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Carlos Costa, ex-governador do Banco de Portugal, e Ricardo Salgado, ex-presidente do BES. ILUSTRAÇÃO: Ana Martingo/OBSERVADOR
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Carlos Costa, ex-governador do Banco de Portugal, e Ricardo Salgado, ex-presidente do BES. ILUSTRAÇÃO: Ana Martingo/OBSERVADOR

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

Carlos Costa, ex-governador do Banco de Portugal, e Ricardo Salgado, ex-presidente do BES. ILUSTRAÇÃO: Ana Martingo/OBSERVADOR

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

A "infeliz letra da lei" e outros impedimentos ao Banco de Portugal no BES

Relatório Costa Pinto inclui um capítulo sobre as "condicionantes" à atuação do BdP (por vezes contraditório com as duras conclusões). Quais se mantêm e quais ainda hoje limitariam o BdP?

    Índice

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O chamado “Relatório Costa Pinto“, o relatório confidencial divulgado em primeira-mão pelo Observador a 13 de abril, é uma das principais bases em que assenta o trabalho dos deputados da comissão parlamentar de inquérito ao BES/Novo Banco em curso. O documento, com quase 500 páginas, analisa a atuação do Banco de Portugal (e não só) nos anos anteriores ao colapso do Banco Espírito Santo. As conclusões finais, muito duras, dizem que o Banco de Portugal tinha meios para ter feito mais, melhor e mais cedo. Mas há um capítulo anterior que se foca nas “condicionantes” que limitaram a margem de manobra do supervisor – o que, em alguns momentos, pode dar uma sensação de alguma esquizofrenia na leitura do documento.

Nesse capítulo, o oitavo, diz-se, por exemplo, que afastar Ricardo Salgado mais cedo tinha sido bem mais complexo do que parece (ainda que, nas conclusões, a comissão Costa Pinto seja bem mais dura nesta apreciação). Diz-se, também, que a legislação existente, na altura, não permitia que o Banco de Portugal atuasse de forma mais incisiva para contrariar a complexidade do grupo em que o BES estava inserido ou, também, para levar Ricardo Salgado a mudar a sede da casa-mãe do BES (que era no Luxemburgo). Fala-se, também, das dificuldades que envolveriam uma eventual recapitalização pública do BES e dos problemas na interação com o supervisor angolano, entre outras matérias.

Este capítulo do relatório Costa Pinto, sabe o Observador, foi escrito sobretudo por Luís Silva Morais, advogado que já teve várias colaborações com o Banco de Portugal e que, neste trabalho, contribuiu com o elencar das “condicionantes” à atuação do Banco de Portugal, seja limitações jurídicas seja questões como a conjuntura económica e a cooperação de outros supervisores e auditores. Certo é que o capítulo tem quase 80 páginas, cerca de um quinto de todo o relatório.

Ouvidos pela Rádio Observador na manhã após a divulgação do relatório, os deputados disseram de forma praticamente unânime que as coisas mudaram e hoje uma história semelhante à do BES nunca poderia acontecer. Será mesmo assim? Quais condicionantes é que ainda hoje se mantêm e limitariam, novamente, a ação do Banco de Portugal num caso parecido? O Observador seleciona cinco das mais importantes.

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Teria sido possível, ou não, afastar Ricardo Salgado mais cedo?

É uma das grandes questões que ficam deste processo – será que o BES teria colapsado se o Banco de Portugal tivesse atuado mais cedo no sentido de exigir a saída de Ricardo Salgado? Nas conclusões do relatório Costa Pinto, lê-se que a “manutenção de Ricardo Salgado em funções não foi a opção adequada” mas que margem existia para atuar de outra forma? E que riscos é que essa abordagem teria implicado?

Neste oitavo capítulo, que analisa as condicionantes à atuação do BdP no que diz respeito à forma e ao momento como poderia ter sido retirada a idoneidade a Ricardo Salgado, dá-se algumas pistas não só sobre o que diz “a letra da lei” mas, também, sobre “o modo como a mesma vem sendo interpretada e aplicada”. E, nesse plano, explica-se porque é que teria sido arriscado forçar Salgado a sair ainda em 2013.

