buarque”, põe rigor na narrativa Luca Argel. Ele tinha ouvido falar de Cátia através de Ana Deus e, sendo Ana Deus parceira de canções e poemas, Luca logo se pôs atento à Garota e ao seu álbum 2 de abril, editado nesse mesmo mês deste 2022 que agora termina. “Foi um dos discos portugueses que mais ouvi este ano” — a frase é de Luca Argel, mas poderia ser dos muitos que descobriram as canções da cantora e compositora de Setúbal nos últimos meses.

Já Cátia descobriu o trabalho do brasileiro com morada em Portugal pouco tempo antes de se terem cruzado nesse encontro buarquiano de maio e ficou “absolutamente viciada” em Samba de Guerrilha, disco editado em 2021. “É brilhante”, exclama, mostrando-se arrepiada pela forma como Luca aborda os direitos e valores humanos na sua obra, desconstruindo e respeitando (tudo ao mesmo tempo) uma das mais ricas tradições musicais brasileiras.

A ele encanta-lhe em Cátia a forma como ela usa as palavras e constrói as canções: “É uma compositora de mão cheia, com letras inteligentes, com conteúdo e profundidade. Tem uma voz de se colocar no mundo com ideias próprias e di-las de uma forma bonita”. A ela o facto de Luca, sendo tão jovem (ele tem 34, ela 39), ter já uma consciência política tão vincada: “A forma de entrelaçar a arte, o manifesto, a cultura e a cidadania são coisas que me impressionaram muito nele”.

[o vídeo de “Países que Ninguém Invade”, realizado por Pedro Semedo:]

De tão impressionada ficou, a Garota fez uma coisa que nunca havia feito: desafiou alguém, Luca Argel neste caso, para fazer uma canção conjunta. “Sou muito reservada, mas senti que tinha espaço e muita vontade de fazer uma coisa com ele.” O músico brasileiro alinhou de imediato e, quatro dias depois, estava a mandar um primeiro áudio a Cátia. “Aí ela pegou naquele fio e escreveu mais um pouquinho”, conta. “Foi uma canção feita tijolo por tijolo”. Já Cátia Oliveira prefere vê-la como uma “desgarrada poética”, muito divertida e muito leve.

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Países que ninguém invade nem contrafaz

Assim surgiu “Países”, canção que, embora pronta desde o verão, foi lançada agora, esta sexta-feira dia 16 de dezembro, a uma semana do Natal. “Calhou assim”, diz Luca, para Cátia reforçar que “calhou mesmo bem”. Parece que estamos a falar com os dois em simultâneo, mas de uma conversa para a outra houve um pôr e um nascer do sol de distância.

Os testemunhos encaixam-se sem resistência, como se encaixam as suas vozes num tema que pede para que nos complementemos mais enquanto indivíduos e sociedade. “Complementar em todos os sentidos”, vinca A Garota Não, “no amor, na amizade, na esfera profissional e na forma como nos podemos ajudar uns aos outros”. E por isso, neste novo tema cantam:

“O dia cresce como as plantas sem dar a volta no planeta
o amor dissolve toda zanga só não sabe quem não tenta”

Aquilo que interessa a Cátia Oliveira é fazer uma leitura sobre “realidades mais ou menos visíveis” através de uma canção, esse elixir que tem o poder de transformar essas próprias realidades que retrata. “Não é possível desligar a arte da vida política. Quanto lanço uma canção ou escrevo um disco, há esse esforço para que não seja um disco para passar numa esplanada”

A mensagem ganha força no refrão e nos “países que ninguém invade nem contrafaz”, frase feita verso e símbolo de crenças e valores mais inabaláveis. “Esses países são as coisas em que mais acreditamos e que mais amamos, são todo o tipo de coisas que carregamos dentro de nós e que não podem ser tiradas”, explica Luca. Nesses países estão obviamente a arte e a música e aqui não resistimos em fazer uma ponte com a “Canção sem final” do álbum d’A Garota Não:

“Podem decretar o fim da arte
e a gente faz uma canção sobre isso”

Música que se sabe posicionar

“A arte é um país que ninguém invade”, deixa claro Cátia, como se isso fosse uma dúvida vindo de dois dos escritores de canções mais interventivos e poéticos dos nossos tempos. “Eu não sei em que quadro me insiro. Preciso só de fazer música que faça sentido para mim”, nota, embora Luca Argel seja perentório em afirmar que A Garota Não trouxe novamente a música de intervenção para a cena musical portuguesa: “Usar a canção como intervenção na sociedade é uma coisa que sai dela de uma forma muito natural”.

