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Tété-Michel Kpomassie na localidade de Ilulissat, na Gronelândia, onde esteve entre 1965 e 1966
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Tété-Michel Kpomassie na localidade de Ilulissat, na Gronelândia, onde esteve entre 1965 e 1966

Tété-Michel Kpomassie na localidade de Ilulissat, na Gronelândia, onde esteve entre 1965 e 1966

A história do "Africano da Gronelândia”: fugiu do Togo aos 16 anos, fez 6 mil quilómetros, chamaram-lhe "diabo" e depois "amigo"

A jornada inacreditável de Tété-Michel Kpomassie, que foi da África ao Ártico, está finalmente traduzida para português. Entrevistámos o adolescente feito explorador que ainda tem mais por revelar.

O que é que um livro sobre esquimós fazia no meio de uma livraria perdida no Togo, em África? Essa é a pergunta à qual Tété-Michel Kpomassie nunca conseguiu responder, mas a descoberta fez da sua vida uma aventura tão surreal que ainda hoje, aos 81 anos, o próprio tem dificuldade em considerá-la verdadeira.

O Africano da Gronelândia foi publicado em 1981, mas só agora ganhou uma versão portuguesa, com edição da Tinta da China. O autor esteve em Lisboa antes de regressar pela quinta e última vez à Gronelândia — onde quer viver o resto da vida — e contou ao Observador como passou do calor africano a temperaturas de menos 30ºC, como ficou desiludido por não encontrar os caçadores de focas que lhe estavam prometidos e a forma como teve de aprender a viver.

Foi o encontro com uma serpente, aos 16 anos, que deu início à viagem. Caiu de uma árvore, esteve à beira da morte e foi levado a uma curandeira de um culto no meio da floresta. Parece que estamos a contar uma fábula mas para Tété-Michel tudo foi demasiado real. Passou por um ritual que envolveu uma piton e o traumatizou e estava destinado a uma vida dedicada a esse culto. Sabia que só havia uma alternativa: fugir. Para onde? Para a Gronelândia, um país tão gelado que não tinha árvores. Logo, não tinha serpentes.

Durante oito anos, foi passando de país em país, arranjando biscates para pagar bilhetes de barco e para se alimentar. Fez seis mil quilómetros até chegar finalmente à Gronelândia, em 1965. E foi uma enorme desilusão.

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Os locais tiveram medo dele, para logo a seguir ficarem fascinados. Acolheram-no, deram-lhe casa e ensinaram-lhe tudo o que faziam, mas segundo as condições deles. Dormia, tal como eles, na cama que era partilhada por uma numerosa família de oito pessoas, por exemplo. Só assim era possível manter-se minimamente quente durante a noite.

Os pormenores são contados minuciosamente ao longo de mais de 300 páginas. Apesar de vir de uma família poligâmica, Tété-Michel encontrou uma comunidade onde havia troca de casais, não havia pudor em relação ao sexo à frente de crianças, as necessidades básicas também não eram um assunto privado e os cães eram tão desvairados que, se apanhassem a porta de uma casa aberta, atacavam e comiam bebés.

Apesar de tudo isso, garante Kpomassie, a Gronelândia tem progredido muito mais do que África e é exatamente no meio do gelo que o autor pretende escrever agora o seu segundo livro.

A capa de "O Africano da Gronelândia", de Tété-Michel Kpomassie

A primeira vez que esteve na Gronelândia foi em 1965. Entretanto voltou quatro vezes. O que mudou?
É um país que muda e se moderniza. A vida quase ancestral que conheci nessa altura já não existe. Conservavam a carne suspensa fora da porta com temperaturas de -20 e -40ºC, era uma espécie de congelador natural. 20 anos depois, quando voltei, já tinham todos frigoríficos. É uma mudança gigante. A Gronelândia progride mais depressa do que África. Hoje há problemas de segurança, há grupos armados em todo o lado, as pessoas nem podem sair de casa para cultivar a terra. As minhas irmãs iam de peito à mostra quando éramos miúdos, ninguém se incomodava, agora têm de usar burca. Os que têm sorte de ter eletricidade, têm cortes de dez horas por dia. Os frigoríficos funcionam uma ou duas horas por dia. E a África tem todo o tipo de riquezas, é inacreditável. Não há nada a nascer na Gronelândia e ninguém morre à fome lá.

