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Henri Bureau/Sygma/Corbis/VCG via Getty Images

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A lição de Soares

José Manuel dos Santos escreve sobre "Mário Soares e o 25 de Abril: o Essencial", do historiador David Castaño, "um livro sobre o nosso passado recente. e também sobre o presente e o futuro".

Mário Soares e o 25 de Abril: o Essencial dá-nos a conhecer, com fundamento e rigor, os dois anos mais decisivos da nossa história contemporânea e a ação de um homem que foi decisivo nesses anos também decisivos. É uma obra que colhe uma grande vantagem da sua dimensão, pois é um livro maior no seu alcance do que na sua extensão. Podemos mesmo dizer que, neste caso, a sua concisão é clareza; a sua brevidade é intensidade; a sua condensação é consistência.

O livro sabe aproveitar o espaço que a si mesmo se deu e não perde tempo em perífrases, rodeios, redundâncias, divagações. Faz da pontaria o modo como acerta no alvo. É, ao mesmo tempo, analítico e sintético, descritivo e interpretativo. A energia da sua fluência gera um movimento narrativo acertado e a segurança da sua montagem de tempos e temas dá-lhe uma potência cinematográfica, com um bom ritmo e uma boa eficácia sedutora.

As palavras contam e mostram o que contam. Vamos assistindo ao que se passa, vamos vendo a lógica de cada lance e os efeitos no jogo a que pertence, vamos compreendendo as razões das escolhas, muitas vezes dramáticas (até no sentido teatral), que definem e determinam as situações e as circunstâncias, as convulsões e as transformações, os impasses e as ruturas de um tempo cheio disso tudo.

Conhecedor deste período, dos seus acontecimentos e dos seus protagonistas, que estudou com profundidade em obras anteriores, David Castaño dá-nos conta de uma história que pôs então Portugal no fio da navalha (ou à beira do abismo) e no centro do mundo.

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Nesse tempo e neste lugar, todas as ideias políticas procuraram aqui o seu laboratório, todas as utopias acharam aqui a sua montra e todas as tentações de poder encontraram aqui a sua vontade e a sua oportunidade. Aqui, neste paraíso revolucionário, tudo foi tentado e, como no primeiro paraíso, o inferno começou a aproximar-se dele.

A capa de "Mário Soares e o 25 de Abril: o Essencial", de David Castaño (Edições 70)

Nada do que se fez foi inocente e tudo o que se fez tinha risco, ameaça e perigo. As ideologias tornaram-se paixões e as paixões, fanatismos. Não havia dúvidas, mas certezas absolutas e agressivas. Não existiam perguntas, mas respostas totais e definitivas. Não havia propostas, mas intimações clamorosas. Não existiam reivindicações, mas intimidações ferozes. Não havia demoras, mas urgências gritantes e gritadas. Não existiam frases, mas slogans exaltados e combativos. Não havia vozes, mas brados e clamores.

No dia-a-dia da Revolução, tudo tinha um “efeito borboleta” — qualquer palavra gerava um eco crescente que chegava a todo o mundo; qualquer gesto conhecia uma repercussão imparável; qualquer ato originava um sismo assustador.

Esse fogo ardente que se ateou nas mentes, nos corpos e nas ruas, queimando passados, instituições, sonhos, ilusões, reputações e edifícios, ainda não se extinguiu completamente. Como se tem visto no nosso presente, o período histórico do PREC continua a provocar leituras contraditórias, interpretações falseadas, exegeses distorcidas, reivindicações anacrónicas, manipulações inaceitáveis, apropriações ilegítimas e aproveitamentos indecorosos.

Ao longo deste meio século que conta o tempo até nós, dos dias do PREC e da sua memória nasceram poemas, romances, novelas, diários, testemunhos, ensaios, fotografias, pinturas, esculturas, filmes. E muitas obras de historiografia, de ciência política, de disciplinas de relações internacionais, de sociologia, de jornalismo. A própria figura central deste livro escreveu e falou amplamente sobre esses anos e a sua intervenção neles. Como qualquer grande político, tinha a tentação que levou Churchill a avisar: “A História será amável comigo, porque tenciono escrevê-la eu”.

No meio desta “batalha de narrativas” e deste aluvião de estudos, neste ano de comemorações copiosamente aumentado, o livro do David Castaño ocupa o lugar da investigação segura, serena e subtil (sublinho a palavra “subtil”), da análise didática e distanciada, do juízo aberto, sem preconceitos nem dogmas, nem intenções ocultas. É o livro de um historiador que usa os meios e os métodos da sua disciplina para, com eles, dar ao tempo histórico que estuda a vida e mesmo a vivacidade que ele teve.

