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A missa não é "uma peça de museu". Como a instrumentalização da missa em latim levou o Papa a abrir guerra aos tradicionalistas

O Papa impôs limitações que, na prática, eliminam a missa em latim. O bispo D. José Cordeiro, responsável pela liturgia em Portugal, explica que missa antiga foi "instrumentalizada" por conservadores.

Os leitores mais velhos talvez ainda se recordem; os mais novos poderão ter ouvido histórias dos pais ou dos avós: antes da década de 1960, as missas católicas eram celebradas em latim e com o padre de costas para os participantes. O Concílio Vaticano II, reunião magna da Igreja entre 1962 e 1965 para reformar a instituição e a adaptar ao mundo contemporâneo, modificou o rito da missa, para que passasse a ser celebrada na língua de cada lugar, com o sacerdote voltado para os participantes e com mais leituras bíblicas. No fundo, para que deixasse de ser incompreensível pelos fiéis.

Contudo, a possibilidade de celebrar a missa antiga, em latim, manteve-se. Recebeu o nome de “forma extraordinária” e podia ser usada em determinadas circunstâncias, desde que com as devidas autorizações por parte dos bispos de cada lugar e consoante as características das comunidades de fiéis. Agora, porém, o uso da missa em latim poderá ter os dias contados.

Com um curto documento legislativo, essencialmente técnico, publicado no mês passado, o Papa Francisco abriu um dos debates mais quentes dos últimos anos na Igreja Católica. No motu proprio (uma lei da iniciativa direta do Papa, à semelhança de um decreto presidencial) que dá pelo nome de Traditionis Custodes (ou “guardiães da tradição”), Francisco reverteu uma política do seu antecessor, Bento XVI, e impôs fortíssimas restrições à celebração da missa antiga na Igreja Católica. E o motivo foi claro: a missa em latim tornou-se, nas últimas décadas, um refúgio e uma bandeira de grupos ultraconservadores dentro da Igreja, que a aproveitaram para “aprofundar as divisões, reforçar as divergências e encorajar desacordos”.

Com os conservadores na mira, Papa Francisco restringe celebração da missa em latim

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A possibilidade, inicialmente mantida como modo de garantir que todas as sensibilidades, das mais conservadoras às mais progressistas, tinham lugar na Igreja, acabou por ser deturpada — e o Papa decidiu intervir com mão de ferro para garantir que a Igreja Católica não se desintegra à conta dos ultraconservadores que aproveitaram as comunidades em que se celebra a missa em latim para cerrar as fileiras contra o modernismo. Por isso, poucas decisões do Papa Francisco lhe arranjarão tantos inimigos como esta. Por todo o universo católico, padres, bispos e cardeais conservadores já vieram criticar a medida — e se há quem veja nela o “momento definidor” do pontificado de Francisco, também há quem tema a possibilidade de um cisma moderno provocado pelo crescente afastamento entre fações internas na Igreja.

"Em alguns países, o uso da ‘forma extraordinária’ terá sido instrumentalizado e transformado em bandeira por grupos que não aceitaram o Concílio Vaticano II."
D. José Cordeiro, bispo de Bragança-Miranda e presidente da comissão de Liturgia e Espiritualidade da Conferência Episcopal Portuguesa

“Em alguns países, o uso da ‘forma extraordinária’ terá sido instrumentalizado e transformado em bandeira por grupos que não aceitaram o Concílio Vaticano II”, explica ao Observador o bispo de Bragança-Miranda, D. José Cordeiro, que é o presidente da comissão de Liturgia e Espiritualidade da Conferência Episcopal Portuguesa. “Penso que não se chegou a esse extremo em Portugal”, acrescenta o bispo, que deixa um aviso: “A Liturgia não deve ser uma peça de museu.”

Aramaico, grego e latim. De onde vem a missa dos cristãos?

A melhor maneira de perceber porque é que aquele curto documento técnico do Papa Francisco, que passaria despercebido aos olhos da maioria dos católicos, motivou um dos mais ácidos e divisivos debates da história recente da Igreja Católica é recuar dois mil anos para entender como a missa se tornou o elemento central da vida dos cristãos.

A origem da missa pode ser encontrada ainda nos textos bíblicos, no célebre episódio da última ceia de Jesus Cristo com os seus discípulos, antes da crucificação. Foi no momento em que distribuiu pão e vinho aos amigos e lhes ordenou que o repetissem no futuro — com o pedido “Fazei isto em memória de mim” — que, para os católicos, Jesus Cristo celebrou a primeira missa, na sua língua nativa, o aramaico. Daí que a Igreja Católica ainda hoje celebre a quinta-feira santa como o dia da instituição da Eucaristia.

