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Uma vista panorâmica sobre a cidade de Lisboa foi o cenário ideal para uma reflexão alargada acerca do valor e do impacto da cooperação, do trabalho em equipa, da criação de redes de partilha de informação e das vantagens das plataformas colaborativas. Realidades comuns às empresas, ao domínio da investigação científica, à humanização das comunidades urbanas e experiências que foram partilhadas durante a primeira conversa Observamos Mais, uma iniciativa do Observador e do Banco Popular. Uma parceria que, até ao final do ano, vai reunir especialistas de diversas áreas para conversarem sobre Mais Educação, Mais Cidadania, Mais Família, Mais Solidariedade, entre outros temas.
Nesta primeira Conversa moderada pela jornalista Helena Garrido, estiveram no Espaço Conversas Soltas Popular Claudio Sunkel, investigador, professor catedrático e vice-diretor do I3S, Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto; Luísa Valle, diretora do Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano e responsável pelo programa PARTIS – Práticas Artísticas para Inclusão Social; Sofia Tenreiro, diretora-geral da Cisco; e André Valério, cofundador do projeto Kunoleco, iniciativa pioneira de engenharia social que aposta no regresso ao espírito de comunidade nas cidades.
Carla Gouveia, Diretora Central de Negócio, Marketing e Comunicação do Banco Popular, lançou o debate, explicando o objetivo da iniciativa: “Queremos criar espaços de reflexão, de modo a capitalizar mais proximidade com a comunidade, através de debates sobre temas que interessam às pessoas.” Posicionando o Popular como instituição financeira socialmente responsável e sensível às problemáticas do quotidiano, estas Conversas visam o enriquecimento dos participantes através da reflexão conjunta e da partilha de experiências. Para Carla Gouveia, “a realidade financeira tem que estar próxima do mercado e para isso é preciso ter uma abordagem de proximidade”.
Cooperação ao estilo Bay Area
Nos últimos seis anos, a Cisco tem sido considerada um “Great Place to Work” e isso deve-se, em grande medida, à dinâmica de partilha e cooperação que emana da própria casa-mãe. Quando chegou à multinacional californiana, Sofia Tenreiro, diretora-geral da empresa em Portugal, teve logo a perceção de que havia ali “um ADN colaborativo, um espírito genuíno de entreajuda. Pro-ativamente as pessoas ajudam-se umas às outras” no processo de introdução na empresa, por exemplo. Com cerca de 400 colaboradores e 36 nacionalidades, liderar a Cisco através da cooperação é uma consequência natural.
Há 20 anos, as empresas seguiam modelos de organização com estruturas rígidas e equipas onde cada pessoa tinha um papel bem definido. Esta visão foi sendo substituída por modelos orgânicos e dinâmicos, potenciados pelas redes e tecnologias de comunicação, dando lugar a equipas de geometria variável onde o trabalho se desenvolve por projeto, envolvendo competências e recursos alocados em função das necessidades.
Para facilitar e estimular a atitude cooperativa, os colaboradores da Cisco contam com a Spark, uma aplicação que todos podem instalar no telemóvel, onde é possível procurar e oferecer ajuda. Existe um banco de idiomas, por exemplo, que permite que os colaboradores aprendam línguas com os colegas estrangeiros e estes, por sua vez, aprendam português. A aplicação funciona como rede de partilha, e, a título informal, também se pode obter ajuda para procurar uma babysitter, conselhos para encontrar casa, entre outras informações úteis.
Formalmente existem ainda grupos definidos onde a colaboração faz a diferença: o Inclusion & Collaboration, que visa a troca de experiências e união de todos os colaboradores, o Woman Network para ajudar as mulheres em questões de carreira, ou o Civic Council, destinado às atividades cívicas como o voluntariado. A este propósito, a empresa atribui ainda cinco dias por ano a cada trabalhador para se envolver em ações cívicas.
Desde o primeiro dia, que a diretora-geral da Cisco pôde constatar a existência de uma “grande ligação entre as pessoas que informalmente acabam por se ajudar entre si” numa empresa que atribui grande importância ao tecido humano das relações pessoais e familiares. “Passamos muito tempo no trabalho, muitas horas que podem ser um prazer se aproveitarmos a diversidade humana, criando ambientes transparentes e de confiança de modo a que todos percebam que isso é o melhor”. Uma das estratégias passa por celebrar os sucessos da equipa em primeiro lugar, mesmo que haja depois um reconhecimento a nível individual. A realidade diz-nos que de nada vale o trabalho do indivíduo se o resultado não for partilhado com os outros. Mais cooperação significa ouvir mais e melhor, implica estar disponível, integrar e ensinar a viver em sociedade.
Formada em Gestão e Administração de Empresas, Sofia Tenreiro tem mais de 10 anos de experiência na área das tecnologias de informação e nota que, mesmo entre concorrentes, a cooperação tem vindo a afirmar-se como uma vantagem em diferentes domínios, existindo parcerias reais entre as empresas, não obstante a reserva das áreas críticas do negócio que naturalmente se mantêm estanques.
