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A maioria absoluta retirou o suspense à maratona orçamental: feitas as contas de uma semana de debate e votações, o Orçamento do Estado para 2022 foi, como era esperado, aprovado, apesar dos ataques constantes da oposição ao “rolo compressor da maioria absoluta”. No processo, o PS deixou os antigos parceiros para trás, ganhou alguns novos (e pelo menos um inesperado) e o clima ficou marcado por picardias entre eles. Houve insultos, muitas defesas da honra e até precedentes “gravíssimos” (com Augusto Santos Silva metido ao barulho).
O Observador deixa aqui, em versão de bolso, o resumo de todos os pontos que marcaram o primeiro processo orçamental da nova maioria absoluta.
O resultado
Foi começar o jogo com o resultado final garantido, mas ainda assim com uma surpresa no sapatinho na maioria absoluta socialista. Além das duas abstenções dos deputados únicos do Livre e do PAN, o PS ainda contou com a mesma orientação de voto por parte dos três deputados do PSD-Madeira. Perto da hora da votação os socialistas contactados pelo Observador ainda não sabiam que teriam esse bónus no momento final da aprovação do Orçamento, mas ele lá apareceu. Mudou pouco no quadro para o PS. Já no caso do PSD, o líder parlamentar Paulo Mota Pinto disse no final do debate que cumprirá o “dever funcional” de comunicar à Jurisdição do partido o sentido de voto dos deputados contrário ao da restante bancada.
A duração
Quarenta e seis horas e meia de discussão e votações de proposta de alteração. É o equivalente a quase dois dias inteiros, sem parar, de picardias políticas, guerrilhas regimentais, negociações, artigos, números e alíneas do Orçamento do Estado e das propostas de alteração (quase 1.500) ao mesmo. Daqui a seis meses há mais, no sítio do costume.
A palavra proibida
O Chega costumava ter uma palavra preferida no Parlamento: “vergonha” – por causa disso, André Ventura chegou, aliás, a ser repreendido pelo então presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues. Agora, a preferência parece ter mudado e em poucos dias foram vários os deputados brindados com a nova palavra mais usada pelo Chega: “hipócrita”. O primeiro alvo foram, mais genericamente, os “socialistas caviar”, a quem Pedro Frazão chamou hipócritas. Provocou assim uma das reações mais inusitadas da semana: o PS recorreu aos serviços do Parlamento para distribuir uma folha onde estava impressa a definição de “hipocrisia”, tirada do dicionário online Priberam, a todos os deputados.
O episódio irritou o PSD – “brincamos com os portugueses” – mas o Chega voltaria a usar a palavra para classificar Inês Sousa Real, num episódio em que PS e Bloco de Esquerda ainda se meteram para defender a deputada única “insultada” (e lamentar as intervenções do Chega, em que apetece “desligar o cérebro”, chegou a atirar o bloquista Pedro Filipe Soares). O PCP aproveitou a onda e até fez uma publicação no Instagram em que falava da tal hipocrisia – mas para criticar a facilitação de despedimentos no período experimental do Governo PS. Afinal, e apesar de ter valido várias defesas da honra em plenário, parece que a moda pegou.
A surpresa
Chama-se Hugo Carneiro e foi a quem coube a missão de conduzir os trabalhos da Comissão de Orçamento e Finanças (COF). Que é como quem diz, foi o deputado social-democrata que guiou as votações das quase 1.500 propostas apresentadas pelos partidos. Ponto por ponto, artigo a artigo. O papel começou por ser uma surpresa até para o próprio. A condução dos trabalhos da COF está a cargo do presidente, o socialista Filipe Neto Brandão. Mas imediatamente antes do arranque das votações na especialidade, Neto Brandão testou positivo à Covid-19. Hugo Carneiro, deputado do PSD, foi chamado a ir a jogo e, pelo que se foi percebendo pelas reações das bancadas, não desiludiu. Pelo contrário.
No final das votações, recebeu elogios por parte de praticamente todos os partidos. A eficácia (poderíamos chamar-lhe alta velocidade) com que desfiou as cerca de nove mil páginas dos guiões, chegando a propor, por engano, a votação conjunta de propostas do PS e do PCP, e a busca constante por consensos, evidente sobretudo nas “divergências de opinião” que surgiram face à apresentação de propostas fora do prazo do PS e do Livre, marcaram a estreia de Hugo Carneiro à frente da COF. Em declarações ao Observador, revelou-se modesto. “Relativamente a elogios sou sempre muito coletivo”.
