“Se estás do lado da Rússia, então realmente não sei o que tu és capaz de fazer aos teus amigos. As pessoas são inocentes da guerra que o Putin está a fazer e realmente espero que a tua família não sinta o mesmo que muitas famílias estão a passar”
Serhii Asliudinov recebeu esta mensagem nos últimos dias à noite, quando falava com o Observador em sua casa. É apenas mais uma desde que a invasão russa começou a separar a comunidade ucraniana em Vila Franca de Xira, onde vivem, segundo os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de 2020, 431 pessoas de nacionalidade ucraniana — a sexta com mais residentes neste concelho. São mais de quatro mil quilómetros que os separam da guerra, mas nem por isso as divergências são compreendidas. E os que repetem a posição de Putin dizem-se segregados pelos que querem um país independente. “Esta guerra não é com a Ucrânia, é entre os Estados Unidos e a Rússia e com maus ucranianos”, atira o pai do jovem.
Como a mensagem que chegou ao telemóvel do ucraniano de 20 anos, têm surgido também comentários no Facebook, dirigidos aos seus pais, Yurii e Elena. A família diz estar atenta para, em caso de ameaças, avançar com uma queixa às autoridades. “Cada um tem o seu pensamento. Os nossos amigos, mesmo nossos amigos, que já conhecemos há muito tempo, têm outro ponto de vista. E, neste momento, não falamos”, explicou Yurii Topor ao Observador, que defende que “esta missão dele (de Putin) é para ajudar o país, para normalizar a situação”. Agora, mantêm contacto com apenas duas famílias — que têm uma opinião semelhante.
Palavras bem diferentes daquelas que são defendidas em casa de Yurii e de Elena ouvem-se nos cafés da zona, cabeleireiros e até numa pequena igreja ucraniana, que por estes dias se encheu de caixotes com roupa, medicamentos, comida e até com um gerador para enviar para a Ucrânia. Em Vila Franca de Xira é visível o sofrimento por tudo aquilo que está a acontecer e Zelensky é o símbolo da resistência ucraniana. E aqui, ou não conhecem ucranianos pró-Rússia, ou deixaram de falar a quem tem esta opinião.
O “sangue da Ucrânia apoia o seu país”. Então, o que defendem os outros?
“Conheço algumas pessoas que apoiavam a Rússia, mas mudaram para a Ucrânia quando começou a guerra, quando começou a haver tanto sangue”, explicou Mayya Trubyuk, uma das pessoas que está a organizar a ajuda que tem como destino o país onde nasceu. E acrescentou: “Os ucranianos, sangue da Ucrânia, estão todos a apoiar a Ucrânia”.
A opinião está longe de ser consensual em Vila Franca de Xira. As irmãs de Yurii vivem “mesmo no centro da Ucrânia”, em Kirovograd. Os militares russos “estão quase a chegar lá”, vai contando o homem de 51 anos, sem que se note algum medo no tom das suas palavras. “Não há problema nenhum, ninguém vai fugir de lá”, porque, acrescenta, “os russos não matam pessoas”.
Confrontado com o número de mortes que tem aumentado desde o início da invasão russa — o último balanço da ONU aponta para 549 mortos e 957 feridos —, este ucraniano fala sobre os milhares de vítimas provocadas pelo conflito nas regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, desde 2014. E defende a postura de Putin: “Como eu sei, esta guerra não é contra civis. Estes nazis, batalhões, armadas, quando apanham as cidades, não deixam sair os civis. E os russos não mandam bombas, ou esperam que os deixem sair. A Rússia quer ajudar as pessoas a sair para o lado da Rússia, mas o Governo e estes nazis dizem ‘não, não, eles não vão para a Rússia, eles têm de estar dentro da Ucrânia”.
Yurii vai traduzindo as palavras de Elena, quando lhe falham as palavras em português, e os dois explicam que é preciso olhar para a história da Ucrânia, para perceber o que está a acontecer neste momento. E afirmam que é preciso recuar até à eleição de Viktor Yushchenko, em 2004, altura em que tudo começou a mudar e se abriram precedentes, tanto em relação à corrupção dos membros do governo ucraniano, ao início do domínio norte-americano, ou ao declínio da economia, por consequência do corte de relações com a Rússia. Na visão que têm da história, a partir de 2014, o cenário tornou-se “agressivo, porque os Estados Unidos mandavam em tudo na Ucrânia”.