Um milhar de cientistas em 10 mil metros quadrados
Habituado a trabalhar com mentes brilhantes, o chileno Claudio Sunkel, vice-diretor do I3S, reconhece a cooperação como regra há 30 anos, desde que se iniciou na investigação científica em Inglaterra. Havia reuniões regulares, duas vezes por semana, para analisar progressos e introduzir medidas corretivas, à semelhança do que conhecemos na prática japonesa dos círculos de qualidade.
Quando a investigação em genética começou a dar os primeiros passos, nos EUA e na Alemanha formou-se uma comunidade de investigadores que estudavam as pequenas moscas da fruta. “Foram as Drosophila que nos ensinaram o que é a genética”, referiu o professor catedrático com entusiasmo. Os especialistas reuniam duas ou três vezes por ano, trocavam informações e materiais com a noção clara que para obter uma coisa tinham que dar também alguma coisa em troca. Este é o patamar da partilha.
Foi graças à cooperação que se conseguiu “descodificar as instruções do genoma humano a partir do trabalho realizado em 100 laboratórios no mundo, com coordenação de alto nível” exemplificou o investigador. De certa forma é seguro afirmar que a quantidade de conhecimento e a capacidade de processamento obriga necessariamente à cooperação. Esta é uma atitude a valorizar mas, por outro lado, “às vezes é necessário estar nesse mundo mais fechado e isolado para chegar a determinados resultados” que depois vão ser validados por outros, adianta Cláudio Sunkel. Em suma, a cooperação também pode precisar de algum individualismo em casos especiais como a investigação científica fundamental.
Quanto à experiência no I3S, Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto, o projeto começou em 2003, seguindo-se cinco anos de planeamento até 2008, ano em que iniciaram os trabalhos de construção daquela comunidade científica. Um verdadeiro centro de competências e investigação em saúde dedicado ao cancro, doenças neurodegenerativas, biomateriais e medicina regenerativa. Além disso, foi preciso organizar os 50 grupos de investigação, distribuídos por 15 linhas de investigação, de forma a simplificar e otimizar o mais possível todos os recursos.
O vice-diretor do I3S lembrou o trabalho de nomeação de uma comissão externa para “partir pedra durante dois anos, ao fim dos quais chegámos com apenas três linhas de investigação”. Há cerca de um ano e meio, quando ocuparam o edifício da Rua Alfredo Allen, no Porto, já eram uma verdadeira comunidade formada por mil pessoas. Com “mil egos a conviver em 10 mil metros quadrados todos os dias” a tarefa mais difícil, por vezes, é a gestão de conflitos individuais, sobretudo quando se trata de investigadores seniores, geralmente menos flexíveis do que os mais novos. Aqui entra a vantagem crucial da comunidade onde é mais fácil anular os protagonismos e favorecer o resultado global da equipa.
Em termos práticos, o I3S tem um canal de resposta a uma variedade de necessidades, quer científicas quer pessoais, onde qualquer investigador pode pedir ajuda sempre que precisar. O passo fundamental foi a decisão de não construir um “condomínio”, mas antes misturar as pessoas de acordo com objetivos comuns, levando-as a cooperar.
Inovação no combate à exclusão social
Reconhecida construtora de cooperação, Luísa Valle dirige o Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano, que tem como objetivo combater a exclusão social através de iniciativas focadas nas pessoas e no reconhecimento da sua relação com os outros. A especialista defende que é preciso harmonizar as diferentes dimensões que afetam os fenómenos de exclusão social. As instituições precisam de trabalhar mais em conjunto, partilhando competências e recursos e, para isso, é fundamental a criação de redes de confiança. “A área da inovação social exige grande capacidade de assumir riscos, de criatividade e de sensibilidade para as diferentes situações com que nos deparamos”, explica.
Portugal, aliás, tem subido no ranking da economia social e, de acordo com o Social Innovation Index 2016, publicado pela revista The Economist, ocupa atualmente o 22º lugar na lista de países que apresentam melhores níveis de investimento em inovação social. Além disso, é também destacado por integrar o pequeno grupo de apenas sete nações que estão a implementar uma política integrada de apoio à economia social.
Para Luísa Valle, uma das experiências mais marcantes que viveu em matéria de cooperação foi o delicado processo de reconhecimento e validação de competências dos médicos imigrantes que se encontravam em Portugal – eles a trabalhar na construção civil, elas nas empresas de limpeza e como empregadas domésticas. Estávamos em 2002 e era preciso encontrar as instituições certas para conseguir integrar estes médicos: obter a cooperação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, do Ministério da Saúde e da Ordem dos Médicos, promover o reconhecimento e a realização de exames e facilitar o acesso aos internatos. Numa altura em que havia falta de médicos nos serviços de saúde, foi possível integrar 110 clínicos, continuando, atualmente, grande parte deles, a trabalhar em Portugal.