Na audição parlamentar a Pedro Machado, ex-adjunto da supervisão e, mais tarde, diretor do departamento jurídico do BdP (hoje a trabalhar no Mecanismo Único de Resolução em Bruxelas), considerou que o supervisor até fez uma interpretação “generosamente extensiva” da legislação que existia quando levou Ricardo Salgado a desistir de quatro pedidos de registo que estavam pendentes e dos quais o banqueiro acabou por desistir (entre esses, para o Best Bank e para o BESI).

Esse foi um processo em que o Banco de Portugal fez “marcação cerrada” a Ricardo Salgado, com várias cartas enviadas ao banqueiro com perguntas que iam ao ponto de lhe perguntar como geria o património pessoal, porque é que tinha casas registadas em offshores, etc. Essa pressão terá ajudado a que Salgado não só desistisse daqueles quatro registos como aceitasse negociar um plano de saída (sucessão) do BES.

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Mas uma coisa é “persuadir” um banqueiro a interromper processos pendentes de registo inicial, outra coisa que a história recente tem provado ser mais difícil é suspender ou anular registos já dados – como era o caso do registo de que Ricardo Salgado gozava para ser presidente da comissão executiva do BES. E o relatório Costa Pinto dá uma explicação para isso.

O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF, que está em vias de ser substituído pelo novo Código da Atividade Bancária) foi alterado várias vezes, neste aspeto, mas as últimas alterações mais relevantes tinham sido feitas em 2008 (ano em que houve a crise financeira e foi nacionalizado o BPN). O que dizia essa versão da lei é que “entre outras circunstâncias atendíveis considera-se indiciador de falta de idoneidade” um dado tipo de atos ilícitos apurados por sentença judicial.

Se esses “atos ilícitos apurados por sentença judicial” fossem conhecidos com a pessoa já no cargo, isso também traria consequências. O artigo 70º do RGICSF (de 2008) já previa a eventualidade da ocorrência de “factos supervenientes ao registo, neles se incluindo os factos anteriores que só ulteriormente fossem conhecidos, que constituíssem, nos termos do nº 3 do artigo 30º, circunstâncias indiciadoras de falta de idoneidade”. Ou seja, se, depois de dado o registo, o Banco de Portugal mais tarde “concluir não estarem satisfeitos os requisitos de idoneidade exigidos para o exercício do cargo, cancelará o respetivo registo e comunicará a sua decisão às pessoas em causa e à instituição de crédito, a qual tomará as medidas adequadas para que aquelas cessem imediatamente funções”, lê-se na legislação (nº 4 do artigo 70º do RGICSF).

Porém, ao passo que sobre a concessão (inicial) do registo a lei era bastante clara acerca daquilo que poderia inviabilizar o registo, “no que respeitava ao poder de reapreciação” o suporte legal remetia para outro artigo que tinha uma formulação mais “genérica”.

O que a lei dizia é que se podia retirar a idoneidade quando houvesse, por exemplo, uma “declaração de falência ou insolvência, como pessoa singular, responsabilidade pela falência ou pré‐falência de empresa dominada ou gerida pela pessoa em causa, condenação por crimes de falência dolosa ou culposa ou outros crimes patrimoniais, e condenação por infração às regras legais ou regulamentares das instituições de crédito”. Ora, Ricardo Salgado não tinha sido condenado por nenhum tipo de crimes relacionados com falência dolosa ou culposa ou outros crimes patrimoniais, nem sequer havia acusações formais por parte da Justiça.

Ricardo Salgado foi pressionado pelo BdP a desistir de quatro registos "novos" e acabou por negociar a saída para uns meses depois.

