O Papa Francisco publicou esta sexta-feira uma nova lei interna para a Igreja Católica a nível global que reverte uma política introduzida por Bento XVI em 2007 e introduz restrições apertadas à celebração de missas em latim segundo os rituais antigos, que nos últimos anos têm sido adotadas por grupos tradicionalistas e conservadores que se opõem à linha defendida pelo Papa argentino para a instituição milenar.

O documento intitulado Traditionis Custodes, latim para “guardiães da tradição”, foi publicado esta sexta-feira na página oficial da Santa Sé na internet sob a forma de motu proprio — ou seja, uma iniciativa legislativa direta do próprio Papa Francisco, e não das instituições da cúpula da Igreja.

A nova lei é composta por 8 artigos e por um preâmbulo em que o Papa Francisco explica as suas intenções. “Guardiães da tradição, os bispos, em comunhão com o bispo de Roma, constituem o princípio visível e o fundamento da unidade nas suas Igrejas particulares“, começa o Papa argentino, indicando que pretende que os bispos de cada diocese do universo católico assumam um papel preponderante na decisão sobre os ritos litúrgicos seguidos em cada lugar.

“Para promover a concórdia e a unidade na Igreja, com paternal solicitude face àqueles que em alguns regiões aderiram às formas litúrgicas anteriores à reforma desejada pelo Concílio Vaticano II, os meus veneráveis predecessores, São João Paulo II e Bento XVI, concederam e regulamentaram a faculdade de utilizar o Missal Romano publicado por São João XXIII em 1962“, continua Francisco. O objetivo, recorda o Papa argentino, era “facilitar a comunhão eclesial aos católicos que se sentem vinculados a formas litúrgicas anteriores”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Até à década de 1960, a missa na Igreja Católica era celebrada em latim e com o sacerdote de costas para os participantes. Foi precisamente na década de 1960 que o Concílio Vaticano II, convocado em 1961 pelo Papa João XXIII e encerrado em 1965 pelo Papa Paulo VI, determinou o fim do rito antigo e a criação da nova forma de celebrar a missa católica, ainda hoje em vigor. Entre as mudanças mais visíveis nas regras introduzidas na década de 1960 encontra-se a celebração da missa nas línguas próprias de cada país e com o sacerdote voltado para os participantes, num altar separado da parede.

Porém, a regra antiga manteve-se em vigor num regime extraordinário, que poderia ser usada em algumas situações muito excecionais e mediante autorização expressa da hierarquia eclesiástica. Desde o Concílio Vaticano II, a missa antiga, também chamada “Missa Tridentina”, por ter sido aprovada no Concílio de Trento, em 1570, transformou-se num dos principais símbolos associados ao setor mais conservador e tradicionalista da Igreja Católica. Uma das instituições que mais popularizaram o recurso moderno ao rito antigo foi a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X (FSSPX), um movimento dissidente criado em 1970 pelo arcebispo francês Marcel Lefebvre, que recusa as determinações do Concílio Vaticano II por considerá-las heréticas e que, por isso, está de relações cortadas com a Santa Sé.

Em 2007, o Papa Bento XVI publicou uma lei interna que liberalizou o recurso ao ritual antigo, numa tentativa de reaproximar da Igreja alguns movimentos que começavam a radicalizar-se. Nessa legislação, Bento XVI determinou que qualquer sacerdote poderia recorrer ao ritual antigo para celebrar missa em privado e que o mesmo poderia acontecer em paróquias onde existisse um “grupo estável de fiéis aderentes à precedente tradição litúrgica”. O documento do Papa alemão autorizava inclusivamente a criação de circunscrições eclesiásticas próprias — por exemplo, paróquias específicas só regidas pelo rito antigo — e apelava ao recurso ao ritual que melhor respondesse às necessidades das comunidades locais, desde que tudo fosse devidamente acompanhado pelo bispo ou superior religioso de cada lugar. Em 2009, num novo esforço de recuperar laços com os dissidentes conservadores, Bento XVI também levantou a excomunhão aos membros da FSSPX.