A sua aventura começou muito longe da Gronelândia, numa floresta em África, quando foi picado por uma serpente e caiu de uma árvore.
Quando revejo tudo isso, parece que estava traçado.

Toda a sua história é mais incrível do que ficção, não?
Mesmo a mim parece-me um conto de fadas. Como é que um livro sobre a Gronelândia foi parar ao Togo? Porque é que o meu pai não se converteu ao cristianismo? Se fosse cristão ou muçulmano, não me teria levado à floresta sagrada.

Não achou o livro tão diferente que pensou que era ficção?
À partida, para mim, aquilo eram balelas. O encontro com a serpente desencadeou muita coisa. A curandeira ajudou a curar-me. Podíamos ter ido embora mas ela pediu ao meu pai para me trazer de volta à floresta para que eu me tornasse sacerdote do culto das serpentes. A mim ninguém perguntou nada. Eu, uma criança africana modelo, não podia dizer não ao meu pai. Depois do banho de purificação, obrigaram-me a ter uma piton às costas. No pescoço e à volta da mão, isso foi logo terrível. A mulher que dizia: “descontrai, não te crispes”. Eu acreditei naquilo, fazia parte das nossas crenças, mas voltar à floresta significava ficar lá sete anos. Quando chegamos, rapamos a cabeça para sermos apresentados como recém-nascidos. Não era que eu quisesse fazer uma viagem para fora de África. Estava numa situação em que essa era a única saída.

"Entrei num barco em Copenhaga, que à partida não sabia para onde ia. A viagem durou oito dias. Nos três ou quatro primeiros dias conseguia ler até às 23 horas na minha cabine graças à luz do sol. No quinto dia começamos a ver pequenos bocados de gelo no mar, a ver as montanhas. Os bocados eram cada vez mais e mais compactos. Às vezes o barco batia nesses pedaços, recuava e voltava a avançar para parti-los. Avançávamos assim, muito lentamente."

Encontrou essa saída nas páginas do livro?
O livro que comprei tinha na capa “os esquimós do Gronelândia no Alasca”. Aquilo não me dizia nada. Tinha a foto de um caçador vestido com peles de animais e dois arpões. Estava a sorrir. Mas o sorriso dele parecia que me era direcionado. Era como um convite. Ainda por cima vi que tinha fotos. Fui à praia, nesse dia sozinho. Estendi-me na areia e descobri que a Gronelândia era um país onde não existiam árvores. As pessoas eram caçadores. Se não havia florestas, caçavam onde? No mar. E o mar solidificava e podíamos andar em cima dela. A noite durava seis meses. Era sério aquilo tudo? Havia algo que me perturbava. Fazia tanto frio que não existiam répteis, logo não existiam serpentes. Pensei: então onde fica este país maravilhoso? Nunca mais me esqueci do livro. No dia seguinte voltei à livraria para me mostrarem onde ficava a Gronelândia. Não conseguia pensar noutra coisa, era como música na minha cabeça.

Depois foi uma aventura incrível para chegar à Gronelândia. O que era diferente do que tinha imaginado?
Tudo. Não havia iglus em lado nenhum. Tinha lido outros livros onde falavam de cães, não vi nenhum. Não vi nenhum caiaque. Havia dois ou três nessa época e nenhum era revestido com pele de foca. Quando lhes perguntava onde estavam os caçadores de focas, diziam que era preciso ir mais para o norte mas não sabiam bem onde. Depois de oito anos de viagem e de ter feito seis mil quilómetros de viagem, apercebi-me que era só o início. Durante 18 meses fui sempre subindo até ao norte. Foi aí que percebi que metade da Gronelândia não tinha cães porque os dinamarqueses tinham exterminado esses animais no século XVIII. Os dinamarqueses tinham introduzido algumas ovelhas vindas das Ilhas Faroé e da Islândia e os cães eram demasiado ferozes e matavam-nas.