PAULO CUNHA/LUSA

Por outro lado, estava ainda fresca na memória de todos a experiência com o caso Tavares Moreira, antigo governador do Banco de Portugal – um caso em que o Supremo Tribunal Administrativo, em 2005, “veio anular uma decisão do Banco de Portugal de perda de idoneidade com base em que os factos invocados pelo supervisor, embora graves, (um caso de insider trading manifesto), não haviam dado origem a uma sentença judicial e não haviam sido reiterados, pelo que não podiam ser considerados análogos aos previstos no nº 3 do artigo 30º (!)”, exclama o relatório Costa Pinto.

Assim, à luz desta jurisprudência e com esta “letra infeliz da lei”, escreve a comissão independente (liderada por João Costa Pinto), “perante factos como a notícia de um recebimento de doações de 14 milhões de euros [inicialmente noticiados como 8,5 milhões] de um cliente por parte de Ricardo Salgado, ou como a notícia de que o mesmo Ricardo Salgado tinha recorrido por três vezes ao regime extraordinário de regularização tributária, confessando ter mantido fundos no estrangeiro e cometido evasão fiscal, compreende‐se que o Banco de Portugal não tivesse iniciado e concluído um processo de reapreciação da idoneidade desse administrador do BES”.

Por outro lado, o próprio Ricardo Salgado terá entregue pareceres jurídicos onde deixou claro que não iria aceitar perder a idoneidade sem dar luta, daí que a opção tenha sido deixar o banqueiro no cargo até ao verão de 2014, depois do aumento de capital que estava a ser preparado. Além disso, como as próprias conclusões do relatório Costa Pinto reconhecem, afastar Ricardo Salgado de forma súbita poderia ter um impacto sistémico sobre toda a banca nacional.

A saída acabou por dar-se tarde demais, reconhece o relatório, mas no capítulo sobre as “condicionantes” afirma-se que “enquanto não fosse alterado o RGICSF de 2008, existia razão válida para recear uma jurisprudência que, de modo inaceitável, embora amparada na letra infeliz da lei, restringia a ampla discricionariedade que deveria ser reconhecida ao Banco de Portugal neste domínio, e que limitava a possibilidade de declarar a perda da idoneidade”.

“Enquanto não fosse alterado o RGICSF de 2008, existia razão válida para recear uma jurisprudência que, de modo inaceitável, embora amparada na letra infeliz da lei, restringia a ampla discricionariedade que deveria ser reconhecida ao Banco de Portugal neste domínio, e que limitava a possibilidade de declarar a perda da idoneidade”.
Relatório Costa Pinto, página 345

Na conclusão, Costa Pinto defende que o Banco de Portugal devia ter sido mais duro, mesmo que isso pudesse significar um maior risco de litigância. Seja como for, poucos meses após o colapso do BES, houve uma “profunda remodelação legislativa” e do RGICSF, que detalhou a forma como se deve garantir a “adequação dos membros dos órgãos de administração e fiscalização e dos titulares de funções essenciais nas instituições de crédito”.

Hoje, a avaliação de “idoneidade” está inserida no contexto mais abrangente de “adequação”, que parte dos padrões definidos pela Autoridade Bancária Europeia (EBA, na sigla mais usada), padrões que permitem fazer uma análise mais granular que mais facilmente permitiria rejeitar alguém (não só no momento do registo inicial mas, também, em “reapreciações”). Uma das mudanças principais é que, agora, o regime geral não define este tipo de processos como uma candidatura individual, mas responsabiliza, “em primeira linha”, a instituição que propõe aquele nome (o banco, por exemplo).

E, embora a jurisprudência continue a “assustar” um pouco, na prática, a legislação está mais robusta e define que “a apreciação da idoneidade é efetuada com base em critérios de natureza objetiva, tomando por base informação tanto quanto possível completa sobre as funções passadas do interessado como profissional, as características mais salientes do seu comportamento e o contexto em que as suas decisões foram tomadas”. E acautela-se que cabe ao supervisor olhar para “o currículo profissional e potenciais conflitos de interesse, quando parte do percurso profissional tenha sido realizado em entidade relacionada direta ou indiretamente com a instituição financeira em causa, seja por via de participações financeiras ou de relações comerciais” – algo que teria sido importante existir na lei no caso de Ricardo Salgado, mas não existia.