Os novos parceiros
O debate na especialidade e as votações foram expondo as novas preferências negociais do PS, o que foi sendo assinalado pelos antigos parceiros, Bloco de Esquerda e PCP. PAN e Livre, por esta ordem, foram os que tiveram maior número de alterações ao OE aceites pela maioria socialista e a Rui Tavares foi mesmo estendida a passadeira vermelha, já que viu passar algumas das suas propostas mais emblemáticas (caso do Programa 3 C – Casa, Conforto e Clima e o estudo e programa-piloto para testar a semana de quatro dias).
Durante o debate, esta proximidade foi notada pela esquerda. Fernando Medina e Rui Tavares consubstanciaram agora o que experimentaram — sem sucesso — na Câmara de Lisboa, onde concorreram na lista derrotada (com enorme surpresa para o PS). Ainda pedalavam (em algumas ações de campanha mesmo literalmente) lado-a-lado e agora, oito meses depois, voltam a acertar ritmos, mas na Assembleia da República, um como ministro e o outro como deputado único de um partido à esquerda que serve ao PS para dar prova da capacidade de diálogo que Costa prometeu que teria mesmo com maioria absoluta.
Inês Sousa Real, do PAN, foi o outro elemento desta equação — onde a maioria socialista era suficiente para a conta final necessária à aprovação do Orçamento — que deu jeito ao PS na hora das contas finais (ver abaixo). E o inesperado bónus (já aqui referido) do PSD-Madeira.
Os velhos parceiros
Para quem acompanhou o cenário político dos últimos anos, tudo mudou: já não há negociações de última hora, parceiros a tentar ficar com os louros de cada medida e, no final, somaram-se centenas de propostas de Bloco de Esquerda e PCP chumbadas. “Há uma enorme distância entre este Orçamento e os anteriores”, acabou por desabafar Paula Santos, do PCP, no encerramento do debate. Bloco e PCP concordaram: dizer que este é o Orçamento mais à esquerda de sempre é uma “piada” (PCP dixit) e os portugueses perceberão isso “nos próximos meses” (Bloco dixit), quando ficar evidente que a inflação está a comer salários e pensões.
Até lá, a esquerda, reduzida na sua representação parlamentar e a ver os novos parceiros do Governo aprovar “estudos, comissões e projetos-piloto-de-projetos-piloto” (ironia de Catarina Martins), pode enfrentar um caminho difícil. Fernando Medina aproveitou, aliás, para atacar dizendo que ao contrário de “alguns” o Governo não desvaloriza nem renega os anos de geringonça. Mas, entre os antigos parceiros, já só restam mesmo memórias do tempo em que construíam Orçamentos juntos.
O precedente perigoso
No cerne da polémica estiveram duas propostas apresentadas fora de prazo: uma do PS, que aumenta a margem de endividamento das autarquias; outra do Livre, sobre o alargamento do subsídio de desemprego. O problema? Os deputados consideravam que as novas medidas entregues pelos dois partidos fora do prazo (como propostas de substituição) não deviam poder ser votadas: no caso do PS porque o endividamento das autarquias já tinha sido debatido em plenário antes da entrega da segunda versão (que não iria voltar a ser discutida); no caso do Livre porque o entendimento generalizado era de que o novo texto era substancialmente diferente do original (por deixar cair a referência explícita ao alargamento do subsídio a duas situações, mantendo-se apenas numa — vítimas de violência doméstica).
Levar ou não as propostas a votação resultou em longos debates (primeiro na segunda-feira e, quando o tema já parecia resolvido, na terça-feira). E a troca de galhardetes: o PSD chegou a acusar o PS de “manhosice”, Mariana Mortágua, do Bloco, disse que se abria um “precedente perigoso”, permitido pela maioria absoluta socialista. Coube, de facto, à maioria absoluta decidir que as medidas seriam votadas (e, mais tarde, aprovadas).
O rolo compressor
Precisamente no meio do braço de ferro regimental sobre a substituição do PS que mais parecia uma alteração total que o líder parlamentar do PSD usou a expressão que marcou estes dias de discussão. Depois do presidente da Assembleia da República ter aceitado a proposta do PS, prometendo utilizar o mesmo critério daqui em diante, Paulo Mota Pinto queixava-se antes da “falta de critério em benefício do rolo compressor da maioria absoluta. Não esperávamos isso da Assembleia da República.”
O PS entrou — aliás, Costa venceu as eleições com maioria e a prometer logo ali no discurso de vitória dialogar com todos menos o Chega — a prometer que não ia usar a maioria como “poder absoluto”, mas saiu do Orçamento com a oposição a aproveitar este e outros episódios para lhe chamar “absolutista”. A conclusão socialista ignorou, no entanto, este rol de críticas e o líder parlamentar Eurico Brilhante Dias, na sua intervenção final, apresentou ao plenário as suas contas para contestar tiques autoritários. O PS aprovou 66 proposta de alteração de outras bancadas, contando com as suas foram 119 as aprovadas. E menos de 2% das propostas, sublinhou o socialista, foram aprovadas com o partido do Governo isolado. Quanto ao conteúdo, já são contas de outro rosário.