Ao compor o livro em quatro partes, que podem ser lidas como ensaios independentes, David Castaño organiza e torna flexível o tempo daquele tempo de acordo com os grandes temas que o determinaram: a vida política de Soares no final marcelista da ditadura; o seu papel na descolonização; o confronto no PREC com o PCP e a extrema-esquerda; e as relações de Soares com a Europa e os Estados Unidos.

Falando dos acontecimentos desses dois anos, que pareceram, às vezes, dois dias e, outras vezes, duas décadas, esta obra fala de um homem político que foi deles o ator principal, ganhando com isso uma relevância histórica única e um renome internacional ímpar. Assim, o seu nome tornou-se mesmo um símbolo da liberdade, conquistando ele o título de “pai da democracia portuguesa” e de rosto do Portugal democrático.

Ao seguir os passos que Mário Soares deu e fez dar no caminho sobressaltado desses anos convulsos, o livro apresenta-nos dele um retrato histórico e político, cuja objetividade se vai construindo por dentro e de dentro. Isto é, não se trata de uma objetividade artificial, exibida a partir de um exterior abstrato e porventura fictício, mas de uma objetividade conseguida a partir do interior da narrativa e com a metodologia que a conduz.

Das páginas deste livro, como de um miradouro de onde o tempo se olha a uma distância que o torna o que foi, avistamos civis e militares, revolucionários e reacionários, portugueses e estrangeiros, gente da cidade e gente do campo, padres e laicos, heróis e vilões, espiões e contra-espiões. Avistamos partidos e movimentos, intentonas e “inventonas” (como se dizia na altura), revoluções e contra-revoluções, ocupações e incêndios, conflitos e confrontos, levantamentos civis e golpes militares, manifestações e contra manifestações. Avistamos armas apontadas e punhos erguidos, suspeitas e acusações, plenários e assembleias, correrias e cercos, motins e perseguições, assaltos e greves (até a do governo), comunicados e boatos, ecrãs de televisão e manchetes de jornais.

Ao compor o livro em quatro partes, que podem ser lidas como ensaios independentes, David Castaño organiza e torna flexível o tempo daquele tempo de acordo com os grandes temas que o determinaram. Essas partes são: a vida política de Soares no final marcelista da ditadura; o seu papel na descolonização; o confronto no PREC com o PCP e a extrema-esquerda; e, finalmente, as relações de Soares com a Europa e os Estados Unidos e como isso o ajudou a ganhar o combate que impediu a perversão totalitária da Revolução, permitindo a instauração de uma democracia europeia, pluralista, representativa e civilista.

Mário Soares à chegada à estação de Santa Apolónia, em Lisboa, vindo de Paris, a 28 de Abril de 1974, fotografado por Eduardo Gageiro

Eduardo Gageiro

Nestes capítulos, Soares mede-se e confronta-se com Marcelo Caetano, António de Spínola e Álvaro Cunhal. A eles e sobretudo ao que eles representavam e queriam impor, Soares acabou por ganhar.

Em Mário Soares e o 25 de Abril: O Essencial, vemos o resistente que foi preso treze vezes, deportado e exilado a construir o seu destino político e a compor a sua imagem de marca. Lançado, logo após o 25 de Abril, no tumulto revolucionário, na sucessão trepidante de acontecimentos e na voragem quotidiana das vozes, das vertigens, dos vanguardismos, dos voluntarismos, das violências, das virulências, das vinganças, Soares é levado a pôr à prova a sua personalidade política, os seus ideais e as suas ideias, os seus projetos e os seus propósitos para o novo Portugal.

Para este combate pela democracia portuguesa, Mário Soares era o homem certo, no lugar certo e no momento certo. Tinha – e só ele tinha este conjunto de atributos — a personalidade destemida, a coragem serena, o vigor do combate, a experiência da resistência, o conhecimento do adversário, a capacidade de avaliação, a lucidez estratégica, a flexibilidade tática, a vontade vitoriosa, a autoridade moral, a consciência exata do que estava a acontecer e do que estava em causa nesse acontecer.

Este livro desfaz muitos mitos maiores e menores sobre Soares e sobre este tempo, que, sem exame crítico, não têm parado de circular. Ao lê-lo, vemos como carece de demonstração a teoria de que, ao chegar a Santa Apolónia, Soares já sabia que o PS ia ser o grande partido que lhe permitiria conquistar o poder e cumprir uma ambição pessoal. Ao lê-lo, vemos como não tem fundamento a tese daqueles que responsabilizam Soares pelas tragédias da descolonização. Ao lê-lo, vemos como não tem justificação a ideia de que nunca houve o perigo de instauração de uma ditadura comunista, porque o PCP apenas queria pôr as colónias africanas portuguesas sob influência soviética.

Afinal, que retrato de Mário Soares estas páginas nos dão?

É o retrato de um homem que amava a vida e que só a considerava digna de ser vivida em liberdade ou, não havendo liberdade, na luta pela liberdade e contra a tirania.

