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Os desembargadores Cristina Almeida e Sousa, Rui Teixeira e Hermengarda do Valle-Frias não deixaram pedra sobre pedra na imputação do Ministério Público (MP) aos arguidos da Operação Influencer. É o mínimo que se pode dizer do acórdão da 3.ª Secção da Relação de Lisboa sobre os recursos do MP, de Diogo Lacerda Machado e de Vítor Escária, interpostos contra as medidas de coação decididas no dia 13 de novembro pelo juiz de instrução Nuno Dias Costa.
Operação Influencer. As provas que não estão fortemente indiciadas e todas as que foram validadas
Os três desembargadores não só entenderam que não há qualquer indício de crime na prova indiciária carreada para os autos até ao dia 7 de novembro — discordando, assim e também, do juiz Nuno Dias Costa, que tinha considerado como fortemente indiciados uma parte dos crimes de tráfico de influência, prevaricação e oferta indevida de vantagem imputados aos arguidos —, como decidiram retirar todas as medidas de coação decididas pelo Tribunal Central de Instrução Criminal.
Ao Observador, a Procuradoria Geral da República disse, entretanto, que o processo ainda não acabou: “Pese embora a decisão proferida, [o MP] prosseguirá as investigações, tendo por objetivo, nos termos da lei, apurar os factos suscetíveis de integrar a prática de crimes, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade.”
O Observador explica-lhe em 10 pontos os pormenores do acórdão da Relação de Lisboa e as suas consequências.
O que estava em causa na decisão da Relação de Lisboa?
As medidas de coação que foram decididas pelo juiz Nuno Dias Costa no dia 13 de novembro, seis dias depois das detenções de Diogo Lacerda Machado (advogado e lobista contratado pela empresa Start Campus), de Vítor Escária (então chefe de gabinete do primeiro-ministro António Costa), de Afonso Salema e de Rui Oliveira Neves (presidente executivo e administrador da Start Campus) e de Nuno Mascarenhas (presidente da Câmara de Sines).
Na altura, o juiz de instrução validou cerca de 180 dos 387 artigos do despacho de apresentação dos arguidos, considerando-os como fortemente indiciados, e concluiu que existiam razões fundadas para imputar 10 dos 27 crimes que o MP apontava aos cinco arguidos detidos.
Olhando para os elementos apresentados pelos procuradores na altura do primeiro interrogatório, o juiz de instrução considerou, por exemplo, como “fortemente indiciado” o “plano criminoso” que o MP imputava a Lacerda Machado e a Vítor Escária pela alegada prática do crime de tráfico de influência para obterem uma “decisão ilícita favorável” para a Start Campus, nomeadamente no âmbito dos factos relacionados com a Zona Especial de Conservação — da qual fará parte uma pequena área do local onde a empresa estava a construir as instalações do data center em Sines.
Além disso, o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal determinou igualmente como fortemente indiciados os factos de recebimento indevido de vantagem que eram imputados aos ex-ministros João Galamba e Duarte Cordeiro, por exemplo. Ou as pressões que João Galamba terá alegadamente feito sobre diversos dirigentes do Instituto de Conservação da Natureza ou a Agência Portuguesa do Ambiente.
Em contrapartida, não encontrou indícios de cerca de metade dos artigos do despacho de apresentação apresentado pelo MP — razão, aliás, que o levou a deixar cair, por exemplo, o crime de corrupção e a não aplicar as medidas de coação mais pesadas pedidas pelos procuradores.
Ora, as defesas de Lacerda Machado e de Escária recorreram de todos os factos que lhe eram imputados pelo MP e também pelo juiz Nuno Dias Costa, enquanto que os procuradores João Centeno, Hugo Neto e Ricardo Lamas insistiram na sua imputação original e queriam que os desembargadores da Relação de Lisboa agravassem as medidas de coação dos diferentes arguidos.
O que decidiu a Relação de Lisboa?