"Ficaram meus amigos, todas as manhãs vinham buscar-me, pegavam-me na mão e perguntavam-me o que queria visitar. Contavam-me as histórias de toda a gente da comunidade"

No livro também fala dos cães que comiam as crianças.
Sim, as casas tinham uma porta dupla. Primeiro, a porta da entrada, que abria para o exterior, e outra a seguir por uma questão de segurança. Um cão que entrasse sem ser convidado já não podia sair. No sul fiquei desiludido. Da Gronelândia só tinha o nome.

Ficou também desiludido com a forma como foi recebido? No livro diz que lhe chamavam “o diabo”.
Usei essa expressão para traduzir a palavra que eles usavam para descrever um espírito que vive nas montanhas, que representa um ser negro. Quando me viram acharam que eu era aquilo. Não encontrei outro equivalente para explicar o que os aterrorizava.

Não era racista a reação deles, era a materialização de uma figura que tinham no imaginário?
Sim, exatamente. Era a mitologia que conheciam. Mas aquelas crianças que tiveram medo de mim também ficaram fascinadas. Há um momento inesquecível em que avancei para aquelas pessoas e elas me olharam sem saber se eu era real, se era um dinamarquês com uma máscara. Tentavam ver as minhas mãos mas eu tinha luvas. Queriam ver se havia parte da minha pele que não fosse negra. Houve um dia em que fui jantar a casa de um médico dinamarquês, a mulher também era dinamarquesa. O pai regressou da cozinha, onde tinha estado à conversa com o filho, a rir imenso. Disse-me: “Tété-Michel, o meu filho acabou de perguntar à mãe: o pénis dele é da mesma cor que o resto do corpo?”. Foi uma criança dinamarquesa a perguntar isto, então imagine o que os miúdos esquimós pensavam. É a mesma coisa que estarmos aqui e vermos aparecer um homem verde ou azul. O que era fascinante era que eu os descobria e eles também me descobriam. Quando os miúdos me chamavam diabo e os adultos se afastavam para eu passar, ouvi uma mulher dizer uma frase que não percebi no momento mas que me traduziram depois: “Oh, como ele é bonito”. Havia a rejeição e o fascínio. As crianças seguiam-me a pé e a polícia daquela vila entrava no carro para acompanhar. Nesse dia, a rádio de Nuuk, a capital, anunciou a chegada ao país do primeiro negro. No dia seguinte aproximaram-se mais miúdos e, quando saí, o mais corajoso deles aproximou-se de mim e estava a tentar perguntar-me o nome. Quando finalmente percebi, disse “Tété-Michel”. Eles responderam: “Michel? Ah, Mikili”. Começaram por me dar esse nome. Tocavam-me nas mãos para ver se eu era realmente negro. Ensinavam-me frases e conjugações e começaram a dizer na vila: “O Mikili é muito inteligente”. Ficaram meus amigos, todas as manhãs vinham buscar-me, pegavam-me na mão e perguntavam-me o que queria visitar. Contavam-me as histórias de toda a gente da comunidade.

"Tenho de reconstituir a vida só recorrendo à memória. Portanto, até aceito uma longa-metragem em que um ator interprete o meu papel e eu seja consultor. Mas um documentário para o qual me peçam constantemente para fornecer isto e aquilo, viajar para filmagens, a isso digo não, tenho mais de 80 anos. Quero passar o resto do meu tempo a prestar homenagem à minha família e à minha cultura."