É o retrato de um português que tinha meditado profundamente a nossa História e o confronto que nela se foi dando entre uma tradição obscurantista, reacionária e despótica e uma tradição liberal, esclarecida e democrática. Ao observar esse confronto, procurou identificar as causas que levaram a que a democracia fosse, entre nós, um intervalo entre dois despotismos. Por isso, o seu grande desígnio era o de naturalizar e normalizar a democracia em Portugal. Essa foi a sua grande vitória contra o atavismo e o fatalismo.

Soares gostava de contar os episódios dos anos de 1974 e 1975 e fazia-o, desdramatizando-os, com um prazer e com uma alegria que saltava da sua voz nítida e contagiante. Ele tinha consciência do que, então, se tinha jogado, em Portugal, e sabia como a sua ação foi fundamental para o destino da liberdade e era como tal reconhecida em todo o mundo.

Como disse Eduardo Lourenço: “Mário Soares parece ter nascido para levantar do chão um sonho democrático que dois séculos de liberalismo não tinham conseguido erguer”. E notou: “ Sem pose, nem a pose da não-pose, passeou e passou entre ‘os grandes do mundo’ como se fossem seus vizinhos do lado”.

Este é o retrato de um político que sabia o que queria e que, pouco a pouco, com o PS e os seus amigos da Internacional Socialista, foi construindo os instrumentos, as alianças e os meios que lhe permitiram realizar a sua ideia de e para Portugal.

Essa ideia era a de uma democracia pluralista e representativa, que garantisse a liberdade de todos, que assegurasse o desenvolvimento e que favorecesse a igualdade de oportunidades, a justiça social e a solidariedade. Ou, dito de outra maneira, essa ideia era a de que em Portugal houvesse um Estado de direito democrático e um Estado social, modernos e europeus. Foi por isso que se bateu sob a ditadura e durante a Revolução, foi isso que realizou nos governos de que foi primeiro-ministro e foi isso que que consolidou como primeiro Presidente da República civil depois de seis décadas.

Essa ideia era também a de que, liberto de uma guerra colonial anacrónica e sem solução, Portugal, como contraponto ao fim do Império, integrasse a Europa a que geográfica e culturalmente pertence, reforçando nela o seu peso com a comunidade dos países de língua portuguesa de vários continentes a que está histórica e culturalmente ligado.

Soares gostava de contar os episódios dos anos de 1974 e 1975 e fazia-o, desdramatizando-os, com um prazer e com uma alegria que saltava da sua voz nítida e contagiante. Ele tinha consciência do que, então, se tinha jogado, em Portugal, e sabia como a sua ação foi fundamental para o destino da liberdade e era como tal reconhecida em todo o mundo. Ele, que um dia disse que tinha uma visão literária da vida, contava as  histórias dramáticas ou inverosímeis desse tempo com uma magnífica eloquência narrativa. O prazer que tinha comunicava-se aos ouvintes que eram transportados para um palco onde havia tanto das tragédias de Shakespeare como das comédias de Molière.

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Mários Soares (à esquerda) com François Mitterrand, Bettino Craxi e Felipe Gonzales depois de uma reunião com os partidos socialistas europeus a 5 de março de 1980

Gamma-Rapho via Getty Images

Como se vê, nesta obra de David Castaño, o exemplo fundamental que nos dá a longa e fascinante vida de Mário Soares, aqui surpreendida, em anos decisivos para Portugal e para o mundo, é a de que vale sempre a pena lutar por aquilo em que acreditamos. No seu caso, pela liberdade, pela justiça e pela paz. Ele, que era, ao mesmo tempo, idealista e realista, um pouco de Dom Quixote e um pouco de Sancho Pança, encontrou sempre na política uma grande possibilidade de realizar os sonhos humanos mais altos.

Num tempo em que as desigualdades não param de crescer, provocando e aproveitando reações e recusas para ameaçar gravemente a liberdade, a lição de Soares que este livro nos transmite ganhou uma indesmentível e imperiosa atualidade. Este não é apenas um livro sobre o nosso passado recente. É também um livro sobre o presente e o futuro.

Neste ano dos 50 anos do 25 de Abril e dos 100 anos do nascimento de Mário Soares, vivemos tempos assustadores de desvario, guerra e ameaça. É assim que, ao valor cultural e científico que esta obra possui e que deve ser creditado e agradecido ao seu autor, nós, seus leitores, podemos acrescentar-lhe o seu alcance cívico e democrático.

Este texto foi adaptado a partir da apresentação do livro “Mário Soares e o 25 de Abril: o Essencial”, de David Castaño, por José Manuel dos Santos, que foi assessor cultural dos Presidentes da República Mário Soares e Jorge Sampaio

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