Deu total razão às defesas de Lacerda Machado e Vítor Escária, representadas pelos advogados Manuel Magalhães e Silva e Tiago Rodrigues Bastos (curiosamente, colegas do mesmo escritório de advogados). E declarou todos os argumentos apresentados pelo MP como improcedentes.
Resultado prático: foram revogadas as medidas de coação aplicadas em novembro do ano passado, como a necessidade de prestar uma caução de 150 mil euros. Além disso, os passaportes dos arguidos entregues deverão ser restituídos ao “melhor amigo” de António Costa e ao ex-chefe de gabinete do então primeiro-ministro.
Operação Influencer. Juiz valida indícios que implicam Galamba e Cordeiro
Além da medida de coação mínima (o termo de identidade e residência, a que qualquer arguido está sujeito), só resta a caução de 600 mil euros que foi imposta pelo juiz de instrução criminal à Start Campus. Porquê? Porque a empresa dona do data center entendeu não recorrer. Mas mesmo esta medida de coação poderá ser alvo de revisão, se a Start Campus apresentar um requerimento nesse sentido, invocando a argumentação do acórdão desta quarta-feira da Relação de Lisboa.
Como é que a imputação do MP foi analisada pela Relação de Lisboa?
De uma forma sucinta, os três juízes desembargadores consideram que o alegado “plano criminoso” que o MP imputa aos cinco arguidos detidos não passa de um “conjunto de proclamações assentes em deduções e de especulações retiradas do que o MP ouviu arguidos e membros do Governo a falar ao telefone, proferindo afirmações vagas, genéricas e conclusivas”.
A Relação de Lisboa fez questão de desmontar ao pormenor todas as argumentações apresentadas pelo MP para cada um dos crimes imputados, numa espécie de aula de direito penal escrita e explicando com detalhe o que cada um dos crimes imputados significa e quais os respetivos requisitos.
Há indícios do crime de tráfico de influências? “Nem fortes, nem fracos”
Começando pelo crime de tráfico de influências — que é imputado pelo MP a vários arguidos, como Diogo Lacerda Machado, Vítor Escária e a João Galamba, por exemplo —, a relatora Cristina Almeida e Sousa explica que o cerne de tal crime “está na afronta e no condicionamento à liberdade de ação e de decisão do titular do cargo normalmente competente para decidir”, de forma a “mudar o curso e o sentido final do processo decisório da administração”, através da ingerência de um terceiro que não seja funcionário.
Ora, nas inúmeras escutas telefónicas aos arguidos, os desembargadores não encontraram alguma “forma de persuasão, convencimento ou exposição” dos representantes da Start Campus que fosse além do seu normal interesse em que o investimento da empresa avançasse. Como também entendem que não há indícios de qualquer espécie de coação sobre os titulares de cargos políticos ou da administração pública central e local envolvidos nos diversos patamares de decisão sobre temas ambientais, energéticos ou urbanísticos relacionados com a autorização da construção das instalações do data center em Sines.
“Conversar com governantes do poder central ou do poder local, ou com outros agentes da administração pública sobre os interesses próprios, não tem, só por si, nada de ilícito ou sequer de irrazoável”, escrevem os juízes da Relação de Lisboa. Isto porque, argumentam, “muitas vezes, o tempo da administração pública e do poder político, não é o tempo do mundo dos negócios e dos investimentos”.
Por outro lado, e no que diz respeito especificamente a Diogo Lacerda Machado, os desembargadores fazem questão de referir que o contrato estabelecido com a Pioneer, acionista da Start Campus, é de prestação de serviços, mas que não há nenhum indício que permita “pelo menos, gerar a dúvida ou a suspeita sobre as reais prestações obrigacionais a que o arguido Diogo Lacerda Machado e a Start Campus reciprocamente se vincularam”.
Ou seja, não há nada que sustente que “aquele contrato (…) teve como único objetivo exercer pressão sobre os membros do Governo, titulares de órgãos de autarquias locais e de outras entidades públicas, com vista a determinar o sentido de actos desses titulares” ou “fazer com que os actos fossem praticados de forma mais célere” ou ainda para que fossem “tomadas decisões ilícitas e favoráveis aos interesses da Start Campus”.