Agora, o Papa Francisco reverteu a liberalização introduzida por Bento XVI em 2007. Segundo Bergoglio, as autoridades do Vaticano fizeram, durante o ano de 2020, uma “ampla consulta” aos bispos de todo o mundo, “cujos resultados foram considerados à luz da experiência adquirida neste anos“. Em resultado desta consulta, Francisco apertou a malha ao uso da missa tradicional.

De acordo com o articulado da lei, é da “exclusiva competência” do bispo diocesano “autorizar o uso do Missal Romano de 1962”. Ou seja, passa a ser obrigatória uma autorização explícita do bispo para que a missa antiga seja usada. Além disso, o Papa Francisco introduz uma série de mudanças nos critérios para aceitar o recurso ao ritual antigo. No que toca aos grupos de fiéis que já estejam atualmente organizados em torno do ritual antigo, o bispo deve “comprovar que estes grupos não excluem a validade e legitimidade da reforma litúrgica, dos ditames do Concílio Vaticano II e do magistério dos Sumos Pontífices” — ou seja, é necessário garantir que os utilizadores dos rituais antigos não se opõem à atual linha ideológica seguida pela Igreja.

Ao mesmo tempo, estes grupos passam a ser proibidos de usarem os ritos antigos nas igrejas paroquiais e deixa de ser permitida a criação de novas paróquias específicas com o regime antigo. O bispo deve “indicar um ou vários lugares onde os fiéis pertencentes a estes grupos podem reunir-se”, bem como “os dias em que se permitem as celebrações eucarísticas”. Nessas celebrações, as leituras da Bíblia devem, na mesma, ser feitas em língua vernácula, e não em latim, e estes grupos devem sempre ser acompanhados por um sacerdote nomeado pelo bispo como delegado para estas situações. Esse sacerdote deverá ter em atenção o “sentido de comunhão eclesial” e o cuidado “pastoral e espiritual” das pessoas.

Por fim, a medida mais drástica: não poderá ser autorizada a criação de novos grupos que celebrem com o ritual antigo.

A nova legislação introduzida pelo Papa Francisco tem os grupos conservadores e tradicionalistas, muitos deles transformados em autênticos dissidentes (e Portugal não é exceção, como expôs em 2018 uma longa reportagem da revista Visão), na mira. “Uma oportunidade oferecida por São João Paulo II e, com maior magnanimidade, por Bento XVI, com a intenção de recuperar a unidade do corpo eclesial com diversas sensibilidades litúrgicas, foi explorada para aprofundar as divisões, reforçar as divergências e encorajar desacordos com causam danos à Igreja, lhe bloqueiam o caminho e a expõem ao perigo da divisão.”

Os inimigos de Francisco

Dentro da Igreja Católica contemporânea, o recurso à missa antiga tem sido um dos sinais mais visíveis da ala conservadora da instituição, que nos últimos anos se tem oposto firmemente às tomadas de posição do Papa Francisco em temas sensíveis como a homossexualidade, o diálogo com as outras religiões ou o lugar da mulher dentro da estrutura eclesiástica. Do grupo de bispos e cardeais de topo que se contam entre os inimigos de Francisco, destaca-se o norte-americano Raymond Burke, conhecido pelas posições ultraconservadoras e pelo uso insistente de adereços antigos como a capa magna e as vestes rendadas, que exibe frequentemente em celebrações públicas. Burke fê-lo, aliás, quando esteve em Fátima em 2017 e celebrou uma missa digna de um filme medieval, registada em vídeos e partilhada no YouTube.

Através do Twitter, o jornalista inglês Austen Ivereigh, biógrafo do Papa Francisco e um dos maiores conhecedores do pensamento de Bergoglio, resumiu a decisão do chefe da Igreja Católica com a necessidade de travar a discórdia que se tem aprofundado dentro da instituição. “Bento XVI disse aos bispos, na altura da publicação de Summorum Pontificum, em 2007, que ela seria revista se criasse problemas”, escreveu Ivereigh. “Francisco consultou os bispos de todo o mundo e eles disseram que criou. O que tinha como objetivo promover a unidade foi usado para semear a divisão e a oposição ao Concílio Vaticano II.”