Porque é que o BdP não tomou medidas mais cedo contra a complexidade do GES/BES?

Fica claro, ao ler as conclusões do relatório Costa Pinto, que o Banco de Portugal falhou ao não tomar como “preocupação prioritária” a complexidade do grupo em que estava inserido o Banco Espírito Santo. Só “alguns meses antes do colapso” é que foram tomadas medidas a esse respeito – uma complexidade crescente que era um problema que remontava a meados dos anos 90 e  só estabilizou após meados da década passada.

Mas no capítulo que fala sobre as condicionantes à atuação do supervisor explica-se que, embora quando se trate de instituições novas a legislação permita uma maior exigência, “quando se encontra em causa o acompanhamento, num dado momento, de instituições integradas em grupos marcadamente complexos e que resultam, enquanto tais, de evoluções e vicissitudes passadas (…) o RGICSF não contempla propriamente instrumentos jurídicos” que possam ser usados para contrariar essa situação.

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Lê-se no relatório Costa Pinto que faltava no RGICSF suporte legal para que se pudesse tomar “medidas estruturais diretas (…) ou medidas diretas de intervenção do supervisor corrigindo estruturas com especial complexidade ou opacas, apesar de essa dimensão estrutural corresponder reconhecidamente a um elemento essencial para a existência de condições que assegurem uma supervisão eficaz”.

Ou seja, afirma-se neste capítulo sobre as condicionantes com que se debateu o Banco de Portugal que, “fora dos casos em que intervém originariamente no licenciamento de uma instituição de crédito ou numa mutação da mesma, através do controlo ex ante de aquisição de novas participações qualificadas, o supervisor não dispõe de instrumentos diretos para impor a alteração da estrutura de um grupo bancário”, por exemplo “determinando a relocalização da sua empresa‐mãe ou de sociedades intermédias essenciais de controlo”.

"Fora dos casos em que intervém originariamente no licenciamento de uma instituição de crédito ou numa mutação da mesma, através do controlo ex ante de aquisição de novas participações qualificadas – o supervisor não dispõe de instrumentos diretos para impor a alteração da estrutura de um grupo bancário”
Relatório Costa Pinto, página 305

Porém, embora fossem poucas as medidas “diretas” que se podiam tomar, o relatório aponta que existiam algumas medidas de caráter mais “indireto” que o Banco de Portugal poderia ter tomado mais cedo. Poderia ter havido lugar à “emissão de recomendações” baseadas em fatores que estavam previstos na lei e que ofereciam “grande latitude” – desde logo, disposições sobre as “estratégias, processos e mecanismos aplicados pelas instituições de crédito”.

O próprio relatório reconhece, porém, que mesmo no campo das medidas indiretas, algumas das possibilidades só foram reforçadas com a revisão feita em 2014 ao RGICSF, e que em outubro – no momento em que o BES colapsou – essas medidas ainda não estavam em vigor mas, sim, “em apreciação”.

O problema de ter a empresa-mãe no Luxemburgo (e o que se podia ter feito sobre isso)

O BES tinha sede em Portugal, mas pertencia a um grupo financeiro cuja empresa-mãe estava no Luxemburgo, a Espírito Santo Financial Group (ESFG). “Esta situação implicava várias limitações aos poderes de supervisão bancária exercidos pelo Banco de Portugal”, reconhece o relatório Costa Pinto no capítulo sobre as condicionantes.

Um dos principais problemas, basilar, é que “a generalidade das normas constantes no RGICSF e que modelam as competências do Banco de Portugal como autoridade de supervisão são normas de direito administrativo” – ou seja, “têm um âmbito de aplicação territorialmente limitado à área geográfica sobre a qual exerce a soberania do Estado português”. Ou seja, “não são naturalmente aplicáveis aos órgãos de administração e fiscalização das sociedades com sede no estrangeiro”.

