Índice
Índice
“A primeira coisa que fazemos é matar todos os advogados”, escreveu William Shakespeare em Henrique VI (parte 2), no século XVI. Quase 400 anos depois, há quem afirme que este é o plano da tecnologia e da inteligência artificial. Contudo, mesmo com o Doc Brown e Marty McFly em “Regresso ao Futuro 2“ a prever um futuro livre de advogados, a defesa jurídica não só não desapareceu, como evoluiu. Agora, há juristas ajudados por assistentes digitais chamados “Kira” e “Luminance”, leis que trocaram o papel pela “nuvem”. E há, até, quem esteja a trabalhar em prever o resultado de sentenças (sim, como no “Relatório Minoritário”).
Referências a literatura e a filmes de ficção científica de parte, o Observador falou com advogados dos maiores escritórios em Portugal — como a Morais Leitão, a VdA, a Cuatrecasas, a PLMJ e a DLA Piper –, para perceber como é que o dia a dia da prática jurídica já está a mudar com as novas tecnologias. O Direito pode ainda precisar de pesados manuais com doutrina e volumosos códigos para ser praticado, mas cada vez mais os advogados estão a abrir espaço à inovação. Como nos explicou Adam Hembury, diretor de inovação da DLA Piper em Londres, “há uma tendência [para a inovação tecnológica], mas é bastante difícil implementar por todos os ramos jurídicos”. Onde, então, é que o futuro já está a chegar ao Direito e à advocacia?
O futuro legal: de advogados robôs a algoritmos que preveem o resultado de um processo
A doutrina pode divergir em várias áreas, mas neste ponto não: “os escritórios de advogados estão a mudar”, como refere Paulo Farinha Alves, Sócio da PLMJ responsável pela inovação e implementação de software de Inteligência Artificial. A mudança não está a ser tão disruptiva, nem rápida, como foi a Uber para os táxis ou a internet para os jornalistas, como explicava o Financial Times, em 2017. Contudo, os tablets já estão a substituir nos tribunais os códigos civis e penais, as assinaturas já estão a ser reconhecidas à distância e há contratos a serem redigidos automaticamente completando um pequeno questionário. Muito está a mudar. O passo seguinte? Robôs que respondem a clientes e algoritmos que permitem saber a probabilidade de vencer um processo.
Não acredita? No filme “Relatório Minoritário” (2002) Tom Cruise apanhava criminosos antes de estes cometerem um crime com um sistema que envolvia dedos a mexer, umas bolas encarnadas e uns “precogs” (se não viu o filme é daqueles que merecem ser vistos). Dezasseis anos depois, e na vida real, já há empresas — como a Equivant — a criar algoritmos que, consoante os atos cometidos pelo cliente, permitem saber a taxa de sucesso para um caso. Um bom advogado normalmente confia na intuição, mas, no futuro, sistemas como este podem ser o suficiente para mais rapidamente decidir sobre aceitar um acordo — ou não — em vez de seguir para tribunal (ou, para os advogados, nem sequer aceitarem um cliente).
Para juízes e sociedades norte-americanas este tipo de software já está a ser testado. Como explica o The New York Times, há quem já enfrente penas mais restritivas da liberdade porque o sistema calculou que a probabilidade de se tornar reincidente era alta (mesmo com as questões éticas que isto levanta). “Já estamos a ver [este tipo de software], mas está só nos Estados Unidos da América”, assume Paulo Farinha Alves. No entanto, como muita da tecnologia que aparece nos ordenamentos jurídicos do outro lado do Atlântico, “pode nem chegar a Portugal”. A principal razão para isso está na diferença das bases do sistema judicial e na língua, como conta Adam Hembury: “O problema [na proliferação destas tecnologias para outros países] é estarem a ser construídas para o sistema inglês e para a língua inglesa”.
