Foi o passo em frente que faltava. Ao oitavo dia de campanha, André Ventura fez o que ainda não tinha feito até ao momento. Na véspera, em Chaves, o líder e candidato do Chega ensaiara algo semelhante. “Vamos atrás do PSD ao longo do próximo ano”, disse. Desta vez, no entanto, Ventura nomeou diretamente o seu maior adversário no pós-presidenciais: Rui Rio.
A noite ia já muito longa quando o líder do Chega subiu finalmente ao púlpito. Numa sala à pinha, com 170 fervorosos apoiantes, Ventura geriu os momentos do discurso com mestria. Primeiro, os batons vermelhos e a esquerda. Check. Depois, Ana Gomes e apoio da comunidade cigana à socialista. Check. Em terceiro, Marcelo Rebelo de Sousa, “que ninguém sabe onde está”. Check. Pelo meio, referências a António Costa, uma “fraude” na gestão da pandemia, gritou por três vezes o candidato.
Os apoiantes de André Ventura reagiam com clamor aos estímulos discursivos de Ventura. Mas o alvo da noite era outro. Tudo começou com uma alusão breve ao outdoor concorrente de Tiago Mayan Gonçalves, da Iniciativa Liberal, colado ao lado de um de André Ventura. O tema tornou-se rapidamente Rui Rio.
“Aquela direita fofinha… Agora desapareceu o CDS e apareceu a Iniciativa Liberal”, pausa. “Em breve será o PSD a fazer este tipo de cartazes. Estamos no caminho certo. Parece que estou a ver o doutor Rui Rio com a cara no cartaz a dizer: ‘Votem em mim, eu sou a direita social”, pausa. “Mas com o lápis na orelha”, divertia-se Ventura para gargalhada geral.
“Não podemos deixar os adversários com ilusões. A direita humanista, a direita social, a direita que não se importa em dar subsídios a todos… Isso não é ser direita. Isso é ser travesti de direita. Isso é serem socialistas encapotados em partidos de direita”. A casa vinha abaixo.
Depois dos Açores, é a primeira vez que Ventura se refere a Rui Rio e ao PSD nestes termos. Foi uma espécie de regresso às origens: apesar de hoje contar com muitos quadros que pertenciam ao CDS, o Chega nasceu originalmente como um movimento anti-Rui Rio.
Em setembro de 2019, André Ventura, ainda no PSD, lançou o movimento “Chega” para destituir o “extremista e autoritário” Rui Rio da liderança do partido e discutir o tema em congresso extraordinário. A campanha acabou por falhar e Ventura desfiliou-se para fundar o Chega, o partido.
Daí para cá, a convivência entre os dois tem sido feita de altos e baixos. A liderança de Rui Rio não confia em André Ventura, mas tem uma visão pragmática do partido: sabe que muito provavelmente precisará do Chega para formar uma eventual maioria de direita e está convicta de que será possível domesticar a imprevisibilidade de Ventura. Todo o processo que envolveu o desenho da solução açoriana, com avanços e recuos e versões contraditórias sobre quem negociou com quem, deixou marcas no núcleo duro de Rio, que gere agora com redobrado cuidado a relação com o Chega.
Ao longo deste primeiro ano, Ventura foi oscilando no discurso. Já prometeu que jamais daria a mão ao PSD, como também já definiu as quatro pastas que vai exigir para formar um Governo com Rui Rio. Nesta campanha, o líder do Chega tem sugerido à exaustão que o dia 24 de janeiro é apenas o primeiro passo para algo muito maior: esvaziar o PSD e constituir o Chega como a principal força à direita.
Este domingo, primeiro em Guimarães e depois em Braga, não foi diferente. No Campo de São Mamede, em frente ao Castelo de Guimarães, Ventura juntou o histórico ao divino para dizer ao que vem. “[Os nossos antepassados] deram a vida pelo país em que acreditavam, não cederam perante o sistema ou o politicamente correto. Não podemos ficar assim [encostou o indicador ao polegar] de mudar Portugal. Foi a nós que a Providência nos permitiu transformar este movimento numa oportunidade de mudar Portugal.”
Horas mais tarde, em Braga, Ventura leu as “estrelas” e antecipou o futuro. “Está escrito nas estrelas. Sei que um dia, demore mais ou demore menos, esta força que nos move será verdadeiramente vitoriosamente. Já ninguém está a rir. É tão certo como eu me chamar André Ventura que um dia lideraremos o Estado em Portugal. Nós, meus amigos, somos indestrutíveis”. Foi o aplauso da noite.
Uma noite particularmente tensa. A campanha de André Ventura juntou cerca de 170 pessoas numa sala com 450 metros quadrados, sem ventilação, numa quinta destinada a grandes eventos como casamentos. Os jornalistas estiveram sempre num piso inferior, mas ouvia-se perfeitamente o que se ia passando lá em cima, com sorteio de rifas, música e cânticos de apoio a Ventura.
As notícias sobre as condições do evento começaram a circular e assim que os apoiantes de Ventura se foram apercebendo disso mesmo o clima mudou. “Vocês são uns montes de esterco”, atirou um dos comensais assim que se cruzou com alguns jornalistas que aguardavam no exterior a intervenção do candidato do Chega.
Quando a comunicação social foi convidada a entrar na sala principal para captar as declarações de André Ventura, já perto da meia-noite, jornalistas e repórteres de imagem foram recebidos com cânticos e ameaças perfeitamente percetíveis. “Era matá-los a todos”, chegou a ouvir-se.
Já com todos devidamente instalados, Rui Paulo Sousa, mandatário e diretor de campanha de André Ventura, fez uma curta intervenção e terminou com uma ideia que provocou novos gritos de protestos: “Os nossos adversários estão lá fora, mas alguns estão cá dentro…”. Os inimigos eram os jornalistas.