Assim, o BES, por pertencer ao ESFG, viu-se numa situação de relativa impunidade: “muitas decisões de maior relevância para as instituições do Grupo localizadas em Portugal (e que por ela eram dominadas) poderiam ser tomadas pelos seus órgãos de administração, sem qualquer intervenção prévia do Banco de Portugal, nem subordinação ao RGICSF”.

“Era esse o caso, por exemplo, da decisão da abertura de outras filiais ou sucursais da empresa‐mãe, ou de atos e contratos pelos quais a referida empresa‐mãe aumentasse a sua exposição financeira (e, por essa via, de todo o Grupo) para com terceiros”, explicita o relatório Costa Pinto.

João Costa Pinto encabeçou a comissão que preparou o relatório que analisou a atuação do BdP no caso BES. FOTO: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Hoje não é tão fácil assim, sobretudo por causa das mudanças a nível europeu. Por exemplo, no âmbito da resolução bancária, os bancos são obrigados a manter os chamados “living wills“, ou “testamentos em vida”, que são uma espécie de mapas feitos pelo próprio banco e em que as autoridades se podem basear caso seja necessário, numa situação de colapso do banco (que leve a uma resolução). Isto significa que, na negociação desses living wills, os supervisores têm hoje muito maior margem para pressionar os bancos no sentido de fazer alterações societárias como, no limite, a passagem da casa-mãe para outra jurisdição.

A recapitalização pública era uma opção? O que é que a lei permitia?

Nas conclusões do relatório Costa Pinto, quando se defende que Salgado devia ter saído mais cedo (não se diz exatamente quando), admite-se que “a complexidade da decisão da remoção de Ricardo Salgado dos cargos executivos que ocupava no Grupo ESFG e, em  particular, no BES era aumentada pelo seu impacto previsível sobre a reputação deste banco, podendo mesmo levar a uma crise de confiança, com eventuais implicações sistémicas”. A comissão independente que fez este trabalho acrescenta, assim, que “uma tal decisão pressupunha, por isso, a existência de um adequado plano de apoio financeiro público“.

Voltando atrás, portanto, ao capítulo das “condicionantes”, fala-se um pouco sobre até que ponto um plano de recapitalização pública poderia ter sido uma opção – e que entraves é que existiam. E uma consideração fundamental é que a forma como tinha sido feita a capitalização de bancos como o BCP e o BPI, em 2012, através das chamadas obrigações de capital contingente (CoCo’s), já não era uma opção desde que em janeiro de 2014 se alterou o regime de recapitalizações públicas, no âmbito do novo enquadramento europeu de auxílios de Estado a bancos.

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Desse novo enquadramento emergiu “um quadro notoriamente mais exigente e restritivo para as medidas de recapitalização pública de instituições de crédito”, sublinha o relatório Costa Pinto no capítulo sobre as condicionantes, na página 354. E, concretamente, esse quadro era mais restritivo porque passou a prever-se a “necessidade de fazer preceder qualquer capitalização de  instituições de crédito com recurso ao investimento público de um plano de reforço de capitais permitindo reduzir ao máximo ou eliminar qualquer insuficiência de fundos próprios detetada”.

Trocado por miúdos, isto quer dizer que o Estado passou a só poder entrar no capital de um banco depois de “castigados” os acionistas e os obrigacionistas (quem tinha comprado títulos de dívida do banco, nas várias categorias). Há uma hierarquia de investidores que tem de ser envolvida no processo – leia-se, absorver perdas – de modo a que se reduza o valor que o Estado tem de injetar ou, eventualmente, seja suficiente para que nem seja necessário esse auxílio estatal.

