Enviado especial do Observador em Paris, França
Houve aquela que alguns não tiveram receio em apelidar de “Corrida do Século” na final dos 400 livres da natação com Ariarne Titmus, Summer McIntosh e Katie Ledecky que confirmou a passagem de testemunho para a nova rainha australiana. Houve também a grande decisão no râguebi de sevens, com França a quebrar o domínio de Fiji. Houve ainda a estreia da coqueluche da Aldeia Olímpica com um dos maiores de todos os tempos, Carlos Alcaraz e Rafa Nadal. Mas não, os Jogos Olímpicos ainda não tinham realmente começado, nem naquela parte antes da cerimónia de abertura, nem depois dessa noite para a história no Sena. Era agora que se ouvia o tiro de partida. Um tiro insonoro mas demasiado audível. Um tiro que se sente mas não se vê. Um tiro que há muito desafia a teoria um dia explanada por Isaac Newton. Era o dia de Simone Biles.
Simone Biles, uma Mona Lisa que só quer recuperar o sorriso para pintar uma obra de arte em Paris
Se dúvidas existissem em relação a isso, depois daquilo que fomos percebendo em relação à Aldeia Olímpica onde todos querem tirar uma fotografia com Carlos Alcaraz (também porque o espanhol que ganhou Roland Garros e Wimbledon nunca diz que não) mas todos querem sobretudo ver Simone Biles, a autêntica romaria através das linhas 6 e 14 do metro até à Arena Bercy não deixava dúvidas. Shelly, de sete anos, trazia na mão a sua Minnie de peluche versão M, que nos seus braços se tornava versão XXL, e era uma das centenas de pessoas que uma hora antes do arranque do primeiro grupo de qualificação rumava ao recinto. A mãe, de Dallas, falava com outra norte-americana, de Boston. “Estivemos na Disney, viemos ontem para a cidade. Não pensávamos vir aos Jogos mas ela queria tanto ver a Simone…”, explicava. E veio à outra Disney.
Por norma, aquilo que mais se vê a caminho de qualquer recinto de Paris-2024 são adereços de França. A cara pintada com uma pequena bandeira já se está a tornar um clássico mas há camisolas, aqueles chapéus com um galo que bate palmas, pequenas bandeiras. Este domingo, houve uma invasão dos EUA. A invasão de adeptos comuns como a família de Shelly, a invasão da entrada destinada a hospitality com vários autocarros de bilhetes que vêm dos principais patrocinadores da competição, a invasão até de gauleses que pareciam na sua cabeça as mesmas cores mas com umas estrelas brancos em fundo azul entre listas vermelhas e brancas. Por um dia, todos eram Team USA, aquela potência que gera sempre sentimentos distintos. E havia até uns toques de espectáculo versão norte-americana num dos palcos mais sagrados desta edição dos Jogos.
A Arena Bercy é imponente em tudo, daqueles espaços que só fica pequenino perante os 142 centímetros de gente divina de Simone Biles. Pelos corredores há algumas imagens de quem já brilhou ali. Madonna, Teddy Riner, Maroon 5 por exemplo. Na zona dos bares, no tal toque american, vendem-se refrigerantes ao copo (por uma questão de sustentabilidade, esta edição dos Jogos não cede garrafas, sendo que o copo pode ficar como recordação ou ser devolvido com os dois euros a mais de volta), pipocas para quem quer ter um pouco do seu país por umas horas ou baguettes para quem arriscar vestir uma pele mais parisiense. Há camisolas com o nome de Biles, há mochilas com a imagem de Biles. “Simone”, como todos a tratam. Ela está no meio de nós apesar de chegar apenas no segundo de cinco grupos que fariam a qualificação na ginástica.