“A Missa é sempre antiga e sempre nova, é sempre a mesma no seguimento do mandato de Jesus Cristo”, esclarece por escrito ao Observador o bispo D. José Cordeiro, doutorado em Liturgia e antigo professor do Pontifício Instituto Litúrgico, em Roma. “A forma da celebração é que foi evoluindo ao longo das várias épocas culturais.

Nos primeiros quatro séculos depois de Cristo, a celebração litúrgica era ainda uma versão muito rudimentar daquilo que mais tarde se viria a consolidar como missa. Um conjunto de ritos, celebrados em língua grega (uma espécie de “língua franca” do Médio Oriente mediterrânico durante o Império Romano), que repetiam os gestos de Jesus, em que se liam passagens das escrituras e em que se distribuía o pão. Mas a disseminação geográfica dos seguidores de Jesus (que fundaram comunidades católicas por toda a Europa, África e Ásia), bem como a inexistência de canais de comunicação rápidos e eficazes e a falta de tecnologia para copiar livros e escritos em massa, levou a que se desenvolvessem, em diversos lugares do mundo, maneiras muito diferentes de celebrar.

No Ocidente e no Oriente existem várias famílias litúrgicas ou ritos litúrgicos, que se consolidaram a partir do século IV”, explica D. José Cordeiro. “Geralmente, entende-se por rito litúrgico, o conjunto de usos, de normas e particularidades celebrativas próprias que se realizam numa Igreja local e que se distinguem das outras liturgias.”

A existência de diferentes ritos não significava, necessariamente, um afastamento teológico entre as diferentes comunidades de fiéis cristãos. Simplesmente, fatores como “a tradição histórica, o território, a língua, a teologia e a espiritualidade peculiares” influenciavam a criação de ritos diferentes, que hoje é possível identificar. As liturgias romana, ambrosiana, hispânica, galicana, céltica e africana são alguns dos exemplos que D. José Cordeiro aponta para explicar a diversidade de ritos que surgiram nos primeiros séculos do Cristianismo, antes de a autoridade central de Roma começar a unificar os procedimentos litúrgicos.

Ainda de acordo com o bispo e liturgista português, foi no século X que se chegou à primeira versão do Missal cristão — que resultou “da reunião num único volume dos vários elementos necessários para a celebração da Eucaristia até então dispersos em livros distintos”.

O bispo de Bragança-Miranda, D. José Cordeiro, é o presidente da comissão de Liturgia e Espiritualidade da Conferência Episcopal Portuguesa

Bruno Luís Rodrigues/Secretariado diocesano das Comunicações Sociais

Mas só no século XVI, quando a Igreja Ocidental foi dividida ao meio na sequência da Reforma Protestante protagonizada por Martinho Lutero, é que a missa viria a ganhar uma dimensão formal que perduraria até aos dias de hoje. A tradução da Bíblia e dos textos litúrgicos para o alemão por Martinho Lutero foi uma das principais heranças da Reforma Protestante. Lutero aproveitou a invenção da imprensa por Gutenberg, em 1439, para disseminar os seus textos teológicos em alemão por grande parte do norte da Europa. Ao mesmo tempo, a tradução das escrituras sagradas para o alemão — algo que, então, Roma repudiava — permitiu que milhões de pessoas passassem a ler a Bíblia em primeira mão e deixassem de confiar cegamente no que as autoridades eclesiásticas lhes diziam nos sermões. Simultaneamente, acredita-se que os esforços de tradução de Martinho Lutero no contexto da Reforma Protestante tenham dado um dos contributos mais significativos da história para a alfabetização do norte da Europa, por oposição ao sul, que se manteve tendencialmente leal a Roma — e a diferença considerável nos níveis de alfabetização entre norte e sul perdurou até ao século XX.

Porém, aquela ainda não era a época da modernização para a Igreja de Roma. A excomunhão de Martinho Lutero levou-o a fundar uma nova corrente cristã — o Protestantismo —, hoje dividida em múltiplas confissões e denominações, com grande expressão no norte da Europa, no continente americano e em África. Estima-se que 36,7% dos cristãos a nível global sejam protestantes, logo a seguir aos católicos, que totalizam 50,1% dos cristãos do mundo. Mas logo no século XVI, a Reforma Protestante teve um grande impacto na Igreja de Roma.