"Entre os aspetos principais consagrados na Lei nº 1/2014, e que traduzem essa abordagem marcadamente mais restritiva, conta‐se, em especial, a necessidade de fazer preceder qualquer capitalização de instituições de crédito com recurso ao investimento público de um plano de reforço de capitais permitindo reduzir ao máximo ou eliminar qualquer insuficiência de fundos próprios detetada."
Relatório Costa Pinto, página 355

Esta é uma situação que se mantém nos dias de hoje, pelo que numa situação semelhante o Governo português teria grandes dificuldades em negociar um auxílio de Estado como aquele que Costa Pinto admite que poderia ter sido necessário no BES, no final de 2013 ou início de 2014.

Foi possível fazer a injeção de capital na Caixa Geral de Depósitos em 2016 sem impor perdas aos credores do banco por uma razão simples: fizeram-se duas emissões de dívida no mercado com o objetivo de provar que a instituição tinha acesso aos mercados de capitais e que o Estado estava a investir como também poderia fazê-lo um qualquer investidor privado.

BESA. O obstáculo que foi o segredo bancário do Banco Nacional de Angola

A legislação sobre o segredo bancário em Angola é referida como tendo sido “um obstáculo à prestação de informação ao Banco de Portugal acerca da identidade dos devedores da carteira de crédito do BESA”, a unidade que o BES tinha em Angola e que acabou por ser decisiva para o colapso do BES, com perdas de vários milhares de milhões de euros em crédito aos quais foi perdido o rasto. O relatório Costa Pinto analisou a Lei das Instituições Financeiras, que é “análoga” ao RGICSF português, e aprofundou a matéria do segredo bancário.

O que diz a lei angolana, no artigo 59º, é que “os membros dos órgãos da administração ou de fiscalização das instituições financeiras bancárias, os seus empregados, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestam serviços a título permanente ou ocasional, não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes, cujos conhecimentos lhes advinha exclusivamente do exercício das suas funções ou de prestação dos seus serviços”.

Porém, defende o relatório Costa Pinto, “não constitui naturalmente violação do segredo a prestação de informações pela instituição a terceiros quando a mesma seja devida por lei, o que acontece quando se trata de informações prestadas à supervisão”. Mas as exceções previstas na lei angolana (artigo 60º) só consagram a prestação de informações ao Banco Nacional de Angola, além de outras entidades financeiras e judiciais do país.

Não se encontra na lei nenhuma disposição que excetue o dever de segredo de instituições financeiras angolanas relativamente a informações prestadas diretamente a autoridades de supervisão de outros Estados”, conclui o relatório.

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Ou seja, não está previsto na lei angolana que possa haver prestação de informações a autoridades de supervisão estrangeiras, mesmo que essas autoridades supervisionem a entidade dominante da instituição financeira angolana: “a prestação de informação pela instituição, ou seus auditores externos, sobre os detalhes de crédito deve sempre ser dirigida à autoridade angolana a quem cabe a supervisão em base individualizada”.

Assim, como aliás continua a acontecer, “a lei de Angola não parece prever nem permitir que uma instituição de crédito com sede em Angola forneça diretamente informações sobre  detalhes do seu crédito, à sociedade que domine o seu capital, ainda que tal sociedade dominante seja uma instituição de crédito, nem à autoridade de supervisão em base individualizada dessa instituição de crédito dominante, ainda que esta supervisione em base consolidada a instituição dominada”, nota o relatório Costa Pinto, acrescentando que “a prestação direta de tais informações, não estando excetuada do segredo, envolveria violação de segredo“.

Essa foi mais uma condicionante com a qual se deparou o Banco de Portugal, mas, na realidade, a legislação é simétrica. “Também em Portugal, uma filial portuguesa de uma instituição financeira de Angola apenas deve fornecer informações sobre matérias cobertas pelo segredo bancário, ao Banco de Portugal e demais autoridades de supervisão portuguesa. Não o poderá fazer diretamente ao BNA, ainda que este supervisione a instituição angolana dominante. O acesso a esta informação terá de passar por um acordo com o Banco de Portugal“, explica o relatório Costa Pinto.

 
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