Para a diretora do Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano é fundamental trabalhar com as pessoas e para as pessoas, “construir redes de confiança, criar condições e reunir as entidades em torno de objetivos comuns”. De modo efetivo e não apenas teórico. Entre os projetos mais recentes e estimulantes, Luisa Valle destacou a plataforma online Geofundos, que reúne todas as oportunidades de financiamento disponíveis para as entidades intervenientes na área da economia social.
O sonho de mudar o mundo
Kunoleco é um nome inspirado numa palavra de uma língua que se queria universal, o esperanto: kunuleco, que significa comunhão. E foi esta palavra que também serviu de inspiração a um projeto pioneiro de engenharia social que visa a sustentabilidade e a harmonia nas zonas urbanas, apostando em combater o individualismo através da criação de comunidades funcionais que ajudem a transformar a vida nas cidades. O objetivo é estimular a cooperação ao nível mais básico do condomínio ou do prédio onde moramos, desenvolvendo o espírito de comunidade nos centros urbanos.
Formado em Engenharia Biomédica, André Valério juntou-se a Eduardo Saldanha e Mafalda Matos para materializar o sonho de estabelecer comunidades de partilha nos centros urbanos. Com experiência profissional em gestão de condomínios, o co-criador do Kunoleco contou ter sido influenciado por uma viagem ao Alentejo, em 2014, quando visitou a comunidade Tamera – Centro de Pesquisa para a Paz, conhecida como a “Aldeia do Futuro”, que em 1995 se mudou da Alemanha para Portugal, para o Monte do Cerro, em Odemira.
“Desenvolver uma consciência social de grupo só é possível quando desmistificamos o individualismo. Afinal, todos temos os mesmos dilemas, medos e alegrias”, explicou André Valério, a propósito das iniciativas comunitárias, ainda um projeto-piloto, que vão começar a ser implementadas em Sacavém, no Condomínio Real Forte, onde pretendem testar o conceito. A equipa de “sonhadores e apaixonados pelo que fazem” trabalha sem apoios financeiros, em regime de voluntariado, dedicando-se a outras atividades profissionais para obter rendimentos.
Ainda numa fase conceptual, a Kunoleco também pretende desenvolver uma aplicação para telemóvel mas isso não significa que os meios analógicos não sejam utilizados com eficácia. Um quadro de cortiça onde os moradores procuram, oferecem e trocam serviços é suficiente para criar uma rede de ligação entre necessidades e interesses, ofertas e talentos. “O nosso objetivo é congregar tudo e ser um facilitador desse processo de transformação” concluiu André Valério. Um caminho para promover a inteligência social comunitária e a sustentabilidade ambiental e que passa igualmente por outras soluções de community building, como a agricultura urbana, as energias renováveis e o aproveitamento de águas.
Os sentimentos de pertença, família e cooperação são uma evidência em diversos exemplos de projetos globais como a Global Ecovillage Network, uma rede de comunidades intencionais que preconizam formas alternativas de vida. Por esse mundo fora, há inúmeros projetos no âmbito das hortas urbanas e dos terraços verdes, a que podemos juntar o co-housing, por exemplo, uma dinâmica de cooperação que nasceu na Dinamarca e que junta vizinhos com objetivos ou necessidades e interesses comuns.
“A vida é difícil”, começa por dizer Morgan Scott Peck, psiquiatra, no livro “O Caminho Menos Percorrido” escrito em 1978. E foi Peck que André Valério citou para explicar o modelo de criação de comunidades que o projeto Kunoleco sabe que poderá enfrentar: partindo da “pseudo-comunidade”, onde as pessoas são muito cordiais e evitam qualquer confronto, seguindo-se uma segunda fase, de “caos”, na qual aparecem as discussões e as diferenças, um período de agitação que requer ferramentas de gestão de conflitos e de comunicação assertiva. A terceira etapa é a do “vazio”, em que as pessoas aprendem a ultrapassar o individualismo e, finalmente, poderá ser alcançada a “verdadeira comunidade”, em que todos vivem em sintonia e se compreendem.
O projeto de André Valério, no entanto, ainda está longe de alcançar este objetivo. “No início, nem sequer temos uma pseudo-comunidade, porque as pessoas apenas entram no elevador e saem em casa” explica. A prova dos nove vai arrancar no dia 6 de maio com um evento de “construção de comunidade”, nas instalações da Antiga Fábrica de Loiças de Sacavém e em parceria com a associação de moradores e Junta de Freguesia locais.
Se não teve oportunidade de assistir em direto a esta Conversa, veja aqui na íntegra.
Nesta primeira conversa dedicada à Cooperação, partilhámos experiências sobre a influência que o trabalho de equipa e a colaboração nas empresas, na ciência, na inclusão social e até no nosso prédio pode ter na melhoria da qualidade de vida pessoal e na eficácia profissional. Em maio, vamos Observar Mais outras experiências. Desta vez, sobre a necessidade de termos Mais Tempo e como o podemos inventar e organizar de forma mais eficiente.