Como é que se habituou ao frio?
Entrei num barco em Copenhaga, que à partida não sabia para onde ia. A viagem durou oito dias. Nos três ou quatro primeiros dias conseguia ler até às 23 horas na minha cabine graças à luz do sol. No quinto dia começamos a ver pequenos bocados de gelo no mar, a ver as montanhas. Os bocados eram cada vez mais e mais compactos. Às vezes o barco batia nesses pedaços, recuava e voltava a avançar para parti-los. Avançávamos assim, muito lentamente. O ar era tão frio que eu não conseguia respirar. Era um calvário inalar aquele ar glacial, que começava por picar no nariz. Tinha a certeza que ia morrer. Mas, pouco a pouco, o meu organismo começou a aceitar aquele ar. Para mim, o frio da Gronelândia não nos dá arrepios nem nos faz tremer os dentes. Não está só à nossa volta, está mesmo em nós, penetra tudo. As pessoas, a roupa, os objetos. Se deixássemos o relógio em cima da mesa de cabeceira, no dia seguinte nem ousávamos tocar-lhe. Pegar naquilo era como ter um cubo de gelo na mão. No barco já tinha três pares de meias, três calças, camisolas, e mesmo assim estava gelado. Eu saí de África e, além de uma camisa e de uns calções, só levava uma tanga. Depois combati o frio com a roupa que os habitantes de lá me fizeram. Não ia minimamente equipado, não como os exploradores de hoje em dia.

Anotava tudo desde o início. Era já com um livro em mente?
Não, de todo. Escrevia só para mim. Aliás, estive quase para deitar o diário para o lixo quando regressei da Gronelândia.

Porquê?
Ao olhar para o diário, quando já estava em Copenhaga, pensava que aquilo era a minha vida e que não interessaria a ninguém. Não escondi nada, estava ali tudo, como as pessoas se comportavam.

"Hoje chamam-me explorador, mas fui o único a pagar do meu bolso cada quilómetro que percorri. E não comia conservas, comia com eles" (Fotos: Pedro Serpa)

Pedro Serpa - www.ventilan.blogspot.pt

Também encontrou coisas que o chocaram?
Faziam as necessidades à frente uns dos outros, uma criança sugava o pénis do irmão. Eu vi isso tudo e para eles era natural. Os pais tinham relações sexuais com os filhos ao lado, estando eles a dormir ou não. Os miúdos pediam aos pais para fazerem menos barulho. Um dia chegou lá um genealogista francês. Tinha a mesma idade que eu, 24 anos. Simpatizámos um com o outro, acompanhei-o à vila onde ia ficar. Tinha um barco só para ele, levou uma cabana pré-fabricada, tinha latas de sardinha para um ano. Ia ao encontro dos caçadores durante o dia apenas. Quando voltou para França escreveu um livro que aprecio, mas o que me perturbou foi saber que ele nunca tinha passado uma noite na casa daquelas pessoas. Não sabia como dormiam, se ressonavam, qual era a higiene, a dinâmica. No Togo nunca vi um branco passar a noite em nossa casa, porque era tudo lamentável para eles, e ali foi mais ou menos o mesmo comportamento. Hoje chamam-me explorador, mas fui o único a pagar do meu bolso cada quilómetro que percorri. E não comia conservas, comia com eles.

Ao longo dos anos não teve propostas para passar a sua história para o cinema?
Sim, muitas, mas tenho recusado.

Porquê?
Agora vou regressar à Gronelândia para a minha quinta viagem, mas será de vez. Desde que este livro foi publicado em 1981, com viagens, convites, etc, não tive tempo para escrever o meu segundo livro sobre a infância em África. Uma família poligâmica: o meu pai, as oito mulheres e 26 filhos. Nenhum de nós se tornou mau rapaz ou má rapariga. Os nossos pais, que não eram seres estupendos, educaram-nos com princípios simples. Tenho de escrever essa história.

Porquê escrever esse livro na Gronelândia?
Para me isolar e ter paz, para que ninguém me encontre. Não há registos de nada, portanto não vale a pena ir à procura [no Togo]. Tenho de reconstituir a vida só recorrendo à memória. Portanto, até aceito uma longa-metragem em que um ator interprete o meu papel e eu seja consultor. Mas um documentário para o qual me peçam constantemente para fornecer isto e aquilo, viajar para filmagens, a isso digo não, tenho mais de 80 anos. Quero passar o resto do meu tempo a prestar homenagem à minha família e à minha cultura.

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