Mário Soares e o 25 de Abril: o Essencial dá-nos a conhecer, com fundamento e rigor, os dois anos mais decisivos da nossa história contemporânea e a ação de um homem que foi decisivo nesses anos também decisivos. É uma obra que colhe uma grande vantagem da sua dimensão, pois é um livro maior no seu alcance do que na sua extensão. Podemos mesmo dizer que, neste caso, a sua concisão é clareza; a sua brevidade é intensidade; a sua condensação é consistência.
O livro sabe aproveitar o espaço que a si mesmo se deu e não perde tempo em perífrases, rodeios, redundâncias, divagações. Faz da pontaria o modo como acerta no alvo. É, ao mesmo tempo, analítico e sintético, descritivo e interpretativo. A energia da sua fluência gera um movimento narrativo acertado e a segurança da sua montagem de tempos e temas dá-lhe uma potência cinematográfica, com um bom ritmo e uma boa eficácia sedutora.
As palavras contam e mostram o que contam. Vamos assistindo ao que se passa, vamos vendo a lógica de cada lance e os efeitos no jogo a que pertence, vamos compreendendo as razões das escolhas, muitas vezes dramáticas (até no sentido teatral), que definem e determinam as situações e as circunstâncias, as convulsões e as transformações, os impasses e as ruturas de um tempo cheio disso tudo.
Conhecedor deste período, dos seus acontecimentos e dos seus protagonistas, que estudou com profundidade em obras anteriores, David Castaño dá-nos conta de uma história que pôs então Portugal no fio da navalha (ou à beira do abismo) e no centro do mundo.
Nesse tempo e neste lugar, todas as ideias políticas procuraram aqui o seu laboratório, todas as utopias acharam aqui a sua montra e todas as tentações de poder encontraram aqui a sua vontade e a sua oportunidade. Aqui, neste paraíso revolucionário, tudo foi tentado e, como no primeiro paraíso, o inferno começou a aproximar-se dele.
Nada do que se fez foi inocente e tudo o que se fez tinha risco, ameaça e perigo. As ideologias tornaram-se paixões e as paixões, fanatismos. Não havia dúvidas, mas certezas absolutas e agressivas. Não existiam perguntas, mas respostas totais e definitivas. Não havia propostas, mas intimações clamorosas. Não existiam reivindicações, mas intimidações ferozes. Não havia demoras, mas urgências gritantes e gritadas. Não existiam frases, mas slogans exaltados e combativos. Não havia vozes, mas brados e clamores.
No dia-a-dia da Revolução, tudo tinha um “efeito borboleta” — qualquer palavra gerava um eco crescente que chegava a todo o mundo; qualquer gesto conhecia uma repercussão imparável; qualquer ato originava um sismo assustador.
Esse fogo ardente que se ateou nas mentes, nos corpos e nas ruas, queimando passados, instituições, sonhos, ilusões, reputações e edifícios, ainda não se extinguiu completamente. Como se tem visto no nosso presente, o período histórico do PREC continua a provocar leituras contraditórias, interpretações falseadas, exegeses distorcidas, reivindicações anacrónicas, manipulações inaceitáveis, apropriações ilegítimas e aproveitamentos indecorosos.
Ao longo deste meio século que conta o tempo até nós, dos dias do PREC e da sua memória nasceram poemas, romances, novelas, diários, testemunhos, ensaios, fotografias, pinturas, esculturas, filmes. E muitas obras de historiografia, de ciência política, de disciplinas de relações internacionais, de sociologia, de jornalismo. A própria figura central deste livro escreveu e falou amplamente sobre esses anos e a sua intervenção neles. Como qualquer grande político, tinha a tentação que levou Churchill a avisar: “A História será amável comigo, porque tenciono escrevê-la eu”.
No meio desta “batalha de narrativas” e deste aluvião de estudos, neste ano de comemorações copiosamente aumentado, o livro do David Castaño ocupa o lugar da investigação segura, serena e subtil (sublinho a palavra “subtil”), da análise didática e distanciada, do juízo aberto, sem preconceitos nem dogmas, nem intenções ocultas. É o livro de um historiador que usa os meios e os métodos da sua disciplina para, com eles, dar ao tempo histórico que estuda a vida e mesmo a vivacidade que ele teve.