Acresce que as refeições pagas a Nuno Lancasta, João Galamba e Duarte Cordeiro, que constavam como indícios apresentados pelo MP, não são, para os juízes, um elemento “eficaz para a consumação do crime de tráfico de influência, porquanto este crime não prescinde de uma finalidade direcionada a um concreto ato lícito ou ilícito favorável ao comprador da influência”.
As escutas telefónicas, feitas “ao longo de anos”, indiciam alguma coisa?
Os desembargadores são particularmente duros quando analisam as “sucessivas conversas telefónicas que [a investigação] andou a escutar ao longo de anos”. Insistindo que as escutas, neste processo, são, muitas vezes, o único meio de prova que o MP apresenta para sustentar as suas imputações, os desembargadores alertam que “as conversas telefónicas nada mais demonstram do que a sua própria existência, provam que aquelas frases foram ditas e foram proferidas por aquelas pessoas que surgem identificadas nas transcrições, como sendo os seus interlocutores. Mas não são factos. São meios de prova. E a sucessão de conclusões ou ilações que o MP retira não são nem uma coisa nem outra”, enfatizam os desembargadores.
Além disso, a relatora Cristina Almeida e Sousa diz que o uso que os procuradores fazem das escutas assenta “em meras proclamações, não concretizadas em circunstâncias objetivas de tempo, modo ou lugar que permitam” fazer uma “dedução lógica” de “factos conhecidos através de prova direta” ou de “factos desconhecidos mas totalmente verosímeis ou muito prováveis”.
Assim, não existem, no entender da Relação de Lisboa, indícios que fundamentem o crime de tráfico de influências, mas sim “meras interpretações” do que é dito pelos intervenientes nas escutas “que só vinculam o MP”.
A circunstância de “políticos e os seus eleitores conversarem entre si sobre assuntos do interesses destes e que compete aos primeiros decidir não encerra em si mesmo nenhuma ilicitude. E esta é a única ilação que pode legitimamente retirar-se de todos os excertos das conversas mantidas ao telefone”, lê-se no acórdão.
Relação de Lisboa “iliba” António Costa?
No que diz respeito à alegada influência que Diogo Lacerda Machado exerceria sobre o então primeiro-ministro — e que não tem que ver com os factos que estão a ser investigados à parte sobre o, na altura, primeiro ministro —, sim.
Os desembargadores Cristina Almeida e Sousa, Rui Teixeira e Hermengarda do Valle-Frias fizeram questão de abordar as referências que o MP fez ao ex-primeiro-ministro António Costa no despacho de apresentação dos arguidos, mas também no recurso que interpôs para a Relação de Lisboa.
São, por isso, várias as referências ao “primeiro-ministro” nas 367 páginas do acórdão da Relação de Lisboa.
A primeira análise é feita no âmbito das suspeitas de tráfico de influência que incidem sobre Diogo Lacerda Machado e na alegada influência que o MP imputa àquele devido, precisamente, à sua proximidade e intimidade com António Costa.
“De uma relação de amizade com um membro do Governo, claramente assumida de forma pública e reiterada por ambos os protagonistas” e da “coincidência de um ser primeiro-ministro e outro se assumir como representante de uma empresa investidora e promotora de um projeto cuja concretização depende de decisões a tomar ao nível do poder local e central (…) tem de resultar a conclusão inexorável de que houve tráfico de influências ou corrupção ativa ou passiva, ou prevaricação?”, questionam de forma retórica os desembargadores.
Para, logo de seguida, acrescentarem que as “proclamações” de que a “influência exercida pelo arguido Lacerda Machado” decorria da sua “grande proximidade” com o “primeiro-ministro (…) não estão sustentadas em qualquer facto concreto“.