A partir de Roma, Paulo III (Papa entre 1534 e 1549) liderava uma Igreja dilacerada pela incerteza e pelas dúvidas: muitos fiéis questionavam-se sobre se Lutero não estaria realmente certo ao afastar-se de uma Igreja que vendia o perdão dos pecados a troco de dinheiro. Foi nesse contexto que o Papa Paulo III convocou o Concílio de Trento, também conhecido como Concílio da Contra-Reforma, que durou 18 anos e foi o concílio mais longo da história da Igreja Católica.

Na reunião, o Papa e os líderes católicos debateram a resposta a dar à Reforma. E, apesar de alguma divisão interna, a Igreja decidiu-se por um aprofundamento do conservadorismo litúrgico: em reação a uma modernização operada por Lutero, a Igreja de Roma codificou a celebração da missa clássica. Foi já sob o pontificado do Papa Pio V, ainda hoje recordado como uma figura de proa na padronização da missa, que o novo missal católico ficou pronto, com as regras que já conhecemos: em latim, sempre, e com o sacerdote virado para Deus, e de costas para o povo.

Por ter sido firmado em Trento, o rito recebeu o nome informal de “missa tridentina” e manteve-se como regra oficial da Igreja Católica durante 400 anos, até ao século XX.

Em 1961, porém, o Papa João XXIII percebeu que a Igreja Católica e a sociedade contemporânea não estavam a caminhar ao mesmo ritmo e sentiu o “urgente dever” de chamar os líderes eclesiásticos para uma reunião com o objetivo de “dar à Igreja a possibilidade de contribuir mais eficazmente na solução dos problemas da idade moderna”. Para colmatar o desfasamento cada vez mais evidente entre a Igreja e a sociedade, João XXIII convocou o Concílio Vaticano II, de onde viriam a sair grandes e profundas reformas da Igreja Católica. No ano de abertura do concílio, 1962, João XXIII ainda aprovou uma nova versão do missal tridentino, com “numerosas reformas”, como explica D. José Cordeiro. Ainda assim, o missal de 1962 ainda era, na prática, uma versão atualizada da missa em latim.

Durante o Concílio Vaticano II, a Igreja aprovou um conjunto de critérios para a revisão da missa católica, incluindo, nas palavras do bispo e liturgista português, a “simplificação e maior clareza dos ritos, conservando a sua substância”, a “supressão das coisas menos úteis que ao longo do tempo se foram duplicando ou acrescentando” e o “restabelecimento, de acordo com as normas dos Padres da Igreja, do que desapareceu”. Um dos objetivos fundamentais da reforma litúrgica dos anos 1960 era a promoção de uma “participação mais ativa e consciente dos fiéis”. Para isso, a tradução das escrituras e dos textos litúrgicos, bem como a própria reorganização espacial do rito da missa, foram essenciais para que os fiéis passassem pelo menos, a compreender o que se passava na missa.

"A Liturgia compõe-se de uma dupla realidade: uma invisível, imutável e eterna; e outra humana, visível e suscetível de modificação. A Liturgia não deve ser uma peça de museu, mas a oração viva da Igreja, ou melhor, a Liturgia é algo permanente e vivo ao mesmo tempo."
D. José Cordeiro, bispo de Bragança-Miranda e presidente da comissão de Liturgia e Espiritualidade da Conferência Episcopal Portuguesa

“A Liturgia compõe-se de uma dupla realidade: uma invisível, imutável e eterna; e outra humana, visível e suscetível de modificação. A Liturgia não deve ser uma peça de museu, mas a oração viva da Igreja, ou melhor, a Liturgia é algo permanente e vivo ao mesmo tempo”, defende D. José Cordeiro, considerando que a reforma do Concílio Vaticano II consistiu num “aprofundamento das riquezas das fontes litúrgicas em plena fidelidade à Sagrada escritura e à Tradição” e que houve um “legítimo progresso” em permitir o uso das línguas vulgares além do latim, porque “todas as línguas são litúrgicas”.