"Fizemos isto com muita vontade e empenho, mas sem aquela coisa de ter que responder aos timings da indústria”, diz Cátia

Nuno Batista

Seja de intervenção ou de manifesto, aquilo que interessa a Cátia é fazer uma leitura sobre “realidades mais ou menos visíveis” através de uma canção, esse elixir que tem o poder de transformar essas próprias realidades que retrata. “Não é possível desligar a arte da vida política. Quanto lanço uma canção ou escrevo um disco, há esse esforço para que não seja um disco para passar numa esplanada”. A ela não lhe basta fazer música só para entreter. E a Luca Argel também não.

É por isso que esta “Países”, embora relativamente singela e artesanal na forma como alterna e sobrepõe vozes, sempre amparadas por uma guitarra, tem em si um clima de reflexão sobre um ano cheio de episódios conturbados. “Espero que esta canção ajude um pouco a processar o ano que passou e alinhe o pensamento para o próximo”, refere Luca Argel.

Não nos tivessem contado a história toda sobre esta canção, acreditaríamos piamente que tinha sido composta com dezembro no pensamento, esse mês que mistura tristeza e alegria como se fosse uma receita de roupa velha, bem envolvida na panela. “Foi uma das coisas que eu comentei com ela: apesar de não termos feito a música a pensar nesta época, eu tive essa impressão”.

“Espero que esta canção ajude um pouco a processar o ano que passou e alinhe o pensamento para o próximo”, refere Luca Argel

Octavio Passos/Observador

Se só saiu agora para o mercado, deveu-se essencialmente aos caprichos do tempo (o tempo de preparação do videoclip e a vontade de não empurrar a canção para o próximo ano) e a um processo de composição e difusão totalmente descomprometido. “Não tínhamos urgência nenhuma em lançar a canção. Fizemos isto com muita vontade e empenho, mas sem aquela coisa de ter que responder aos timings da indústria”, diz Cátia. O tempo, sempre sábio, colocou “Países” no momento certo.

O ano em que “as mulheres dominaram” em bom português

E porque estamos em época de balanços, não resistimos em perguntar a Luca Argel e à Garota o que acharam deste ano artístico português. Ele, que tem o hábito de ir tirando notas ao sabor dos dias, deu-se conta de que os álbuns mais interessantes que ouviu nos últimos doze meses tinham vozes femininas à frente. “A Garota Não encabeça a lista, mas a Aline Frazão lançou um disco incrível, as Sopa de Pedra, a Maria Reis, os Lavoisier, os Fumo Ninja e as Fado Bicha também. Não sei o que isso quer dizer, mas do que mais me interessou, as mulheres dominaram”.

O ano que vem terá pelo menos mais uma mulher em destaque. Sabina será o novo disco de Luca Argel e é baseado numa personagem que existiu no Brasil entre os séculos XIX e XX. Para lhe conhecermos a história, teremos que esperar por fevereiro, mais precisamente pela quarta-feira de cinzas, data tornada ritual por Luca para lançar os seus discos.

Já ela, embora tendo passado muito tempo presa em 2021, com o Samba de Guerrilha de Luca Argel, destaca igualmente as “miúdas armadas com conhecimento, engenhos e maquinarias próprias”, como Ana Lua Caiano, que deram cartas nos palcos nacionais. “Estamos a viver uma fase rica do ponto de vista da diversidade e eu fico feliz por fazer parte deste movimento de florescimento da música e da música cantada em português.” Porque, nota Cátia, se antes havia uma certa tentativa de universalizar as canções com o uso do inglês, agora assiste-se a um amadurecimento dos artistas em relação à língua portuguesa: “Sinto que agora os projetos que vão surgindo têm muito mais convicção no uso e no bom uso da língua. Há textos muito bem escritos, há pessoal que tem uma prosódia e uma construção poética muito interessantes”.

O ano que vem terá pelo menos mais uma mulher em destaque. Sabina será o novo disco de Luca Argel e é baseado numa personagem que existiu no Brasil entre os séculos XIX e XX. Para lhe conhecermos a história, teremos que esperar por fevereiro, mais precisamente pela quarta-feira de cinzas, data tornada ritual por Luca para lançar os seus discos.

Já A Garota Não está a preparar um terceiro álbum que será “mais descomprometido e fácil, do ponto de vista da produção”, do que o antecessor 2 de abril, diz: “Tenho vontade de gravar uma coisa muito mais leve, mas ainda não posso dizer objetivamente o que vai ser. Preciso de amadurecer isto”. A vontade é que ele saia logo no primeiro semestre do ano. Descontextualizando as palavras de Luca Argel, que certamente não se importará com o gesto e que por esta altura já nos falava de política brasileira, “temos bons motivos para estar bem esperançosos”.

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