Os desembargadores vão mesmo mais longe e fazem questão de apreciar condutas do próprio António Costa.
“Era essencial que o MP também tivesse descrito algum comportamento objetivo do PM passível de mostrar alguma receptividade ou predisposição para ouvir e acatar o que o seu melhor amigo teria para lhe dizer, fosse em matéria de decisões sobre políticas públicas e medidas legislativas no ambiente (…) sobre o campus do Data Center promovido pela Start Campus (…) ou sobre qualquer outro assunto da governação”.
Contudo, garantem, “tal não aconteceu”. O único “facto concreto protagonizado pelo primeiro-ministro”, dizem, “foi ter estado presente num evento de apresentação do projeto no dia 23 de abril de 2021”.
Mais: os desembargadores dizem mesmo que não se pode retirar da prova indiciária apresentada pelo MP qualquer “circunstância concreta relacionada com a forma de agir do primeiro-ministro e de interagir” com Lacerda Machado que permita concluir que este tinha uma influência especial sobre Costa no que diz respeito à formação dos seus governos.
Outra censura feita pelos desembargadores: era fundamental que o MP tivesse apresentado prova indiciária que mostrasse que as “motivações da empresa Pioneer Point Partners e dos arguidos Afonso Salema e Rui Oliveira Neves para contratar Lacerda Machado” foram “outras que não só as expressamente assumidas no texto do contrato”, como por exemplo um alegado “ascendente de Lacerda Machado (…) sobre o primeiro-ministro para o levar a tomar decisões que fossem ao encontro dos interesses das Start Campus”. O que também não aconteceu.
Mais dois exemplos:
- Apesar dos diversos arguidos se referirem várias vezes a António Costa em diversas conversas telefónicas, o que consta das mesmas são “somente verbalizações de vontade ou de processos de intenção de ir falar com o mesmo [com António Costa], expressas, sobretudo pelo arguido Afonso Salema, nas suas conversas com o arguido Rui Oliveira Neves e, em alguns casos, com Lacerda Machado. (….) Mas não há uma única conversa ou telefonema mantidos diretamente com o primeiro-ministro”.
- Outro exemplo: no entender da Relação de Lisboa, não há qualquer indício de que a então secretária de Estado Ana Fontoura Gouveia tenha sido pressionada por Vítor Escária ou pelo primeiro-ministro ou com o conhecimento e concordância de António Costa” — um alegado facto que foi descrito pelo MP no despacho de apresentação dos arguidos.
Crime de prevaricação pode ser imputado ao processo legislativo?
Os juízes desembargadores entendem que não. Citando alguns dos principais administrativistas nacionais, como Freitas do Amaral, os magistrados da 3.ª Secção da Relação de Lisboa subscrevem a ideia de que a “função legislativa corporiza as opções vencedoras e a função administrativa dá-lhes execução”.
Complementando essa ideia com outros conceitos jurídicos defendidos por Marcelo Caetano, Sérvulo Correia e até pelo constitucionalista Marcelo Rebelo de Sousa, os juízes entendem que “em qualquer destas asserções, jamais se poderá considerar sob o âmbito da previsão contida no tipo legal de prevaricação”.
Acresce que, segundo os desembargadores, foi “propósito deliberado do legislador retirar a função legislativa do âmbito da previsão das normas incriminadoras contidas” na lei determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções.
Logo, a Relação de Lisboa subscreve a íntegra o entendimento do juiz de instrução criminal Nuno Dias Costa sobre a imputação do crime de prevaricação na questão do alegado favorecimento da Start Campus durante o processo legislativo do Simplex industrial coordenado por João Tiago Silveira: o crime de prevaricação não pode ser imputado a esses factos.
O que significa que o crime de prevaricação imputado a António Costa no inquérito aberto nos serviços do MP no Supremo Tribunal de Justiça — e que agora desceu para o DCIAP —, se for seguida a mesma tese, também não poderá existir enquanto tal. Tal como o Observador noticiou em janeiro, Costa é suspeito desse crime em regime de co-autoria com João Tiago Silveira.