A resistência dos conservadores

Todavia, nem todos concordaram que o uso das línguas vulgares ou o abandono generalizado da forma antiga da missa havia sido assim tão legítimo. Logo nos primeiros anos depois do Concílio Vaticano II, ergueram-se dentro da Igreja Católica as vozes de um conjunto de figuras mais conservadoras que discordaram da aproximação à modernidade. Houve quem comparasse algumas das reformas do concílio àquilo que se considerava terem sido os erros da Reforma Protestante, quem temesse que as decisões do Vaticano II pusessem em causa séculos de tradição católica — e quem fosse ainda mais radical e recusasse liminarmente as decisões do concílio.

A principal figura deste movimento de resistência foi o arcebispo francês Marcel Lefebvre, que, apesar de ter participado nos trabalhos preparatórios do concílio, nos anos seguintes à reunião tornou pública a sua discórdia completa relativamente a várias das reformas conciliares — incluindo questões ligadas à liberdade religiosa, ao diálogo entre religiões e, sobretudo, à missa nova. Para Lefebvre, tudo isto eram sinais claros de que o perigo do modernismo se estava a apoderar da Igreja Católica e a desfigurar a sua face tradicional. Em 1970, Lefebvre passou das palavras aos atos e criou, na Suíça, um seminário para formar novos padres num ambiente pré-Concílio Vaticano II — ignorando taxativamente todas as reformas da década de 1960. Nascia assim a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), que se viria a transformar num dos ícones da resistência ultraconservadora dentro da Igreja Católica.

O arcebispo francês Marcel Lefebvre foi excomungado por ter desobedecido ao Papa e ordenado quatro bispos dentro do seu movimento tradicionalista

Gamma-Rapho via Getty Images

Lefebvre ordenou os seus primeiros padres em 1976, o que provocou uma reação dura por parte do Vaticano, que já o havia proibido de realizar ordenações sacerdotais: ele e os padres foram suspensos. Porém, Marcel Lefebvre e os membros da sua organização não aceitaram as indicações de Roma e começaram a trilhar um caminho de afastamento progressivo que só se tornou mais polémico à medida que a FSSPX foi crescendo.

Em 1984, consciente de que um conjunto significativo de católicos exigia o regresso das missas tradicionais em latim, o Papa João Paulo II autorizou o uso da missa tridentina, em circunstâncias específicas e com autorização especial do bispo de cada diocese. Mas a polémica entre Lefebvre, entretanto transformado num herói vivo dos ultraconservadores, e o Vaticano viria a adensar-se quando, em 1988, já com uma saúde frágil, o arcebispo ordenou quatro bispos à revelia do Vaticano, com vista a assegurar a continuidade do movimento.

O Papa João Paulo II considerou a ordenação de quatro bispos sem autorização do Vaticano como um “ato cismático” de desobediência e resultou na punição mais grave de todas: a excomunhão. Desde essa altura, a FSSPX está fora da Igreja Católica, embora logo em 1988 o Papa polaco tenha instaurado uma comissão especial no Vaticano destinada a dialogar com a organização e a restabelecer a legitimidade de Lefebvre e dos já muitos padres e seminaristas que o francês continuava a formar na clandestinidade.

Também em 1988, na sequência da ordenação ilícita dos quatro bispos, um conjunto de padres e seminaristas da FSSPX entraram em rutura com Lefebvre por considerarem que o movimento tradicionalista não poderia agir à revelia do Papa — e separaram-se do grupo de Lefebvre, criando a Fraternidade Sacerdotal de São Pedro. A FSSP continua hoje ativa e, embora tenha a missão particular de celebrar a missa segundo o rito antigo, está plenamente integrada na Igreja Católica. Do mesmo modo, vários outros movimentos, mais ou menos organizados, começaram naquela altura a ramificar-se e a dar corpo àquilo que hoje é a ala mais conservadora e tradicionalista dentro da Igreja Católica.

Pope Francis And Ex-Pope Benedict XVI Exchange Christmas Greetings

O Papa Bento XVI alargou o uso da missa tradicional, mas pediu que fosse feita uma avaliação dos resultados; Francisco voltou atrás e impôs novas restrições

Gamma-Rapho via Getty Images

Mais recentemente, em 2007, no âmbito dos esforços da Igreja para reaproximar progressistas e conservadores e evitar um novo cisma com base nas reformas do Concílio Vaticano II, o Papa Bento XVI facilitou consideravelmente a realização da missa antiga, estabelecendo que a missa nova (missal de 1970) seria a “expressão ordinária” do modo de rezar da Igreja Católica latina, enquanto a missa antiga (missal de 1962) seria a “expressão extraordinária” do mesmo modo de rezar. Assim, ao considerar que ambos os ritos respeitavam a mesma fé, Bento XVI procurou eliminar os argumentos para um cisma com base no rito. Passados dois anos, Bento XVI deu outro sinal de que queria promover o diálogo com os conservadores e levantou a excomunhão aos quatro bispos ordenados em 1988 por Lefebvre.

