Reportagem em Rangum, Myanmar
Rangum vestiu-se a rigor para receber o papa Francisco, mas não há muito tempo só em miragens se podiam avistar cartazes dedicados ao líder da Igreja Católica na cidade. Na viragem do milénio, os 2,2 milhões de cristãos que vivem na antiga Birmânia, hoje Myanmar, eram abertamente perseguidos pelo regime militar, que ao longo de décadas assumiu o controlo de igrejas e impediu a entrada de missionários no país, alimentando a intolerância religiosa contra a minoria.
Muitos cristãos — menos de 5% da população, desses 700 mil católicos — enfrentavam muitas barreiras no acesso a empregos na função pública, por exemplo; os que conseguiam contratos passavam carreiras inteiras sem serem promovidos. Hoje, porém, são livres de afixar os cartazes que querem, como aquele que ocupa agora a fachada da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, a dez minutos da casa de Aung San Suu Kyi. Antes de Francisco ter aterrado na antiga capital birmanesa este domingo para se encontrar com a líder do governo civil, questionei o pároco de uma das igrejas da praça mais central de Rangum sobre a visita. Com um sorriso rasgado declarou simplesmente: “Estamos prontos”.
Tudo parece estar bem, mas nem tudo é o que parece em Myanmar e, para muitos analistas, esta visita envolve uma jogada diplomática arriscada. O padre de Rangum não quis sequer relembrar a vida antes do fim da ditadura, muito menos comentar o que pode correr mal com a visita de Francisco. Mas os riscos existem. Como apontava há alguns dias o padre americano Thomas Reese, no portal Religion News Service: “Ele arrisca-se a comprometer a sua autoridade moral ou, em vez disso, a pôr em risco os cristãos do país. Tenho grande admiração por este Papa, mas alguém devia tê-lo convencido a não fazer esta viagem”.
O peso de uma só palavra
Se os cristãos têm vindo a conquistar o seu lugar na sociedade birmanesa, outras minorias continuam presas a miragens de normalidade, entre elas os Rohingya. Falar de Myanmar hoje é falar deles, um grupo étnico muçulmano que nunca foi reconhecido pelo regime militar e que, desde agosto, tem estado a fugir em massa para o Bangladesh no seguimento de uma sangrenta “operação de limpeza” do Exército que a ONU diz corresponder a um “exemplo de limpeza étnica por definição”.
Francisco foi uma das primeiras figuras mundiais a pedir o fim da perseguição do povo sem Estado, quando no final de agosto aproveitou uma missa na praça de São Pedro para rezar pelos “nossos irmãos e irmãs Rohingya”. Voltaria a usar a palavra Rohingya um mês depois, a mesma que encerra agora o grande dilema da sua visita.
Antes de partir para Rangum, foi o próprio Vaticano que o aconselhou a não utilizar o termo para evitar um incidente diplomático. O porta-voz da Igreja, Greg Burke, viria depois garantir que Francisco levou o conselho a sério, mas que só durante os encontros saberemos o que decidiu. “Vamos descobrir todos juntos durante a visita [mas] não é uma palavra proibida.”
Não o é oficialmente, mas há um véu cada vez mais espesso a ocultá-la. Ainda no ano passado, centenas de birmaneses organizaram um protesto frente à embaixada dos EUA em Rangum com o único propósito de exigir aos norte-americanos que parem de usar o termo Rohingya. E, há uma semana, a palavra esteve totalmente ausente da cimeira do Diálogo Ásia-Europa (ASEM), quando delegações de 51 países, entre eles Portugal, rumaram até à capital administrativa do país, Naypyidaw, para o encontro bienal dos seus ministros dos Negócios Estrangeiros.
Em nome dos europeus, o ministro da Estónia anunciou ao lado de Suu Kyi um compromisso para resolver a “situação no estado de Rakhine”, para que “as pessoas que foram forçadas a fugir possam regressar com dignidade e segurança”. Federica Mogherini, a chefe da diplomacia da UE, pediu o “fim da violência em Arakan”, antigo nome da região. Jornalistas birmaneses abordaram colegas estrangeiros para lhes perguntarem sobre o que pensam de tudo isto e tremeram ao ouvir a palavra Rohingya — a mesma que ninguém ousou pronunciar no majestoso centro de congressos de Naypyidaw.
Myanmar pode já não viver em ditadura, mas o que existe aqui hoje ainda não é bem uma democracia. Isso ficou claro à chegada ao hotel de Naypyidaw onde os jornalistas estrangeiros ficaram hospedados durante a cimeira do ASEM e onde nos foi pedido que passássemos em máquinas de raio-X para podermos instalar-nos nos quartos. Mais claro ainda durante a viagem de táxi até Rangum; ao longo do dia, recebi mais de uma dezena de chamadas do hotel — queriam saber onde estava, o que já tinha feito, o que ia fazer, quando planeava voltar. No regresso, descobri que os repórteres que ficaram na capital, uma metrópole vazia de gente com quatro vezes o tamanho de Nova Iorque, foram sendo abordados à vez por um funcionário do Ministério da Informação, que passou o dia no hall do hotel a colocar-lhes essas mesmas questões com um sorriso na cara.