Há oito anos, quando as repúblicas de Donetsk e Lugansk se tornaram independentes da Ucrânia, na sequência da anexação da Crimeia, as opiniões também se dividiram, tal como está a acontecer agora. Quem está contra o governo ucraniano fala sobre uma alegada manipulação da informação que é dada à população e sublinha as mais de 14 mil mortes na região do Donbass durante os últimos oito anos – uma informação que, dizem, terá passado ao lado da maioria das pessoas, incluindo aquelas que vivem na Ucrânia. E uma das críticas desta família é precisamente aos meios de comunicação social ocidentais. Primeiro, porque afirmam não ter noticiado a guerra civil no Donbass como estão a fazer nas últimas duas semanas e, depois, porque não estão a passar toda a informação, supostamente escolhendo o lado da Ucrânia.
Serhii Asliudinov, filho de Elena e Yurii, interpreta a realidade da mesma forma que os pais e defende que o exército ucraniano foi destacado para o Donbass quando as duas repúblicas ficaram sob o domínio dos separatistas pró-russos para acentuar a guerra e as mortes de civis, e não lhe colocar um ponto final. “Durante oito anos, ninguém falou sobre nada. As pessoas estavam a morrer. Alguém tentou fazer alguma coisa?”, questiona o jovem de 20 anos.
Mapa da guerra. O que se sabe sobre o 15.º dia do conflito na Ucrânia
O ucraniano que chegou a Portugal em 2001 compara a invasão da Rússia à Ucrânia a uma doença oncológica: “Não é guerra. É como cancro. Putin entrou para cortar o cancro”. Esta entrada da Rússia na Ucrânia servirá, na sua opinião (totalmente alinhada com a versão russa da história), para resolver três problemas: desmilitarizar o país, evitar mortes de civis, “desnazificar” e garantir que “não entra nenhum bloco militar na Ucrânia”. Sobre a extrema-direita, a ideia “não é matar”, mas sim levar a tribunal. Se a Ucrânia aceitasse hoje estas três exigências da Rússia, defende Yurii, Moscovo sairia imediatamente do país liderado por Zelensky.
Porquê o lado da Ucrânia?
A narrativa da família que agora se sente isolada em Portugal não é, de todo, entendida pela maioria dos ucranianos. Na pequena igreja onde se juntam bens para enviar para a Ucrânia, o sol de fim de tarde reflete a sua luz na cruz pendurada na parede. É um sinal de esperança, diz Mayya Trubyuk. Esta mulher de 48 anos chora quando fala da família que está na Ucrânia e que não quer deixar as suas casas. “Eles não querem abandonar a terra. Eu compreendo, se fosse eu também ficava lá. Mas estou muito preocupada, porque posso perder tudo.”
Para quem está ali a organizar a ajuda que vai chegando, quer de particulares, quer de empresas, Zelensky é “o grande herói desta guerra”. A descrição é feita por Micael Maniv, um jovem de 19 anos que nasceu em Portugal, mas nem por isso se sente mais português do que ucraniano: “Tenho cartão de cidadão português, pode dizer-se que sou mais português, mas na verdade o que se sente por dentro não é o que está no documento. A minha família é toda ucraniana, em casa só falamos ucraniano”.
Aqui defende-se a liberdade de um país marcado pelo domínio da União Soviética, condena-se a ação “daquela pessoa maluca chamada Putin”, como diz Micael, e acredita-se na resistência dos militares ucranianos. “A Rússia diz que não quer bombardear a Ucrânia, que não vão bombardear casas, mas todos sabemos que isso é mentira”, acrescentou.
Por Vila Franca de Xira, a invasão russa à Ucrânia é tema comum, seja em cafés, cabeleireiros, ou igrejas. Numa pastelaria, o único cliente está ao balcão a falar sobre a invasão com a dona, que é ucraniana e está em Portugal há mais de 20 anos, responde, com muita certeza, que “Putin quer uma nova União Soviética”. Acrescenta que o presidente russo deveria achar que a Ucrânia é como a Bielorrússia, mas não: “A Ucrânia resiste”. Por isso, acredita, Putin não vai ficar só por aquele país e Portugal ainda poderá sofrer com as suas decisões.
Perto do café, no cabeleireiro da ucraniana Mila Kovalchuk, a televisão está sempre ligada num canal de notícias. Acordam e deitam-se a ver o que vem de lá. E, aqui, a visão é a mesma: “Nós queremos a nossa terra. Putin é um agressor, mete bombas nos hospitais, nas escolas, estão a matar ucranianos… soldados russos”. Sobre Zelensky, Mila diz que “é o mais bonito e o mais corajoso”.