Entre as milhares de pessoas que enchiam a Arena Bercy desde início, há pequenos focos de adeptos da Team GB da Grã-Bretanha, da Roménia, do México. São elas que estão em ação. Ainda assim, todos são por todos. Nos momentos altos, quando existe uma performance melhor numa das quatro rotações como aconteceu com a britânica Rebecca Downie nas paralelas assimétricas. Nos momentos baixos. Sobretudo nos momentos baixos. Paris quer recentrar o seu papel no mundo, a modalidade de Biles (outro nome para dizer ginástica) torna-se o centro do mundo. Aqui não há rivalidades, não há adversárias. Sim, é uma competição onde cada uma tenta ser a melhor mas aquelas que caem, literalmente, não são esquecidas. Pelo contrário. Foi o que aconteceu com Ruby Evans nas paralelas assimétricas. Foi o que aconteceu com Caitlin Rooskrantz na trave. Foi o que aconteceu com a mexicana Natalia Escalera, que após cair recebeu assistência e não voltou.
Os aplausos são um abraço de compaixão. De fraternidade. De reconhecimento. Num local onde tínhamos as quatro estações em meros 30 segundos (inverno na bancada de imprensa, verão nos corredores, outono no exterior à sombra, primavera nas zonas com sol), não havia momentos frios entre tanto calor.
Uma hora e meia depois, o grupo 1 terminava a sua qualificação com passagens pelos exercícios no solo, pelas paralelas assimétricas, pelo cavalo e pela trave que dariam depois uma pontuação que serviria para a final específica por aparelho, para a decisão do all around e para a competição de equipas. Nessa fase, enquanto era dada ainda a última nota a Ana Barbosu da Roménia nas paralelas assimétricas, começava a azáfama aos corredores. Filas no bar, filas na casa de banho, zero pessoas para sair, algumas ainda a entrar. Estava quase a chegar o momento pelo qual todos esperavam há muitos meses, outros há anos, outro ainda apenas com a esperança que um dia pudesse chegar fosse quando fosse: Simone Biles estava de volta a uns Jogos.
No final, sobraram vários sentimentos. Quem viu, esteve sempre do lado bom: alegria, orgulho, felicidade, orgulho. Para Biles, houve um pouco de tudo: renascimento no palco mais sagrado do desporto, receio que os fantasmas do passado regressassem em forma de lesão, potência para fazer um salto fabuloso no cavalo que impedisse qualquer queda no abismo, alívio pela forma como tudo correu. Foi uma obra incompleta, tendo em conta que o sexto movimento com o seu nome nas paralelas assimétricas ficou adiado, mas entraria no Louvre ou em Orsey sem favores. Aos olhos de quem ama o lado mais puro do desporto, Simone Biles é a oitava maravilha do mundo e voltou atrás no tempo para regressar a um espaço que sempre foi seu levando mais uma vez a melhor em relação a uma gravidade que provocou um susto a meio do concurso, mesmo tendo essa notícia na última rotação do último grupo de falhar a final das paralelas assimétricas, à semelhança do que acontecera no Rio de Janeiro e abaixo de Tóquio. Mas seria isso o mais importante?
Snoop Dogg já tinha chegado, Ariana Grande também já tinha sido vista, Tom Cruise esteve 15 ou 20 minutos a tirar selfies e a dar autógrafos (embora só tenha sido identificado mais tarde no grupo 2 pela realização ao som da Missão Impossível), John Legend andaria pelo recinto mas de forma mais discreta. Poucos minutos antes da entrada das atletas, começava a ouvir-se “USA, USA, USA”. Era só uma forma de dizer “Simone, Simone, Simone”. Ela, assim mesmo, com o “E” em maiúsculo, parecia estar tudo menos preocupada com o que iria passar – tanto que na primeira imagem que apareceu de Simone Biles, a primeira mesma no interior da Arena Bercy, a atleta estava sentada numa mesa a bocejar enquanto esperava para a entrar. Foi chamada a China, foi chamada Alemanha e Itália com atletas de Israel e Argélia, foram chamados os EUA. O pavilhão quase caía com o anúncio, sobretudo quando se ouviu o nome da campeã mundial entre as atletas. Cada um fazia a “vénia” a uma autêntica divindade à sua maneira, incluindo Snoop Dogg que estava a dançar.