Outra das ideias que têm gerado alguma expetativa são os assistentes digitais jurídicos. Imagine o cenário: é mandado parar pela GNR na auto-estrada. “Vai pagar caução ou deixar a carta?”, pergunta o guarda. “Espere, deixe-me falar para o meu advogado”, responde. Pega no telemóvel e quem atende é uma assistente digital do escritório (como a Siri, da Apple, ou a Alexa, da Amazon). A ideia é muito parecida com o que a Google mostrou em maio (em que o assistente digital faz marcações para restaurantes e cabeleireiros, substituindo-se ao utilizador). Neste caso, os sistemas que estão a ser preparados para os escritórios de advogados permitem que, neste tipo de situações, a rápida resposta jurídica esteja do outro lado da linha com as respostas pré-definidas (“pague caução para depois apresentar defesa”, dirá a assistente).
Para apoio em questões rápidas, o futuro da advocacia pode passar por aqui. Contudo, como refere Eduardo Paulino, sócio da Morais Leitão, “a inteligência artificial não vai substituir a análise, perceção e criatividade de um advogado”. Ainda “não é possível programar completamente o know-how e o conhecimento jurídico”, mas mesmo assim, atualmente, várias ferramentas digitais já são o braço direito dos juristas e a inteligência artificial já está nos escritórios de advogados portugueses.
Kira versus Luminance, o mercado de assistentes de inteligência artificial para advogados
De um lado a Kira, a ser utilizada em Portugal pela PLMJ, a DLA Piper e a Cuatrecasas, do outro a Luminance, com as sociedades Morais Leitão e a VdA. As duas tecnologias de machine learning e inteligência artificial foram lançadas em 2016, embora a Kira esteja plenamente disponível há mais tempo. “A Kira e a Luminance são os players do mercado [português]”, como explicaram os advogados. Quem estiver a pensar no HAL 9000, do 2001 Odisseia no Espaço, ou na robô Sophia, pode ficar desiludido com estes dois softwares. É que, na prática, são dois programas que reveem contratos de due diligence [são como uma “auditoria jurídica” que se faz em fusões ou aquisições], grandes transações de mercado de capitais, ou no direito imobiliário.
Com medo dos robôs? Não é preciso, pede Sophia: “A revolução é menos assustadora do que pensam”
Confuso? Imagine uma empresa que quer comprar uma operadora telefónica que tem antenas em todo o país. Em cada região há provavelmente normas e tipos de licença diferentes para cada antena. Estes sistemas jurídicos informáticos de inteligência artificial, além de permitirem a indexação dos documentos, reconhecem as cláusulas de contratos e percebem que normas devem ser tidas em conta para serem aplicadas em cada caso. “[O sistema] não está só a dizer que que tenho cinco mil documentos, está a aprender o que está certo e o que não está”, diz Adam Hembury (a DLA Piper foi das primeiras sociedades a implementar a Kira).
As equipas de gestão de conhecimento de sociedades como a Cuatrecasas, “já consideram a Kira um membro da equipa”. Na prática, o que estes sistemas fazem é “diminuir as tarefas repetitivas e volumosas, proporcionando aos advogados um trabalho mais produtivo”, explica Maria João Ricou. Contudo, estas novas tecnologias não são livres de defeitos: “Pode-se ensinar o sistema, mas é muito complicado e muito lento”, conta o diretor de inovação da DLA Piper.
Mesmo assim, como explica Eduardo Paulino, que tem implementado o Luminance, há um “entusiasmo com os benefícios que a Inteligência Artificial proporcionará à prática jurídica”. Apesar de estas ferramentas terem surgido em países como o Reino Unido em 2016, em Portugal, a “moda” é recente. O potencial da tecnologia é claro: melhorar o “desempenho de tarefas mais padronizadas”. A ser usado desde abril na Morais Leitão, o Luminance “permite uma redução significativa no tempo alocado a esses processos [repetitivos]”. Mesmo “melhorando a produtividade”, o Luminance, como a Kira, “não transforma a abordagem legal”. É como uma assistente para o trabalho mais monótono e repetitivo.
Tanto a Kira como o Luminance, à medida que analisam cada vez mais casos e contratos, vão tornar-se mais eficientes na indexação e reconhecimento das normas a aplicar. Em escritórios como a VdA, explica Sofia Barata, os testes do Luminance começaram no início de 2018 para, só em junho, passarem a uma “fase de treino” (nesta sociedade a ferramenta ainda não está implementada a 100%). “A forma como ensinamos a própria plataforma depende, em absoluto, daquilo que lhe damos”, explica a jurista, que revela que a implementação tem sido um esforço que envolve todos os sócios.