A porta que é deixada aberta para o MP no que diz respeito à lei malandra
Certo é que, tal como avançámos nessa notícia de janeiro, o MP escutou diversas conversas em outubro de 2023 de João Tiago Silveira (coordenador do Simplex do licenciamento e do Simplex Industrial e sócio do escritório Morais Leitão) a negociar os pormenores da nova lei com Rui Oliveira Neves (administrador da Start Campus e colega de João Tiago Silveira na Morais Leitão) para que a construção do data center da empresa fosse beneficiada pela nova lei, ficando dispensada de um processo de licenciamento urbanístico.
João Tiago Silveira foi escutado no dia 13 de outubro a dizer a Rui Oliveira Neves que esteve “com o Costa quatro horas a ver isto na quarta-feira [dia 11 de outubro] e que o gajo está completamente entusiasmado com isto”. O “isto” é, segundo o Ministério Público, uma “lei feita à medida” que foi classificada por Oliveira Neves como algo “muito malandro, mas é por aqui que a gente tem que ir.”
Ora, a Relação de Lisboa diz que não faz sentido que o MP aluda a essa lei (que se designa de Regime Jurídico de Urbanização e Edificação que foi aprovado no Conselho de Ministros do dia 19 de outubro de 2023) porque o mesmo não foi publicado aquando da detenção dos arguidos a 7 de novembro de 2023, logo não produziu efeitos naquela altura.
O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa só veio a promulgar a lei mais tarde, tendo justificado a 8 de janeiro que obrigou o Governo de António Costa a retirar a parte suspeita do diploma que alegadamente favorecia a Start Campus.
Contudo, existem outras leis sob suspeita de alegado favorecimento. Como por exemplo:
- o decreto-lei 80/2023 de 6 de setembro — que estabelece o procedimento excecional de atribuição de capacidade de ligação à rede de instalações de consumo de energia elétrica em zonas de grande procura;
- a portaria 248/2022 de 29 de setembro — que regulamenta o modelo da transferência da propriedade e posse dos terrenos da entidade concessionária da Rede Nacional de Transporte de Eletricidade afetos aos centros eletroprodutores que abastecem o sistema elétrico de serviço público
- e o decreto-lei 11/2023 de 10 de fevereiro – conhecido como Simplex Industrial
E, sobre estas alegações, os desembargadores dizem que as mesmas poderão, em termos abstratos “e no limite, configurar crimes de corrupção por terem sido leis à medida das conveniências da Start Campus”. Logo, não têm as “características de generalidade e abstração que todas as normas jurídicas devem ter como condição da sua existência, validade e eficácia”.
Contudo, enfatizam os juízes, é fundamental que exista uma prova indiciária forte de que os textos dessas normas foram efetivamente “redigidos por encomenda”. Para tal, é imperioso que a prova documental de memos, rascunhos ou drafts — que, eventualmente, possam ter sido entretanto, reunidos pela investigação — demonstrem isso mesmo.
A censura à informalidade e a necessidade de regular o lobbying
Apesar de os desembargadores não verem qualquer prova indiciária da prática de qualquer um dos 27 crimes que o MP imputou aos cinco arguidos detidos a 7 de novembro, os mesmos magistrados judiciais não deixaram de censurar o comportamento dos vários responsáveis políticos e públicos envolvidos.
Os desembargadores não têm dúvidas de que a informalidade de “todo este fluxo de telefonemas”, “almoços e jantares em que políticos e promotores de projetos de investimento se juntam à mesa de refeição para conversas e acertar estratégias de problemas e de condução de procedimentos administrativos de licenciamentos” — tudo isto “deveria ter sido evitado”.
Em primeiro lugar, “porque não é correto e porque gera uma perceção de opacidade, promiscuidade e ilegalidade de procedimentos que em nada abona para o rigor e a probidade que se espera e se exige dos decisores públicos”.