No fio da navalha
Myanmar viveu mais de meio século em ditadura, até 2010. Nesse ano, a Junta Militar que inspirou o escritor George Orwell (“o profeta”, como é apelidado por muitos birmaneses) autorizou uma ida às urnas que culminou com a vitória do partido próximo do Exército, um plebiscito envolto em acusações de fraude e obstáculos aos movimentos da oposição. Impedido de se candidatar, o partido de Suu Kyi, a Liga Nacional para a Democracia (LND), foi legalmente dissolvido pelo governo.
A primeira grande conquista democrática só chegaria cinco anos depois, quando os militares autorizaram novas eleições no final de 2015, as primeiras totalmente livres. Alteraram a Constituição para que a heroína moderna da nação não pudesse ser Presidente, mas a vitória estrondosa da LND nas urnas transportou a Nobel da Paz para os píncaros do poder civil, na qualidade de conselheira de Estado. Hoje, Suu Kyi é uma das caras do governo bicéfalo de Myanmar, líder do Executivo civil que continua a partilhar importantes ramos do poder com o Exército. Um deles é o Ministério do Interior, responsável por atribuir cidadania às dezenas de grupos étnicos que coabitam no território — há 135 oficialmente reconhecidos e os Rohingya não são um deles.
Entre a maioria budista reina a ideia de que os muçulmanos étnicos são imigrantes ilegais e uma parte da população acredita que são todos terroristas. “Nem todos”, garante um jornalista ligado ao Ministério da Informação quando o questionei sobre o assunto. Não fui eu quem deu início à conversa, mas ele, quando numa pausa para café me estendeu um grosso dossiê com centenas de fotografias sem legendas nem contexto que “comprovam” a idoneidade das autoridades. “Foi o ARSA que convenceu as pessoas a pegarem fogo às suas casas e a fugirem para o Bangladesh”, garantia, a apontar para as imagens. Pessoas da mesma etnia convenceram os conterrâneos a abandonarem tudo e a destruírem os seus lares?, perguntei. “Sim, o ARSA, eles são terroristas”.
ARSA é o acrónimo de Exército Arakan de Salvação Rohingya, um grupo de insurgência nascido em Rakhine há mais de um ano para lutar contra a repressão do Estado e da maioria budista. Quando a milícia assinou os primeiros ataques contra esquadras e postos de segurança, o International Crisis Group avisou que, sem políticas de integração dos Rohingya, havia o risco de o grupo vir a ser instrumentalizado por redes terroristas ou por países como a Arábia Saudita, hoje alegadamente a fornecer armas e dinheiro ao grupo. Nada aconteceu e os insurgentes voltaram ao ataque há três meses, a 25 de agosto. Nem 24 horas depois, o Exército invadiu o norte de Rakhine, onde a minoria vive concentrada, para “limpar” a área.
O que aconteceu desde então tem feito manchetes em todo o mundo. Apesar de estarem impedidos de entrar em Rakhine, jornalistas e funcionários de ONG citam provas de atrocidades em massa cometidas contra os muçulmanos; falam, como os sobreviventes, de mulheres e crianças violadas, homens executados, aldeias incendiadas, minas anti-pessoal instaladas na fronteira e queimas de corpos para “apagar as provas”.
Numa rara visita oficial a Rakhine, conduzida pelos militares, os correspondentes da BBC e do The Guardian viram civis budistas pegarem fogo a aldeias Rohingya diante de agentes da polícia que nada fizeram. O Exército desmente-o e defende-se com o terrorismo e Suu Kyi alega que “a maioria” dos Rohingya nem sequer abandonou as suas casas, enquanto se amontoam as acusações de limpeza étnica (diz a ONU), de apartheid e crimes contra a humanidade (diz a Amnistia Internacional) e de genocídio (diz o Museu do Holocausto em Washington).
Foi com este pano de fundo, com seis avenidas cheias de católicos e curiosos, que Francisco aterrou em Rangum no domingo, dias depois de ter anunciado que, quando seguir para o Bangladesh, vai encontrar-se com refugiados Rohingya. Mesmo que não use a palavra, corre o risco de enfurecer as autoridades birmanesas, ou no mínimo, muitas das pessoas que vivem no país. “Ele vai ter de ter cuidado com o que diz, porque aqui toda a gente apoia o governo”, diz um jornalista cheio de confiança quando questionado sobre o que pode acontecer esta semana. “Ele fala pelos cristãos, não fala por nós.”