Enquanto umas sociedades escolhem a Kira por ser a que está há mais tempo a ser disponibilizada no mercado — está desde 2016, o Luminance, nesta data, estava disponível, mas ainda em fase de testes –, outras escolhem o concorrente Luminance. A razão? “Foi criada por matemáticos da Universidade de Cambridge”, afirma a Morais Leitão, e, como em tudo, a concorrência no mercado continua a ser chave. Ao apostar na introdução desta tecnologia nos mercados lusófonos, as sociedades estão, ao mesmo tempo, a colaborar com a Kira Systems (a empresa que detém a Kira) e com a Luminance Technologies (que detém o Luminance) para melhorar estes sistemas.
A nível internacional, como explica Adam Hembury, há outros “players” a fazer a mesma análise inteligente de contratos, como a Ebrevia. “No futuro, podemos vir a utilizar várias destas ferramentas”, e não apenas uma ou duas, explica o responsável de inovação da sociedade. Mas a inteligência artificial não é a única tecnologia a ser utilizada nos corredores da advocacia.
Linhas de código para aplicar bem os códigos
“Plataformas de gestão documental, datarooms virtuais e bases de dados de informação jurídica”. Para a advogada Maria João Ricou, sócia da Cuatrecasas, estas são apenas algumas das tecnologias que, no quotidiano, facilitam o trabalho na sociedade. “Ficamos habilitados a processar e aceder à informação relevante de uma forma mais rápida e abrangente”, explica a jurista. Como os outros escritórios com que o Observador falou, esta sociedade está também a introduzir “tecnologia mais avançada que aplica machine learning”. Antes disso, porém, a tecnologia está a dar ferramentas que facilitam a vida dos grandes escritórios, e nem todas partem de software, mas sim de técnicas de gestão. Uma que parece ser cada vez mais comum entre escritórios é um estrangeirismo, com é costume nestas inovações: “Legal Project Management”.
Legal Project Management
↓ Mostrar
↑ Esconder
“Gestão de projetos jurídicos”, em português. É o nome dado às técnicas de gestão que o coordenador de cada caso (ou casos) utiliza para acompanhar cada um em tempo real. Na prática é um sistema estandardizado cada vez mais utilizado em escritórios de advogados que permite acompanhar cada processo como se acompanha um projeto de negócio aliando software de faturação, comunicação e de gestão de tempo. O objetivo é perceber quem está a fazer o quê, utilizando que recursos, de forma a manter a eficiência do projeto mantendo o orçamento apresentado. Como João Tiago Silveira, da MLGTS, explica: “Não é apenas uma ferramenta interna de administração porque permite o envio de relatórios muito detalhados para o cliente”, é o que permite otimizar a gestão de cada caso.
Na prática, é “uma ferramenta que vê a carga de trabalho para cada advogado”, como explica João Tiago Silveira, sócio da Morais Leitão. Esta ferramenta está a ser usada na Morais Leitão e já é utilizada em várias firmas internacionais. Recorrendo a softwares internos em que é possível ver o tempo de trabalho de cada advogado, os programas informáticos (aplicações) aliados a esta técnicas costumam ser “feitos à medida” para cada sociedade, como nos explicaram os vários juristas.
As empresas de tecnologia encontram nestes escritórios clientes para os serviços informáticos que vendem aplicados à prática jurídica. Outras ferramentas, como vRoom (para a colaboração com clientes na cloud da empresa IQ), o Docusign (para validar assinaturas digitais) ou os add-ons para o software de escrita como o Microsoft Word (uma espécie de apps para o Word), já têm também espaços garantidos nos escritórios de advogados.
É devido a estas ferramentas, como os add-ons para o Word, que já existem as minutas inteligentes (modelos de documentos legais que são preenchidos automaticamente). Há contratos que são escritos apenas respondendo a algumas perguntas num questionário, explicam os jurisconsultos. Mesmo assim, “este tipo de ferramentas não substituiu os advogados”, o que fazem, diz o jurista Farinha Alves, “é libertar o trabalho”.