Vítor Escária vai declarar ao IRS os 75.800 euros apreendidos em dinheiro vivo em São Bento
“Nem para a transparência da actividade política ou da administração pública, nem, em geral, para a credibilidade das instituições”, insistem.
Por isso mesmo, concluem, estes temas devem ser tratados com a “formalidade das regras procedimentais do direito administrativo”. “Os almoços, jantares e outros convívios são próprios e adequados ao desenvolvimento de relações familiares e de amizade” e não são “fóruns de decisão pública”.
Contudo, o direito penal não julga comportamentos que só de “ética, social ou politicamente são censuráveis”.
Finalmente, a Relação de Lisboa deixa o alerta de que “o que estes comportamentos dos arguidos Afonso Salema, Rui Oliveira Neves, Diogo Lacerda Machado, Vítor Escária e Nuno Mascarenhas revelam é a necessidade imperiosa e urgente de se assumir em Portugal, de uma vez por todas, que a actividade do lobby existe e deve ser regulada com regras claras, facilmente apreendidas por todos”.
A ausência de perigos e a falta de probidade do MP
O juiz de instrução Nuno Dias Costa decidiu a 13 de novembro aplicar a Diogo Lacerda Machado o depósito de uma caução de 150 mil euros e e a entrega do passaporte dentro de 24 horas como medidas de coação. Tudo porque o juiz considerou existir perigo “intenso” de fuga. Não só por ter “capacidade económica para se alocar em vários pontos do planeta”, como também porque tem filhos a residir “em diferentes geografias”, e ainda por manter “laços profissionais com a Guiné-Bissau, país onde, face à respetiva natureza, seria fácil ocultar-se”.
O juiz de instrução dispensou a caução a Vitor Escária, mas também exigiu a entrega do passaporte dentro de 24 horas devido a perigo de fuga por “ter vindo a revelar facilidade em exercer a sua actividade profissional no estrangeiro, nomeadamente em Angola” e “pela facilidade que demonstra em subsistir fora de Portugal”.
Ora, o principal objetivo dos recursos das respetivas defesas asseguradas por Manuel Magalhães e Silva e Tiago Rodrigues Bastos era precisamente assegurar que estas medidas de coação eram revogadas — o que foi totalmente conseguido.
Efetivamente, os desembargadores consideraram que não existia qualquer perigo de fuga. “A mobilidade das pessoas por países diversos de Portugal, seja por terem recursos económicos que lhes permitem viajar, por terem familiares que vivem noutros países [Lacerda Machado] ou ligações de outra natureza [Vitor Escária], não integra só por si, o risco de que se eximam à ação da justiça.”
É “precisamente por terem compromissos negociais, académicos e profissionais noutros países e sendo conhecidas as suas residências habituais e os locais a que se deslocam e onde desenvolvem as suas vidas profissionais, é que não existe tal perigo”, garantem os desembargadores.
A mesma ausência de perigo foi considerada para o risco de continuidade da actividade criminosa e destruição de prova. Daí que a Relação de Lisboa tenha revogado as medidas de coação impostas a 13 de novembro de 2023 pelo juiz Nuno Dias Costa.
A última censura da Relação de Lisboa ao MP acabou por se prender com texto do recurso propriamente dito que foi apresentado pelos três procuradores titulares dos autos. É que os magistrados do MP introduziram outros argumentos e novas provas indiciárias que não tinham sido apresentados aos arguidos durante os primeiros interrogatórios no Tribunal Central de Instrução Criminal.
Tal “prática incorreta” é “claramente contrária aos deveres de probidade e de boa fé que também devem imperar na interação dos diversos sujeitos processuais no âmbito do processo penal, não obstante a litigância de má fé ser um instituto exclusivo do processo civil”, censuram os desembargadores.
Os juízes da 3.ª Secção da Relação de Lisboa dizem, a terminar, que os deveres de probidade e de boa fé são “especialmente exigíveis ao Ministério Público por ser uma magistratura e por ser o titular da ação penal”.