Todavia, a intenção de Bento XVI de reaproximar as fações desavindas da Igreja Católica surtiu pouco efeito. Pelo contrário, a abertura da possibilidade de se celebrar a missa em latim nas paróquias “onde houver um grupo estável de fiéis aderentes à precedente tradição litúrgica” acabou por ter um efeito agregador entre os mais conservadores e, um pouco por todo o universo católico, começaram a surgir comunidades de fiéis que tinham em comum estes dois fatores: celebravam a missa em latim e opunham-se a uma série de transformações na Igreja — reais ou percecionadas — rumo a uma modernização.

Bento XVI advertia para a necessidade de evitar a rutura na Igreja com base na liturgia e até sublinhou que era necessária alguma moderação no recurso à missa tradicional. “O uso do Missal antigo pressupõe um certo grau de formação litúrgica e o conhecimento da língua latina; e quer uma quer outro não é muito frequente encontrá-los”, avisou Bento XVI, numa carta aos bispos que acompanhou a decisão. O Papa alemão, na altura, desvalorizou os já evidentes sinais de que a flexibilização do uso da missa banida pelo Concílio Vaticano II poderia aprofundar a discórdia na Igreja. “Manifestou-se o temor de que uma possibilidade mais ampla do uso do Missal de 1962 levasse a desordens ou até a divisões nas comunidades paroquiais. Também este receio não me parece realmente fundado”, escreveu.

Duas formas de rezar, duas comunidades em concorrência

Mas era.

A missa latina tornar-se-ia rapidamente num dos principais símbolos dos grupos tradicionalistas, ultraconservadores, às vezes cismáticos e quase sempre opositores do Papa Francisco. O cardeal norte-americano Raymond Burke, por exemplo, que se tornou nos últimos anos no principal rosto da oposição ao Papa argentino (posição que acumulou, recentemente, com as de apoiante de Donald Trump e cético das vacinas contra a Covid-19), é um fã confesso da missa tradicional, celebra-a habitualmente com toda a pompa e circunstância a que tem direito — e até já a celebrou no Santuário de Fátima, em 2017, e as imagens tornaram-se virais na internet.

Na carta que enviou aos bispos de todo o mundo em 2007 a explicar o que o levara a flexibilizar a missa tradicional, Bento XVI pediu-lhes que, três anos depois da entrada em vigor da nova norma, preparassem um relatório sobre as suas experiências com a missa antiga — e prometeu pensar em soluções para eventuais problemas que surgissem.

A recente decisão do Papa Francisco de impor estritas restrições ao uso da missa em latim resulta, precisamente, da análise desses relatórios enviados pelos bispos. Através dos relatos de líderes católicos de todos os continentes, ficou claro para o Papa que a missa antiga estava a ser usada como bandeira para aprofundar divisões e não para cumprir aquilo que Bento XVI determinara — que todos têm um lugar na Igreja. Na prática, o que Francisco determinou é que o rito novo, decidido no Concílio Vaticano II, passa a ser a única forma da missa católica no mundo latino. A missa antiga só poderá ser usada em situações muitíssimo excecionais, sempre com a autorização do bispo local; nunca nas igrejas paroquiais, mas em lugares próprios indicados pelo bispo; sempre com as leituras bíblicas na língua local. Além disso, o Papa proibiu a criação de novos grupos ou paróquias onde a missa antiga seja seguida — e obrigou todos os bispos a nomearem um padre da sua confiança como delegado para estabelecer contacto com os grupos que ainda celebram à maneira de antigamente, para garantir que em nenhum deles há vestígios de insurreição anti-eclesiástica à boleia do rito tradicional.

Pragmaticamente, o Papa Francisco acabou com a esmagadora maioria dos contextos em que a missa antiga poderia ser celebrada — e a decisão foi recebida com grande mal-estar entre o setor mais conservador da Igreja.