Exemplo dessa facilitação são os data rooms (salas digitais de documentos). Na prática, é pôr no mundo digital os processos que antes estavam em salas no mundo real. Em vez de se ter estagiários a indexar os documentos, automaticamente o sistema permite que se encontre o que se pretende (como quando procura uma palavra num documento PDF). “Imagine um processo judicial como a Operação Marquês, em que se colocam em cima da mesa [de um dia para o outro] milhares de documentos de buscas que foram feitos pelo Ministério Público, é manifestamente necessário haver ferramentas de indexação e de busca”, exemplifica Farinha Alves.
“Vi data rooms com dimensões muito significativas [salas cheias de documentos]. Depois passou para um período mais simples, nos data rooms virtuais, e os documentos passaram a estar armazenados numa Cloud“, isto é, alojados num servidor remoto, explica o jurista sobre a forma como guardam os documentos de vários casos que passam pelos escritórios e fazem o dia a dia de um advogado atualmente bem diferente do que era.
“Se falar com um advogado que começou um estágio há cinco anos nem sabe o que é uma certidão em papel”, explica João Tiago Silveira, que também foi Secretário de Estado da Justiça quando se implementou o CITIUS (aplicação informática para consulta e submissão de elementos processuais), em 2008. Outras ferramentas, como CITIUS e o SITAF (sistema de informação dos tribunais administrativos e fiscais), têm permitido uma interação mais digital — e célere — com o sistema judicial.
Por isso, os escritórios de advogados não escapam também à tendência do trabalho remoto. “Passámos de computadores fixos para ser tudo completamente portátil”, assume Sofia Barata, advogada responsável pela implementação de Inovação na VdA. Um dos exemplos é o peso levado para as salas de audiência. Muitos advogados, como explica, reduziram os “trolleys de códigos e jurisprudência” a iPads e laptops. No fim, o resultado do trabalho é o mesmo, só que mais eficiente.
“Vamos continuar a precisar de mão humana” e até mais
Mesmo com clouds, assistentes jurídicos digitais e contratos inteligentes, um comentário foi unânime entre os advogados. A tecnologia pode estar a mudar o dia a dia da advocacia, mas, pelo menos para já, não está a substituir os advogados. Como afirmou a responsável da VdA, “o objetivo não é ter menos advogados”. Para João Tiago Silveira, a ideia é a mesma: “Vamos continuar a precisar de mão humana”. No fim, “cada vez mais vão existir ferramentas tecnológicas na área jurídica e juristas especialistas nestas áreas”, o que leva à necessidade de se ter mais advogados.
O que está a mudar, explicam as sociedades de advogados, é o trabalho que é feito pelos advogados. “Há muitas tarefas que os advogados fazem no dia a dia que são repetitivas, mas tecnologia acabará por eliminá-las”, afirma Farinha Alves. Mesmo assim, o jurista assume: “A fazer perguntas a uma testemunha ainda não há quem me possa substituir.”
Quanto ao tema da inteligência artificial nas sociedades, Sofia Barata afirma que, mesmo tratando-se de “processos disruptivos”, na “firma [a implementação destes novos sistema] é um processo tranquilo”. Na Cuatrecasas, só em 2017, foram investidos “mais de dois milhões de euros e 40 mil horas de formação num plano de capacitação tecnológica para uso mais eficaz das ferramentas digitais”, revela Maria João Ricou.
As sociedades, ao usarem estas tecnologias, querem melhorar os serviços que vendem para cativar mais clientes, explicam os advogados. Mesmo assim, como assume Adam Hembury, “a indústria jurídica não está realmente sob grande pressão para mudar. Os clientes não obrigam as sociedades a criar formas para reduzir os custos”. A razão tem a ver com o próprio mercado. Em cada país há ordenamentos jurídicos diferentes e há vários ramos de Direito praticados de cada maneira. Como explica o gestor, é um entrave à inovação. Contudo, mesmo assim, a pouco e pouco, a tecnologia já está a mudar os escritórios de advogados.