Simone acenava para os adeptos. Única atleta norte-americana a entrar de fato de treino completo, manteve a parte de cima do mesmo enquanto sentia o primeiro banho de admiração. A prova não tinha sequer começado mas era isso que se via. Admiração apenas pelo facto de estar presente, a mesma que teriam se não estivesse presente. Admiração por encantar os mais velhos, ser uma referência para os mais novos, ascender ao patamar de exemplo para todos. Só o facto de ir fazer uma pequena marcação na trave, tirar o casaco e fazer dois saltos de aquecimentos já tinham rendido muitos gritos, a prova multiplicou depois os decibéis. Via-se uma Biles confiante. A aplaudir Jordan Chiles durante o seu exercício. A sentar-se na cadeira quando era altura de recentrar o foco, a bater palmas a Sunisa Lee, a preparar-se com ar de quem quer ser melhor.
Mais uma marca na trave, nova paragem no colchão enquanto estava a haver outro exercício no solo de uma italiana, soltar os ombros e depois as pernas, aquele puxar atrás das pernas atrás como fazem os jogadores de futebol quando estão junto do quarto árbitro para entrar em campo. Início do exercício. Silêncio absoluto. Os olhos estavam todos num filme que ninguém saberia ao certo que capítulos teria mas que no final iria sempre consagrar a norte-americana como a maior. Salto final, saída perfeita, explosão total. As companheiras de equipa saíram da cadeira aos saltos de braços no ar, a treinador individual Cecile Landi (que é francesa) foi de imediato cumprimentá-la à saída. Primeiro teste mais do que superado e confiança redobrada ou não tivesse arrancado uma nota muito acima de Sunisa Lee, que neste aparelho costuma estar ao seu nível.
Enquanto esperava pelo 14.733, Simone Biles ia acenando aos mais de 20.000 espectadores presentes na Arena Bercy. No entanto, e de forma inesperada, alguns fantasmas do passado pairaram numa das rotações que mais gostas: os exercícios no solo. Por dois motivos: 1) durante o aquecimento, a fase onde aquele 1,42 metros de gente desafia as leis a gravidade sem necessidade de qualquer aparelho para a impulsão, a atleta sentiu uma dor na zona do tornozelo e gémeos esquerdos, que fariam com que completasse a competição com uma ligadura; 2) Jade Carey, uma das ginastas mais próximas e que em Tóquio foi a melhor a par de Lee, sofreu uma inesperada queda no seu exercício e ficou de lágrimas nos olhos. Em condições normais, o que iríamos escrever sobre essa prova era que Biles nem necessitava de um fato tão brilhante para se destacar mas aquilo que sobrou foram dois pequenos erros que não a impediram ser de longe a melhor (14.600).
Biles ficou sentada nos degraus após o solo. Primeiro foi um dos treinadores da seleção a falar com ela, de seguida a treinadora. Se ainda antes do início da competição era notória uma maior tensão, a partir daí houve uma potenciação desse sentimento de insegurança notório em vários pormenores, da respiração acelerada ao abanar de folhas como se fossem ventoinhas. Quando uma câmara aparecia, o sorriso voltava; quando estava mais na sua, a ansiedade voltava a ser sentida. Foi assim que passou para o outro lado no cavalo.
Biles fazia de tudo para desviar as atenções daquela que voltava a ser a sua maior adversária: a própria. Após o salto de treino, andou a gatinhar, depois esteve aos saltos apenas com o pé direito, a seguir começou a ir fazendo saudações para as bancadas que tinham então Snoop Dogg como um dos adeptos mais próximos, no final teve um último salto de preparação que não correu bem com correções do treinador. A norte-americana deitou-se no chão, sentou-se, ficou de pernas cruzadas, levantou-se para ver o segundo salto de Carey, foi tentando descontrair os ombros, encaminhou-se para a zona de partida antes da corrida com as câmaras a focarem a ligadura no tornozelo e gémeo esquerdos. Em cinco segundos, voltou a ser ela própria: correu, saltou, desafiou a perfeição, teve 15.800. A melhor pontuação estava garantida, os nervos voltavam a ficar diluídos, o segundo salto quase cumpriu calendário perante a descida das escadas ao pé coxinho.