Falando dos acontecimentos desses dois anos, que pareceram, às vezes, dois dias e, outras vezes, duas décadas, esta obra fala de um homem político que foi deles o ator principal, ganhando com isso uma relevância histórica única e um renome internacional ímpar. Assim, o seu nome tornou-se mesmo um símbolo da liberdade, conquistando ele o título de “pai da democracia portuguesa” e de rosto do Portugal democrático.
Ao seguir os passos que Mário Soares deu e fez dar no caminho sobressaltado desses anos convulsos, o livro apresenta-nos dele um retrato histórico e político, cuja objetividade se vai construindo por dentro e de dentro. Isto é, não se trata de uma objetividade artificial, exibida a partir de um exterior abstrato e porventura fictício, mas de uma objetividade conseguida a partir do interior da narrativa e com a metodologia que a conduz.
Das páginas deste livro, como de um miradouro de onde o tempo se olha a uma distância que o torna o que foi, avistamos civis e militares, revolucionários e reacionários, portugueses e estrangeiros, gente da cidade e gente do campo, padres e laicos, heróis e vilões, espiões e contra-espiões. Avistamos partidos e movimentos, intentonas e “inventonas” (como se dizia na altura), revoluções e contra-revoluções, ocupações e incêndios, conflitos e confrontos, levantamentos civis e golpes militares, manifestações e contra manifestações. Avistamos armas apontadas e punhos erguidos, suspeitas e acusações, plenários e assembleias, correrias e cercos, motins e perseguições, assaltos e greves (até a do governo), comunicados e boatos, ecrãs de televisão e manchetes de jornais.
Ao compor o livro em quatro partes, que podem ser lidas como ensaios independentes, David Castaño organiza e torna flexível o tempo daquele tempo de acordo com os grandes temas que o determinaram. Essas partes são: a vida política de Soares no final marcelista da ditadura; o seu papel na descolonização; o confronto no PREC com o PCP e a extrema-esquerda; e, finalmente, as relações de Soares com a Europa e os Estados Unidos e como isso o ajudou a ganhar o combate que impediu a perversão totalitária da Revolução, permitindo a instauração de uma democracia europeia, pluralista, representativa e civilista.
Nestes capítulos, Soares mede-se e confronta-se com Marcelo Caetano, António de Spínola e Álvaro Cunhal. A eles e sobretudo ao que eles representavam e queriam impor, Soares acabou por ganhar.
Em Mário Soares e o 25 de Abril: O Essencial, vemos o resistente que foi preso treze vezes, deportado e exilado a construir o seu destino político e a compor a sua imagem de marca. Lançado, logo após o 25 de Abril, no tumulto revolucionário, na sucessão trepidante de acontecimentos e na voragem quotidiana das vozes, das vertigens, dos vanguardismos, dos voluntarismos, das violências, das virulências, das vinganças, Soares é levado a pôr à prova a sua personalidade política, os seus ideais e as suas ideias, os seus projetos e os seus propósitos para o novo Portugal.
Para este combate pela democracia portuguesa, Mário Soares era o homem certo, no lugar certo e no momento certo. Tinha – e só ele tinha este conjunto de atributos — a personalidade destemida, a coragem serena, o vigor do combate, a experiência da resistência, o conhecimento do adversário, a capacidade de avaliação, a lucidez estratégica, a flexibilidade tática, a vontade vitoriosa, a autoridade moral, a consciência exata do que estava a acontecer e do que estava em causa nesse acontecer.
Este livro desfaz muitos mitos maiores e menores sobre Soares e sobre este tempo, que, sem exame crítico, não têm parado de circular. Ao lê-lo, vemos como carece de demonstração a teoria de que, ao chegar a Santa Apolónia, Soares já sabia que o PS ia ser o grande partido que lhe permitiria conquistar o poder e cumprir uma ambição pessoal. Ao lê-lo, vemos como não tem fundamento a tese daqueles que responsabilizam Soares pelas tragédias da descolonização. Ao lê-lo, vemos como não tem justificação a ideia de que nunca houve o perigo de instauração de uma ditadura comunista, porque o PCP apenas queria pôr as colónias africanas portuguesas sob influência soviética.
Afinal, que retrato de Mário Soares estas páginas nos dão?