O cardeal Raymond Burke é um dos principais rostos do tradicionalismo católico e da oposição ao Papa Francisco

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O cardeal Burke lamentou a decisão do Papa, sublinhando que os adeptos da missa antiga não são cismáticos e criticando duramente a “dureza” das palavras do Papa Francisco contra os fiéis que celebram a missa em latim. Noutra declaração, Burke foi mais longe e questionou mesmo a autoridade do Papa para tomar a decisão, considerando que Francisco não tem “poder absoluto” para “mudar a doutrina ou erradicar uma disciplina litúrgica”. Outro importante cardeal da ala conservadora da Igreja, o guineense Robert Sarah, aproveitou os dias antes da publicação da decisão do Papa Francisco para declarar publicamente que Bento XVI será recordado como o Papa da “paz litúrgica” pela decisão que tomou em 2007.

Posicionamentos como o apoio à luta contra as alterações climáticas, o discurso conciliador relativamente à homossexualidade, a maior abertura da Igreja Católica às mulheres e até a intervenção em favor de Joe Biden na guerra aberta entre a Igreja nos EUA e o Presidente a propósito do aborto têm levado os católicos mais conservadores — incluindo bispos e cardeais — a questionarem com frequência as decisões do Papa Francisco. Mas a decisão firme contra a missa tridentina foi, provavelmente, a medida que mais virou os conservadores contra Francisco. E a complexidade do problema tem na sua raiz um princípio teológico muitas vezes referido como “lex orandi, lex credendi”. Ou seja, como traduz o bispo D. José Cordeiro, “que a lei da oração estabeleça a lei da fé”. Uma vez que “a prática litúrgica foi a fonte do desenvolvimento doutrinal”, então é possível “encontrar na Liturgia a fé da Igreja”.

“A Igreja acredita no que celebra. A celebração litúrgica é, por isso, a eloquência da fé, sob a forma de oração”, diz o bispo português. Sobre este princípio teológico, o académico norte-americano Steven P. Millies faz um resumo mais ácido: “Isto significa que a oração e a missa não são realidades isoladas. O modo como os católicos conduzem a missa diz alguma coisa relativamente àquilo em que os católicos acreditam. E, desde que o Papa Bento XVI alargou a disponibilidade da missa em latim, duas formas diferentes de rezar começaram a significar duas comunidades diferentes e concorrenciais dentro da Igreja Católica.”

D. José Cordeiro, que é o responsável pelo departamento da Igreja Católica em Portugal a que cabe harmonizar as práticas litúrgicas, concorda que o uso da missa em latim foi “instrumentalizado e transformado em bandeira” por grupos anti-Concílio Vaticano II, mas considera “que não se chegou a esse extremo em Portugal”, uma vez que no país o uso da missa em latim tem sido essencialmente movido por “uma questão de ligação afetiva a uma forma de celebrar com a sua espiritualidade peculiar”.

"O Papa Francisco, com a publicação desta Carta Apostólica, prossegue na constante busca da comunhão eclesial, ferida pela situação criada nestes últimos anos."
D. José Cordeiro, bispo de Bragança-Miranda e presidente da comissão de Liturgia e Espiritualidade da Conferência Episcopal Portuguesa

O bispo garante que a Conferência Episcopal Portuguesa “está em plena comunhão com o Sucessor de Pedro, o Papa Francisco”, no que respeita à missa em latim. Em Portugal, explica D. José Cordeiro, “a situação é pontuam em algumas Dioceses” nos últimos anos. “Não faltam exageros, mas há uma maior atenção à forma ritual da Liturgia”, reconhece.

Além da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, que tem um priorado em Portugal — mas que não está plenamente integrada na Igreja Católica —, há apenas um punhado de igrejas onde eram celebradas missas em latim. O caso mais conhecido será o da Paróquia de São Nicolau, em Lisboa, onde todos os dias é celebrada uma missa segundo o missal de 1962. De resto, apenas alguns casos excecionais contrastam com a larga maioria da Igreja Católica em Portugal. Habitualmente alinhados com o Papa Francisco, os bispos portugueses já vieram garantir, em vários momentos, que estão de acordo com a nova decisão e que a seguirão à risca.

“Mais que uma tensão entre ‘Tradição’ e ‘progresso’, a Reforma litúrgica quer ser uma renovação na linha de uma sempre viva Tradição, que consinta um desenvolvimento orgânico”, explica D. José Cordeiro. Neste momento, de acordo com o bispo português, fica claro que o aproveitamento da missa antiga por grupos que têm promovido a discórdia dentro da Igreja obrigou o Papa a agir: “O Papa Francisco, com a publicação desta Carta Apostólica, prossegue na constante busca da comunhão eclesial, ferida pela situação criada nestes últimos anos.

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