O tema
Foi um dos temas — se não o tema — da especialidade do OE. E começou logo no primeiro dia, quando Catarina Martins atirou a Rui Tavares (Livre) que a taxa de IVA dos produtos menstruais já é de 6% há vários anos. Na altura, debatia-se a proposta do Livre para clarificar na lei que esses produtos beneficiam da taxa reduzida, o que na prática já acontece. O que a proposta do Livre faz é incluir uma categoria sobre “produtos menstruais” com dois objetivos: clarificar e baixar o IVA também para produtos menstruais feitos de tecido, e não de gaze (a categoria onde estão atualmente inseridos). A proposta acabaria aprovada, assim como outras relacionadas com a menstruação: ao Livre, o PS também deu o compromisso de realizar um estudo nacional sobre o impacto da menstruação na qualidade de vida das pessoas e das famílias. Já ao Bloco ofereceu a promoção de ações de informação sobre o ciclo menstrual, a utilização e a variedade de “produtos de recolha menstrual” na comunidade escolar.
As picardias
Foram várias as picardias à esquerda, sobretudo com o Livre – o parceiro que o PS considera agora o mais “próximo ideologicamente” de si. O clima de tensão foi evidente: bastaria ver que quando Augusto Santos Silva decidiu dar uns segundos extra a Rui Tavares para fazer uma interpelação rápida no debate, a esquerda irritou-se rapidamente e Paula Santos considerou mesmo a decisão “um precedente gravíssimo” (e o PSD chegou mesmo a juntar-se à indignação e a chamar ao caso um “ilícito”). Com Santos Silva, o clima também aqueceu quando mandou uma farpa ao liberal Carlos Guimarães Pinto – o deputado quis distribuir “literatura” sobre inflação aos deputados, o Presidente da Assembleia da República (PAR) respondeu que o Parlamento “não é uma escola” – e foi acusado pelo deputado de não ser “minimamente independente” (até porque nessa altura já se tinha permitido a tal distribuição da cópia do Priberam).
Menção honrosa para as zangas entre PAN e Chega, num dia sobre a proposta para criação de uma licença menstrual – que pôs Rita Matias (Chega) e Inês Sousa Real (PAN) a chamarem-se “pacóvia” e “bacoca” – e noutro sobre tauromaquia: Pedro Pinto (Chega) começou por dizer a Sousa Real que parecia um “golfinho” – “chega aqui, faz um pinote, volta para a água” – e acabou, lá está, a chamar-lhe… hipócrita: “É hipócrita, acabou”. (Na verdade, o episódio acabou com a deputada a defender-se e o Chega a garantir que as palavras “hipócrita” e “vergonha” não ofendem ninguém).
O “novo ciclo”
No discurso de encerramento do debate, que antecedeu a aprovação do OE, o ministro das Finanças não descolou da mesma ideia, repetida várias vezes por palavras distintas: o novo Orçamento marca o fim da crise política e inaugura um novo ciclo. Começando por apontar a mira aos ex-parceiros, PCP e Bloco, por terem aberto uma “crise política no pior momento possível”, Medina teorizou sobre como estes meses foram “tempo perdido” para os pensionistas, que não viram o aumento extra das pensões pago (embora a esquerda sempre tenha insistido que o Governo podia ter avançado com essa medida mesmo sem OE), para os jovens e as empresas.
A argumentação de Medina é que os ex-parceiros não quiseram negociar e daqui para a frente o país recuperará a “estabilidade e a normalidade”, com áreas de governação prioritárias como alterações à lei laboral, o novo estatuto do SNS, a redução dos custos de contexto. “Um novo ciclo de reformas”, concluiu.
O zero
Trezentas e nove propostas. Era este o número mágico do Chega à partida para a discussão do Orçamento na especialidade. Foi apenas ultrapassado pelo PCP, que tinha 353 sugestões para mudar o documento. O partido liderado por André Ventura conseguiu ver aprovadas… zero propostas. Foi o único partido com assento parlamentar que saiu de mãos a abanar das votações na especialidade. Algumas das bandeiras do partido, como a redução do IVA da restauração, a acumulação de pensões vitalícias com pensões de reformas por parte dos políticos, o subsídio de risco para os polícias ou a redução do IVA das touradas, levaram o líder do partido a acusar o “rolo compressor” da maioria de chumbar medidas só porque estas foram apresentadas pelo Chega.