É o retrato de um homem que amava a vida e que só a considerava digna de ser vivida em liberdade ou, não havendo liberdade, na luta pela liberdade e contra a tirania.
É o retrato de um português que tinha meditado profundamente a nossa História e o confronto que nela se foi dando entre uma tradição obscurantista, reacionária e despótica e uma tradição liberal, esclarecida e democrática. Ao observar esse confronto, procurou identificar as causas que levaram a que a democracia fosse, entre nós, um intervalo entre dois despotismos. Por isso, o seu grande desígnio era o de naturalizar e normalizar a democracia em Portugal. Essa foi a sua grande vitória contra o atavismo e o fatalismo.
Como disse Eduardo Lourenço: “Mário Soares parece ter nascido para levantar do chão um sonho democrático que dois séculos de liberalismo não tinham conseguido erguer”. E notou: “ Sem pose, nem a pose da não-pose, passeou e passou entre ‘os grandes do mundo’ como se fossem seus vizinhos do lado”.
Este é o retrato de um político que sabia o que queria e que, pouco a pouco, com o PS e os seus amigos da Internacional Socialista, foi construindo os instrumentos, as alianças e os meios que lhe permitiram realizar a sua ideia de e para Portugal.
Essa ideia era a de uma democracia pluralista e representativa, que garantisse a liberdade de todos, que assegurasse o desenvolvimento e que favorecesse a igualdade de oportunidades, a justiça social e a solidariedade. Ou, dito de outra maneira, essa ideia era a de que em Portugal houvesse um Estado de direito democrático e um Estado social, modernos e europeus. Foi por isso que se bateu sob a ditadura e durante a Revolução, foi isso que realizou nos governos de que foi primeiro-ministro e foi isso que que consolidou como primeiro Presidente da República civil depois de seis décadas.
Essa ideia era também a de que, liberto de uma guerra colonial anacrónica e sem solução, Portugal, como contraponto ao fim do Império, integrasse a Europa a que geográfica e culturalmente pertence, reforçando nela o seu peso com a comunidade dos países de língua portuguesa de vários continentes a que está histórica e culturalmente ligado.
Soares gostava de contar os episódios dos anos de 1974 e 1975 e fazia-o, desdramatizando-os, com um prazer e com uma alegria que saltava da sua voz nítida e contagiante. Ele tinha consciência do que, então, se tinha jogado, em Portugal, e sabia como a sua ação foi fundamental para o destino da liberdade e era como tal reconhecida em todo o mundo. Ele, que um dia disse que tinha uma visão literária da vida, contava as histórias dramáticas ou inverosímeis desse tempo com uma magnífica eloquência narrativa. O prazer que tinha comunicava-se aos ouvintes que eram transportados para um palco onde havia tanto das tragédias de Shakespeare como das comédias de Molière.
Como se vê, nesta obra de David Castaño, o exemplo fundamental que nos dá a longa e fascinante vida de Mário Soares, aqui surpreendida, em anos decisivos para Portugal e para o mundo, é a de que vale sempre a pena lutar por aquilo em que acreditamos. No seu caso, pela liberdade, pela justiça e pela paz. Ele, que era, ao mesmo tempo, idealista e realista, um pouco de Dom Quixote e um pouco de Sancho Pança, encontrou sempre na política uma grande possibilidade de realizar os sonhos humanos mais altos.
Num tempo em que as desigualdades não param de crescer, provocando e aproveitando reações e recusas para ameaçar gravemente a liberdade, a lição de Soares que este livro nos transmite ganhou uma indesmentível e imperiosa atualidade. Este não é apenas um livro sobre o nosso passado recente. É também um livro sobre o presente e o futuro.
Neste ano dos 50 anos do 25 de Abril e dos 100 anos do nascimento de Mário Soares, vivemos tempos assustadores de desvario, guerra e ameaça. É assim que, ao valor cultural e científico que esta obra possui e que deve ser creditado e agradecido ao seu autor, nós, seus leitores, podemos acrescentar-lhe o seu alcance cívico e democrático.
Este texto foi adaptado a partir da apresentação do livro “Mário Soares e o 25 de Abril: o Essencial”, de David Castaño, por José Manuel dos Santos, que foi assessor cultural dos Presidentes da República Mário Soares e Jorge Sampaio