Esse foi o turning point para o regresso da melhor versão. Biles voltou a acreditar em si, sentiu o apoio das centenas de norte-americanos que estavam nas bancadas mais ao pé das paralelas assimétricas, foi acenando para as bancadas em forma de agradecimento, ainda fez um coração. Os treinadores, esses, davam-lhe todo o espaço. Depois de tudo o que aconteceu, essa é sempre a regra para que a atleta esteja mais à vontade com o que faz, deixando uma ou outra palavra e colocando do seu lado a vontade ou necessidade de falar. Era ali que iria terminar a prova. Sunisa Lee foi a melhor norte-americana no aparelho mas Biles mostrou que quando se fala em disciplina menos forte é mesmo assim – menos forte. Quando terminou, parecia ser a pessoa mais feliz do mundo, naquela que foi a última explosão de alegria numa prova que lhe correu bem, que foi comemorada como tal mas que a colocou em sérias dúvidas a nível de presença na final (14.433).
Quando acabou, a cara de Biles é um misto de alegria e alívio neste regresso a uns Jogos Olímpicos. A lesão podia ter sido revista apenas no balneário mas foi assistida no interior do pavilhão, mostrando à médica a zona afetada com inúmeras câmaras em cima de si, batendo palmas ao ritmo da música do último exercício no solo da equipa chinesa e continuando a acenar aos milhares de acólitos a este verdadeiro Deus da ginástica e do desporto antes de levantar-se já sem ligadura e testar a reação à lesão no tornozelo e no gémeo. Umas fotos da praxe, muitos cumprimentos entre companheiras, o sentimento de missão cumprida.
Quando passou pela zona mista de quem tinha os direitos, uma assessora norte-americana dizia apenas “Not talking, not talking“. Perante perguntas que iam sendo disparadas para o ar, Biles soltou apenas um “Não podia estar mais feliz”. Já no local da imprensa, Cecile Landi parou, falou mas pouco disse. Relativizou todas as perguntas em relação ao “calf” da atleta, a ponto de perguntar se não havia mais nenhuma pergunta sobre as outras norte-americanas ou sobre a própria Simone Biles, deixou possíveis comentários médicos para quem de direito, explicou que há umas semanas tinha sentido um pequeno problema na zona, mostrou-se satisfeita com o que foi produzido pela campeã e restante equipa. Ficava apenas por saber se Simone Biles tinha conseguido ir a todas as finais como em Tóquio ou se falhava uma como no Rio de Janeiro.
“A Simone é uma ginasta e uma pessoa excelente e também é humana. Aquilo que ela conseguiu fazer mesmo tendo alguma dor na zona da perna é notável. Esteve excelente, ela é fantástica. É desta forma que ela treina. Chega ao ginásio, prepara-se, faz o seu trabalho. Aquilo que ela fez aqui é aquilo que ela faz nos treinos, é a mesma coisa. Por isso é que se torna tão engraçado de ver”, comentou depois da prova Chellsie Memmel, a diretora técnica da USA Gymnastics, que deu também a cara para “preservar” os jornalistas antes de serem conhecidos os resultados finais do apuramento: primeira no all-around, primeira no cavalo, primeira no solo, segunda na trave, nona nas paralelas assimétricas e primeira por equipas pelos EUA.
Há um ponto curioso no compasso de espera feito até saber o que valia aquela nota nas paralelas assimétricas que podia ou não dar final: Simone Biles preferiu jogar pelo seguro e deixou para outras núpcias a inscrição do seu nome num sexto movimento. Provavelmente, tendo arriscado e conseguido, estava descansadinha na Aldeia Olímpica a saber que tinha seis finais garantidas. Optou por escrever a história de outra maneira. Essa já é a grande vitória. Ao longo de uma hora e meia, Biles revisitou toda uma carreira. Apareceu qual furacão, caiu quando se lesionou, conseguiu ser a melhor mesmo condicionada, emergiu para mostrar que é a melhor de todos os tempos. Biles nasceu para fazer história e aprendeu com o tempo a saber como escrevê-la quando, onde e como quiser com a certeza de que ficará na história como um fenómeno único no desporto.